Colab
Equipe da SOS Serra unida em março de 2022 para ajudar desabrigados pela chuvas na região serrana do Rio de Janeiro | Créditos: Divulgação/ SOS Serra

Desafios na prestação de contas das ONGs

Aumento da transparência nos bastidores é essencial para o crescimento das doações no Brasil

Um editor e dois repórteres da Record Bahia desviaram R$ 800 mil doados a uma menina com câncer. A história da criança foi ao ar em setembro de 2022 e uma chave de PIX foi disponibilizada para doações. Entretanto, ela era vinculada à conta de um dos envolvidos no desvio. O jogador de futebol Anderson Talisca contribuiu com cerca de R$ 70 mil para o tratamento da menina, porém, ao contactar a mãe da criança para emissão de comprovante para desconto do valor doado no Imposto de Renda, a família informou que não recebeu nenhuma doação, nem do atleta, nem da emissora. De acordo com o portal Metrópoles, após abertura de investigação interna da Record, o editor confessou o crime e os três funcionários foram demitidos.

Casos de desvio de doações não são incomuns no Brasil. Quem não se lembra da história da Grávida de Taubaté, quando a pedagoga Maria Verônica Santos fingiu estar grávida de quadrigêmeas em diversos programas de TV e recebeu várias doações? Infelizmente, nem todos os golpes terminam em memes, mas na desconfiança da população com relação ao destino das doações.

A Pesquisa Doação Brasil 2022, do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), apontou que somente 31% da população considera ONGs confiáveis e que apenas a mesma proporção deixa claro o que faz com os recursos que recebe. O aumento da transparência dos bastidores das doações, assim como o seu destino, são essenciais para o crescimento das doações no Brasil.

Descubra como saber se uma ONG é confiável | Créditos: Lorena Marcelino

Transparência e prestação de contas de ONGs

De acordo com o Politize, as Organizações Não Governamentais (ONGs) ou Organizações da Sociedade Civil (OSC) “são entidades privadas da sociedade civil, sem fins lucrativos, cujo propósito é defender e promover uma causa política”, que pode ser de diferentes tipos, como direitos dos animais, defesa do meio ambiente e luta contra o racismo. As ONGs fazem parte do terceiro setor, termo “guarda-chuva” que inclui todas as organizações sem fins lucrativos voltadas ao interesse público e à solução de problemas sociais. Segundo a Pesquisa Doação Brasil 2022 do IDIS, entre os maiores desafios dessas instituições estão a sustentabilidade institucional, a transparência e a ampliação do número de doadores, apoiadores e voluntários. Andréa Wolffenbüttel, jornalista e consultora associada de instituições filantrópicas, considera difícil para as organizações do terceiro setor rastrear o que é feito com cada doação, já que seria necessária uma equipe dedicada somente para essa função e muitas dessas doações são de pequeno valor. “Teria que ter tanta equipe, gente do financeiro para descobrir o que foi feito com cada doação e, depois, reportar para cada doador, que seria uma coisa contraproducente. Seria mais caro fazer esse trabalho do que a doação que você recebe”, explica a jornalista.

Danielle Ferreira, superintendente de Mobilização de Recursos e Novos Negócios do Hospital da Baleia, situado em Belo Horizonte e que atua em 749 municípios mineiros, relata que 25% dos recursos da instituição vêm de doações, e o restante de repasses do Sistema Único de Saúde (SUS), planos de saúde e pacientes particulares. Para prestar contas dos serviços realizados, o hospital divulga balanços financeiros semestrais. Além disso, o Relatório de Sustentabilidade, que também é anual, traduz números para que a população entenda com facilidade. Em 2022, foram realizados 640 mil procedimentos e, pelo quarto ano consecutivo, a instituição foi indicada como uma das 100 Melhores ONGs do Brasil.

Em entrevista por e-mail, o Hospital da Baleia destacou que “95% dos atendimentos são feitos por meio do Sistema Único de Saúde, com os demais atendimentos referindo-se a particular e convênios. O Baleia é a porta para acesso à saúde das pessoas de 750 municípios mineiros, em 33 especialidades, com relevante impacto em pediatria, ortopedia, nefrologia, oncologia e atenção às crianças com fissuras labiopalatinas e outras deformidades craniofaciais”.

Organização de doações recebidas logo após a chuva de fevereiro de 2022 | Créditos: Divulgação/ SOS Serra

Outra instituição que garante transparência através de relatórios é a SOS Serra. A instituição foi fundada em 2021 para atender pessoas que estavam passando fome durante a pandemia na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro. De forma pontual e em pequena escala, os voluntários entregavam cestas básicas às pessoas em vulnerabilidade social. Em fevereiro e março de 2022, uma forte chuva atingiu a cidade e deixou centenas de mortos e milhares de desabrigados. Ainda no dia da tragédia, a SOS Serra se organizou para auxiliar os atingidos pelas chuvas e recebeu um grande número de doações. Desde fevereiro de 2022, a ONG já doou mais de 8 mil litros de leite, 943 geladeiras, 927 fogões e 4.300 panelas. A organização atua também com projetos conforme a demanda da região serrana, como o treinamento de líderes comunitários para auxiliarem pessoas traumatizadas com as tragédias causadas pelas fortes chuvas e desafios para as escolas públicas da cidade estimularem as crianças a cuidarem do lixo.

Patrícia Salamonde, responsável pela comunicação da SOS Serra, ressalta o Instagram como ferramenta para divulgar doações recebidas e ações da instituição. “No nosso Instagram, vamos mostrando tudo que fazemos e as doações maiores que recebemos. Nós temos relatórios de prestação de contas e tudo catalogado dentro da associação, tudo que entra e tudo que sai”, conta Salamonde. Apesar de todo o cuidado com a transparência, a ONG já foi vítima de fraude em um dos momentos mais sensíveis da história da região serrana do Rio. Logo após as trágicas chuvas em Petrópolis em 2022, uma conta falsa de Instagram com nome da organização foi criada para desviar verba: “ A gente teve uma clonagem do nosso Instagram para desvio de verba. Conseguimos matéria da Globo e estancar muito rapidamente. Quer dizer, no meio de uma crise, pessoas mortas nos escombros, e a pessoa faz isso?!”, relata Patrícia.

O Movimento Bem Maior (MBM), associação que intermedia organizações do terceiro setor e doações de pessoas físicas, utiliza, além de relatórios e mídias sociais, uma newsletter quinzenal com resultados e dá abertura para que o doador solicite informações. Richard Sippli, diretor de Operações e Relações Institucionais do MBM, defende a filantropia construída com base na confiança. “Não é uma confiança cega. Antes de iniciar a parceria, a gente conversa bastante, levanta toda documentação necessária e tem uma rede de especialistas que nos ajudam a validar que aquela organização tem a capacidade técnica de executar ou de enfrentar os desafios. Então, a gente doa e acompanha os resultados ao longo dos anos”, afirma Sippli.

Alinhado com Andréa Wolffenbüttel, Richard Sippli considera que a prestação de contas meticulosa de instituições pode criar obstáculos e desafios burocráticos que desviam a ONG do seu propósito. Parte dos recursos, comumente escassos, teriam que ser empregados na prestação de contas ao invés de ir para a causa da organização.

Como saber que uma ONG é confiável?

Mesmo trabalhando com ONGs há mais de 15 anos, Andréa Wolffenbüttel quase virou vítima de um golpe ao receber uma carta com pedido de doação. Felizmente, a jornalista pesquisou mais informações da falsa organização, como site, mídias sociais, equipe e endereço. O passo a passo para se certificar da credibilidade da instituição resultou em um material com dez dicas transformadas no infográfico em parceria com o IDIS, que você pode conferir abaixo:

Infográfico tem dez dicas para checar se a instituição é confiável para receber doações em dinheiro | Créditos: Reprodução/ IDIS/ Andréa Wolffenbüttel

Importância da doação de pessoas físicas

Pequenas doações de pessoas físicas são essenciais às ONGs. A jornalista conta que, enquanto doações de empresas costumam ter um destino pré-definido, as de pessoas físicas, não. Por isso, parte delas são utilizadas para o pagamento de despesas administrativas que permitem que a ONG continue funcionando.

Equipe da SOS Serra é formada por 11 pessoas, entre fundadores, voluntários, contratados e prestadores de serviço | Créditos: Divulgação/ SOS Serra

O ChildFund Brasil, organização que promove e defende direitos das crianças e dos adolescentes, tem parte das suas atividades mantidas pela ChildFund International mas ainda depende de doações pontuais e recorrentes. Esse último tipo é chamado de apadrinhamento de crianças: “Com uma contribuição de R$ 71 mensais, a pessoa estabelece vínculo com a criança apadrinhada e pode se comunicar com ela, por meio de cartas e até mesmo visitá-la”, conta Marcelo Martins, assessor de comunicação da instituição. Ele destaca que “o dinheiro não é repassado para as famílias ou para a criança, mas, sim, para o fundo financeiro da organização. O valor recebido é destinado à realização de programas sociais por organizações sociais parceiras na região onde a criança ou adolescente apadrinhado está inserido.” Em 2022, foram cerca de 85 mil jovens, crianças e adolescentes impactados. Doadores podem acompanhar o trabalho da instituição por meio de cartas das crianças apadrinhadas, boletins e do Relato de Sustentabilidade, que segue o padrão da Global Report Initiative (GRI) – organização que estabelece normas reconhecidas internacionalmente para relatórios sustentáveis.

Já a SOS Serra utiliza o que recebe de pessoas físicas para capacitações, reformas de escolas e compra de cestas básicas. Quando ocorreram as fortes chuvas na região serrana do Rio em 2022, doações em dinheiro de pessoas físicas foram utilizadas prioritariamente para comprar ferramentas de resgate, alimentos, itens para casa e água, relata Patrícia Salamonde.

Andréa Wolffenbüttel destaca o papel da sociedade civil na resolução de problemas sociais. “Os governos têm problemas que estão acima da capacidade deles de resolver: é problema de pandemia, mudança climática, crise migratória, tráfico internacional de drogas. São problemas muito grandes e a gente está vendo que os governos não estão dando conta. Então, a sociedade civil vai ter que entrar junto e tentar ajudar, juntar as mãos para a gente fazer uma sociedade melhor. Não adianta a gente ficar sentado esperando o governo fazer. Então, a sua parte, se você não puder ajudar a fazer, doe para quem está fazendo”, afirma a consultora.

Quero doar, como fazer?

Faça o teste Descubra sua Causa, confira qual questão se conecta com o seu propósito e sugestões de ONGs para ajudar.

Lorena Araújo Marcelino

Adicionar comentário