Um dos mais graves problemas sociais do Brasil, conforme levantamentos realizados pela Fundação João Pinheiro, é a falta de moradia digna nos quatro cantos do país. Pesquisa feita em 2019 mostra que o Brasil registrou um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias. As habitações precárias representam cerca de 8% do número total de domicílios do país. Os dados não contabilizam o período de pandemia, em que houve aumento no número de pessoas despejadas. Conforme o levantamento da Campanha Despejo Zero, entre agosto de 2020 e maio de 2022, o número de famílias despejadas aumentou mais de 300%.
O artigo 25 da Declaração dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece a importância de habitação para todas as pessoas.
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.
Esse direito, na prática, não é assegurado. Nem todo cidadão consegue manter uma vida saudável, com boa alimentação, saúde e moradia digna. Na verdade, o déficit habitacional é um problema social tão recorrente que parece um direito humano exclusivo, não universal.
O que é déficit habitacional?
A Fundação João Pinheiro, que calcula o déficit habitacional no Brasil desde 1995, define “como um termo abrangente e que pode ser utilizado para se referir a um determinado número de famílias que vivem em condições de moradia precárias em determinada região, ou até mesmo as pessoas que não possuem qualquer moradia.”
O cálculo do déficit é feito por etapas, considerando componentes e subcomponentes tais como habitações e domicílios precários, coabitação familiar, custo do aluguel e quantidade excessiva de moradores por dormitório em imóveis alugados.
Mulheres e moradia
Numericamente maioria na população brasileira, as mulheres são grandes impactadas pelo déficit habitacional. A análise da pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro aponta que as mulheres foram as principais responsáveis pelos domicílios caracterizados como déficit habitacional entre os anos de 2016 e 2019, em todos os componentes avaliados. No ônus excessivo, aproximadamente 62% das pessoas de referência no domicílio eram mulheres. Na habitação precária, o número permaneceu estável, com a participação das mulheres em 59%. Na coabitação, o número saltou de 50%, em 2016, para 56%.
Dentre as questões que corroboram o aumento dos números, estão as situações de discriminação de gênero, desigualdade social e econômica. Moradora da capital mineira, a operadora de loja Lauriene Fonseca, 24 anos, sente na pele o drama da habitação, o que reforça a necessidade e mecanismos que atendam esse público.
Trabalho como operadora de loja atualmente e moro há dois anos de aluguel, recebo um salário mínimo e pago R$ 850,00 de aluguel.
Lauriene Fonseca, operadora de loja
Lauriene é mãe solo de um filho que vai completar dois anos de idade e não recebe benefício do Bolsa Família. Para dar conta das despesas domésticas, ela conta com vale-alimentação e ajuda do pai de seu filho. “De resto, tenho que trabalhar de garçonete à noite até de madrugada para poder conseguir preencher o que falta.”
As mulheres também são protagonistas na luta por condições dignas de habitação. A arquiteta Helena Marchisotti, vice-diretora de Habitação do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de Minas Gerais (IAB-MG), destaca que no Brasil existem 4 grandes movimentos grandes em prol da moradia e que também oferecem capacitação. “É uma luta muito ferrenha, eles têm encontros, eles têm ocupações, têm um tipo de agenda e a gente participa. A gente participa das agendas estaduais e das agendas federais e agendas latino-americanas.”
Moradia digna
Arquiteto, Gabriel Viana afirma que pensar condições dignas de habitação não se reduz a construir uma casa ou um conjunto de apartamentos, mas é preciso ter o mínimo de conforto. “Fatores universais como saneamento básico, água, eletricidade e segurança são geralmente os mais citados quando se comenta de uma moradia digna, mas temos que lembrar que há os fatores sociais, econômicos, políticos e até culturais quando se trata do assunto.”
Temos que pensar em todos os aspectos que possam garantir uma vida plena e com possibilidade de melhora e crescimento, principalmente para as populações mais fragilizadas.
Gabriel Viana, arquiteto.
Dados da Fundação João Pinheiro (FJP) apontam que as regiões Norte e Nordeste do Brasil são as que possuem o maior déficit em termos relativos. No extrato por estados, o destaque vai para os estados do Maranhão e do Amazonas, localizados nesta região em que há predominância da taxa.
Na pesquisa, de 2019, a habitação precária representava 25,2% do déficit total, enquanto os domicílios improvisados passaram de 9,5%, índice registrado em 2016, para 13,4%.
Helena Marchisotti aponta que o problema do déficit imobiliário não está apenas na falta de casa, mas, também, na dificuldade de acesso ao mercado imobiliário. “A gente percebe que o déficit habitacional é bem menor do que o número de casas vazias ou subutilizadas. Se você pegar imóveis que estão vazios ou subutilizados, ele ultrapassa o valor do de utilizados.”
Se tem casa sem gente, então essa é a primeira coisa que a gente precisa pensar é que não é a lógica de sair construindo casa. Há uma questão que faz com que falte imóveis para quem não consegue acessar o mercado imobiliário.
Helena Marchisotti, arquiteta
A vida de quem mora na rua
No assunto moradia, uma parte da população brasileira que merece o olhar é das pessoas em situação de rua, impactadas pelo déficit habitacional ou por motivações diversas. Segundo levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), elas superaram 281 mil no país em 2022, representando um aumento de 38% desde 2019. O número revela o impacto da pandemia de Covid-19 nesse segmento da população.
Morador de rua por escolha, Wedson Ribeiro Mota, 35 anos, conhecido por Karioca, afirma que, ao atingir a maioridade e perder a sua mãe vítima do câncer, teve como opção de vida entrar para o crime, ou ir para as ruas, em lugares que não conhecia. “Eu tive que fazer essa escolha, pegar o trecho ou entrar para o crime, e eu preferi pegar o trecho. E para mim foi muito difícil, né? 18 anos, pegar o trecho… fui para Porto Alegre, uma cidade fria, não conhecia… e comecei a conhecer a rua, a viver na rua.” Karioca, que atualmente trabalha como garçom no Centro da capital mineira, relata que dentre os seus cinco irmãos um escolheu o outro caminho, foi morto e até hoje não teve seu corpo encontrado.
Estou na rua, mas é só passageiro, porque nós estamos aqui só de passagem, né?
Karioca
Segundo Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social entre os anos de 2007 e 2008, a escolha de morar nas ruas “está relacionada a uma noção (ainda que vaga) de liberdade proporcionada pela rua, e acaba sendo um fator fundamental para explicar não apenas a saída de casa, mas também as razões da permanência na rua”.
Políticas públicas
Lançado em março de 2009, durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Programa Minha Casa, Minha Vida é uma das iniciativas do poder público para tratar a questão da habitação. Com a recriação aprovada pelo Congresso Nacional em 13 de junho, o programa tem como prioridade atender famílias que tenham a mulher como responsável. Outras famílias, como as que tenham pessoas com deficiência, idosos e crianças e adolescentes, famílias em situação de rua e vulnerabilidade ou que vivem em áreas de risco ou de calamidade, estarão entre as atendidas.
A arquiteta Helena Marchisotti acredita que os governos, em todas as esferas, ainda não conseguem ver as reais necessidades de todas as pessoas, mesmo com programas sociais, e que há outros fatores ligados à falta de moradia. “Acaba alimentando aquele banco de dados, por exemplo, na minha região, eu não enxergo um esforço do poder público para abarcar essa população. Porque ela não tem uma carência só de casa. Ela tem uma carência também de um emprego formal, de uma qualificação, de um curso técnico de espaço na educação. Então ela precisa acessar outros canais, não só a moradia.”
O déficit habitacional é visto por especialistas como um desafio complexo que envolve não apenas a construção de moradias, mas também questões como acesso a crédito, regularização fundiária, planejamento urbano adequado e políticas de inclusão social.
Para a advogada e especialista em Direito Privado Samylla Móll, não há uma resposta simples para resolver o déficit habitacional no Brasil e que a solução começa com a erradicação da pobreza e da miséria e os seus impactos. “Garantido o alimento na mesa, a saúde básica, a escola para as crianças, há que se partir para programas de saneamento básico, retirada de famílias de áreas de alto risco de desastres naturais e construção de moradias de forma sustentável. A casa, em si, não confere dignidade ao ser humano. É preciso que ela venha acompanhada de comida na mesa, emprego digno, saúde mínima, educação e acesso à cultura.”
Conteúdo produzido por Ana Maria Rocha, João Victor Vieira, Julia Barreto, Lucas Faleiro, Lucas Maia, Luiz Fernandes na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard e do estagiário docente Marcus Túlio.
Leia também:
Centro de Belo Horizonte: mudanças geram controvérsias sobre o futuro da região
[…] de 2019 da Fundação João Pinheiro revelou que o Brasil tem um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias. Com o aumento populacional, isso significa que existe demanda para moradia no […]