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Mariele Ferreira

Feiras livres movimentam economia e cultura em BH

Em um passeio pela feira da Afonso Pena, visitantes têm amostra da cultura gastronômica e artesanal da capital

Era um domingo ameno de setembro – uma exceção nos dias quentes de céu nublado pela fumaça da temporada de queimadas na Região Metropolitana de Belo Horizonte – e três estudantes de Jornalismo da PUC Minas se aventuravam na tradicional Avenida Afonso Pena, no centro da capital, para fotografar e conhecer a realidade de quem, semanalmente, ocupa os espaços da famosa Feira Hippie de BH.

Originalmente, a Feira ocupava a via central da Praça da Liberdade, no bairro Funcionários, mas sua fama extrapolou os limites da cidade, trazendo cada vez mais visitantes às barraquinhas de comidas, bebidas, móveis, bijuterias, flores e artesanato, lotando o espaço e forçando a mudança de local para uma avenida mais larga, que comportasse mais pessoas. Não foi diferente naquele 28 de setembro de 2024: a feira estava lotada, embora, quando cheguei às 7h, junto com a fotógrafa Maria Luiza Mendes, o movimento ainda era fraco, com um lento clima de montagem das barracas e mostruários de venda. Cerca de meia hora depois, às 7h30, Rayssa Moura também se juntou a nós, e fomos  observar o movimento da já montada feira Afonso Pena, que rapidamente se encheu de gente e de políticos fazendo campanha – no sábado seguinte, seria dia de votação do pleito municipal.

Chegando a Feira Hippie
Mariele Ferreira
Raquel Gomes da Silva sentada na sua barraca que vende de bichos de artesanato
Entre Abreu’s & cia entreabreusecia / Mariele Ferreira

Os primeiros entrevistados do dia foram os feirantes Raquel Gomes da Silva e Luiz Felipe Queirós de Abreu, que começaram a trabalhar na produção de artesanatos há quatro meses, quando Felipe começou a ajudar sua mãe na barraca. Tímidos, sem querer falar muito, compartilharam com a equipe de reportagem que logo perceberam que, assim como muitos trabalhadores e artesãos, as produções vendidas na feira também eram um negócio de família, com produtos feitos à mão, e sem revenda, como é regra desse tipo de mercado. Este também é o caso de Marcos Vinícius Augustinho do Carmo: filho de uma feirante que sempre esteve nesse ambiente, ele também trabalha aos domingos na venda de roupas femininas, na barraca que foi da sua mãe, Consuelita Alfrida do Carmo. Em seus anos participando da feira, afirmou que esse trabalho de microempreendedorismo é importante para ele, gerando uma boa renda:

A feira é meu trabalho, mas eu faço bico como professor”.

sequência de vestidos à mostra na feira
Barraca de Marcos Vinícius Augustinho do Carmo/ Mariele Ferreira

Durante as conversas com os feirantes, as estudantes perceberam a relevância da manutenção e da criação de melhorias na condição de trabalho desses microempresários, que trabalham em um ambiente que junta produções culturais e artísticas, a venda de artesanatos e a comida de feira. Percorremos a feira imersas na cultura que pulsa na Avenida Afonso Pena. Os artistas de rua — estátuas vivas, músicos — davam vida ao cenário, enquanto os aromas de comidas típicas se misturavam às vozes e à música no ar.

Com a câmera na mão, tentávamos capturar cada momento do ambiente vibrante, com a presença de pessoas com diferentes objetivos: alguns faziam compras, outros passeavam com seus cachorros, mães e pais com seus filhos, feirantes trabalhando, e fiscais e policiais monitorando o espaço. Até políticos, em plena campanha, aproveitavam a movimentação pré-eleitoral.

Os elementos que formam um clima agradável que favorece empresários e artistas presentes, promovendo a cultura local e a venda dos produtos, ao mesmo tempo em que incentiva os artistas de rua a comporem a identidade da cidade. Quando finalmente deixamos o local, o céu nublado havia dado lugar ao sol quente do meio-dia, e o calor típico da capital, intensificado pela multidão, fazia o suor escorrer pela testa.

Saindo da feira Hippie
Mariele Ferreira

Em Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU) gere nove feiras, como a feira da Praça Duque de Caxias, a feira da Avenida Silva Lobo e a feira da praça da Febem, dentre outras que ocorrem periodicamente em áreas pré-determinadas pela prefeitura. Exceto pela grandiosa Feira Hippie, oficialmente denominada como Feira da Afonso Pena, todas as feiras regulamentadas da capital são coordenadas pelo Programa Jornada Produtiva, projeto realizado dentro da Secretaria Municipal de Políticas Urbanas, que trabalha com o comércio popular. O objetivo do Programa é  a inserção produtiva e a geração de oportunidades de renda para trabalhadores do comércio em locais públicos que podem ser usados pela população para comércio e lazer.

Gabriela Teixeira Castro, Gerente do Programa de Inclusão Produtiva, e Thiago Machado Lage Moreira, arquiteto da prefeitura e gerente de licenciamentos de atividade e logradouro, trabalham juntos na Secretaria Municipal de Política Urbana no Programa Jornada Produtiva explicaram sobre comércios em logradouros focando nas organizações das feiras livres que o programa gerencia. A feira da Afonso Pena também é gerida pela prefeitura mas, pelo tamanho, tem uma administração própria. Sobre ela, falamos com o gerente da organização da feira Afonso Pena, Gustavo Resgala.

Segundo Gabriela Teixeira Castro, as feiras de inclusão produtiva organizadas pela Prefeitura seguem o mesmo modelo padrão de lonas verdes com listras brancas, com a  identificação da licença emitida pela prefeitura amostra. O processo de aquisição da barraca, montagem e desmontagem das são responsabilidade dos feirantes, que podem optar por contratar montadores ou montar suas próprias estruturas, devendo seguir rigorosamente o que é estabelecido pela Prefeitura.

Há também padrões de referência para a fiscalização que Programa Jornada Produtiva e a administração da feira da Afonso Pena são iguais de acordo com Gustavo Resgala e  Thiago Machado Lage Moreira, para a transferência de titularidade das barracas, que só pode ser feita, especificamente, para cônjuge ou companheiro(a) estável, filhos(as) ou irmãos(ãs), condicionada aos casos de licença médica superior a 60 dias, invalidez permanente ou falecimento do(a) feirante; e para a fiscalização da vigilância sanitária, cuja atuação é restrita às barracas de alimentação.

barraca de flores
Mariele Ferreira

A Feira da Afonso Pena, sozinha, tem mais licenças do que todas as demais feiras do Programa Jornada Produtiva somadas, o que dá a dimensão de sua importância e grandiosidade na cidade. Chamada carinhosamente de Feira Hippie, ela é composta por 1481 feirantes titulares licenciados – enquanto o programa trabalha com 223 pessoas com licença regular para a atividade de feira promovida pelo Executivo.

A gerência da Afonso Pena destina 40 vagas ao Programa de Economia Popular e Solidária, que seguem diretrizes e procedimentos diferentes, em que grupos de cooperados assumem barracas sob as condicionantes próprias do programa.

Na Feira Hippie, o edital prevê a ocupação de 71 vagas para pessoas interessadas no exercício da atividade de feirante. As vagas estão distribuídas em 15 setores da feira e são destinadas a pessoas residentes em Belo Horizonte, que atendam às exigências previstas no Edital. 5% das vagas são destinadas a pessoas com deficiência e, durante a vigência do Edital, à medida que surgirem mais vagas, outras pessoas do cadastro de reserva são chamadas.

sequência de vestidos à mostra na feira
Mariele Ferreira

As feiras são impulsionadoras da economia local com seus modelos acessíveis, que permitem que pequenos produtores possam vender diretamente para os consumidores. Além disso, atraem moradores e turistas, movimentando diversos setores como artesanato, moda, alimentação, serviços e atrações locais. Geram fluxo de caixa para esses micros e pequenos empreendedores e promovem a circulação de renda dentro da cidade de BH. “As feiras culturais oferecem uma oportunidade de baixo custo para microempreendedores testarem e comercializarem seus produtos diretamente com o público”, reforça Ana Paula Bastos, economista da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH).

As feiras livres, como a Feira Hippie de Belo Horizonte, são um reflexo da política nacional de economia solidária. Esse modelo de comercialização promove práticas de comércio justo, valorizando a produção local e a sustentabilidade. Ao permitir que pequenos produtores e artesãos vendam diretamente ao consumidor, as feiras criam espaços para a troca de experiências e o fortalecimento da comunidade, incentivando formas mais éticas e colaborativas de comércio. Aqueda Bafile de Alvarenga, Gestora Pública e Coordenadora de Economia Solidária da PBH, afirma que o impacto que esses modelos de comercialização de produtos feitos a mão tem nas comunidades locais é muito positivo pois, além de gerar emprego e renda, criam uma  inclusão social que se enquadra na comunidade existente entre os feirantes que compõem a feira hippie. “A economia solidária trabalha com o coletivo de pessoas e não só com o indivíduo”. Quando você consome em uma feira que traz esse aspecto da economia solidária, está desenvolvendo e incentivando a cultura, economia, a comunidade local e promovendo economia sustentável.

equipe MarColab
Foto: Mariele Ferreira

A economista Ana Paula Bastos ressalta que em áreas com menor desenvolvimento econômico, a criação de feiras culturais desempenha um papel importante no estímulo ao crescimento local. Essas feiras, ao atrair o fluxo de pessoas, geram novas oportunidades para o surgimento de negócios como cafés, restaurantes e lojas, que buscam atender à demanda gerada pelos eventos. A gestora pública, Aqueda Bafile reforça esse pensamento afirmando que esse fluxo colabora também na revitalização de bairros e regiões, ao oferecer um ambiente de consumo diferenciado, onde o público pode adquirir produtos artesanais e personalizados, carregados de valor cultural, promovendo uma cultura de consumo consciente e fortalecendo o comércio local, que passa a se destacar frente às grandes redes varejistas. A variedade de produtos disponíveis nas feiras também gera uma concorrência saudável, contribuindo para a diversificação da oferta de bens e serviços.

Esse modelo de negócio tem como vantagem o contato direto com o consumidor final, o que permite que os produtores façam ajustes rápidos em seus negócios e fortaleçam suas redes de contatos. Em Belo Horizonte, por exemplo, as feiras culturais são de grande importância para artesãos e produtores independentes, proporcionando visibilidade e oportunidades de crescimento para seus empreendimentos. Outro exemplo relevante, além da Feira da Afonso Pena, é o Mercado Central de Belo Horizonte, que teve sua origem há 95 anos como uma feira e, com o tempo, se transformou em um dos maiores símbolos da capital mineira. Hoje, o Mercado Central está entre os três melhores mercados do mundo e é considerado o maior da América Latina, demonstrando o impacto que as feiras podem ter no desenvolvimento de uma região.

Durante a apuração da reportagem, ouvimos de diferentes fontes apelos em relação às melhorias esperadas para as feiras em Belo Horizonte. A gerência da feira da Afonso Pena defende, por exemplo, a volta da Rádio Feira, cujo processo já está em andamento, mas outras melhorias ainda precisam ser trabalhadas, como as demandas por mais infraestrutura, acesso a energia, banheiros mais limpos e apoio na montagem das barracas.

A economista da CDL, Ana Paula Bastos, argumenta que parte da geração de empregos da Feira da Afonso Pena vem da contratação de montadores de barraca, que são contratados pelos próprios feirantes, mas a gestora pública Aqueda Alvarenga defende que esse processo pode onerar os feirantes: “Hoje eles têm um custo muito alto de aluguel de barracas e transporte”, e soma-se a isso o custo com esse serviço terceirizado. A feirante Aida França Moreira, da Feira Hippie, tem a mesma visão: para ela, os custos da montagem são um risco:

Eu saio de casa devendo alguém pela montagem da barraca”. 

venda de carteiras
Aida França Moreira/ Mariele Ferreira

Bastos e Alvarenga também defendem a criação de políticas públicas que poderiam fortalecer as feiras, como incentivos fiscais para microempreendedores, subsídios para a infraestrutura, maior divulgação turística e cultural desses eventos, intensificação de programas de capacitação para os expositores, regulamentação dos espaços de todas as feiras e a inclusão das feiras no circuito turístico oficial.

As feiras culturais de Belo Horizonte, como a Feira Hippie, são parte significativa do circuito turístico da cidade, atraindo tanto moradores quanto visitantes. Esses eventos oferecem uma rica variedade de produtos, desde artesanatos até gastronomia, valorizando a cultura local e dinamizando a economia. Ana Paula Bastos fala que a  inclusão das feiras culturais, como exemplo as da Avenida Silva Lobo e da Avenida Carandaí, no roteiro turístico poderia ampliar ainda mais o alcance dessas atrações, ajudando a impulsionar o turismo de lazer e cultural na cidade. A promoção dessas feiras no circuito turístico de Belo Horizonte contribui para o fortalecimento da identidade cultural da cidade e gera impactos econômicos positivos. Também de acordo com Ana Paula Bastos o aumento do fluxo de visitantes, setores como hotelaria, transporte e alimentação também se beneficiam. E  a visibilidade dessas feiras pode atrair investimentos e novas parcerias, potencializando a geração de renda e emprego.

barracas de comida na feira Afonso Pena
Feira da Afonso Pena/ Mariele Ferreira

A comida de feira é um dos aspectos mais atrativos e icônicos das feiras culturais, como o famoso acarajé, os pastéis e os espetinhos da Feira Hippie de Belo Horizonte. Além de proporcionar uma experiência acessível e democrática, o setor de alimentação é um espaço de diversidade, tanto de público quanto de sabores. O gastrônomo Danilo Simões explica que as feiras são um ambiente onde todas as classes sociais podem participar e desfrutar de iguarias locais e de outras culturas que já estão bem estabelecidas no cardápio das feiras, como macarrão na chapa.

foto de varias comidas incluindo acarajé
Mariele Ferreira

Apesar de BH ter recebido a chancela de ‘Cidade Criativa da Gastronomia’ pela UNESCO, a presença de pratos tradicionais, como feijão tropeiro, pão de queijo com linguiça e torresmo, contribui para fortalecer a identidade cultural de Minas Gerais. No entanto, algumas críticas apontam para a falta de representatividade da gastronomia mineira em espaços como a Feira Hippie, onde se espera uma maior valorização dos sabores locais, especialmente devido ao grande fluxo de turistas que visitam a cidade e a feira.

Podia ser melhor, a feira Hippie é uma feira que leva muitos turistas […]. Eu vejo uma gastronomia que não representa o nosso estado, como o exemplo do acarajé, então ela poderia representar melhor e de uma forma mais ampla”, conta Eduardo Maya

O ambiente descontraído das feiras também torna a experiência gastronômica mais informal e acessível, proporcionando uma interação direta com o público. A feira se torna um local onde a gastronomia é consumida de forma relaxada, enquanto os visitantes passeiam pelas barracas de artesanato e moda, de acordo com Eduardo Maya. Além disso, o papel das feiras vai além da simples comercialização de alimentos. Eventos como o Aproxima, criado por Eduardo Maya, são exemplos de como iniciativas privadas podem promover a aproximação entre produtores locais e chefes de cozinha, fomentando o desenvolvimento da cadeia produtiva e gerando mais oportunidades de negócios. O projeto tem desempenhado um papel importante em conectar pequenos produtores e estabelecimentos, criando uma rede de negócios que fortalece tanto a gastronomia quanto a economia local.

De acordo com a prefeitura de Belo Horizonte, durante as vistorias feita pelos fiscais da Subsecretaria de Fiscalização, são verificadas pela equipe de fiscalização de controle urbanístico e ambiental, entre outras normas constantes no Código de Posturas (Lei 8.616/2003), o documento de   licença e sua validade, se os produtos que são oferecidos estão de acordo com o licenciamento. Também é verificada se a identidade visual do equipamento e seu espaço de instalação estão em conformidade com as definições feitas pela Prefeitura.

Para cada uma das irregularidades, há um dispositivo legal explicitado no Código de Posturas (Lei 8.616/2003) e, caso seja verificado pelo fiscal o descumprimento dessas normas, há a previsão de penalidades, que podem ser aplicadas, sendo elas a notificação, multa, apreensão ou até mesmo a cassação da licença.

Leia também: Entenda o que é Economia Circular e o papel de empresas e governos no processo.

Mariele Ferreira

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