A recente eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, no último dia 30 de outubro de 2022, trouxe mais base argumentativa para a defesa da tese de que há um movimento chamado Nova Onda Rosa na América do Sul, fazendo referência a ao fenômeno político Onda Rosa, ocorrido no início do século XXI, quando vários governos de esquerda, ao longo da primeira década do século, assumiram o poder na América do Sul. Mas quais são suas características e quais as semelhanças com o movimento anterior?
O que foi a primeira Onda Rosa?
A primeira Onda Rosa ocorreu no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, quando os países da América do Sul reagiram ao Consenso de Washington, uma política dos Estados Unidos e do Fundo Monetário Internacional (FMI) que dava mais protagonismo às ideias neoliberais e políticas de livre mercado impostas à América Latina. A eleição de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998, dá início ao que seria um movimento que praticamente todo o continente experimentaria, com líderes de esquerda sendo eleitos e um marcante crescimento econômico durante a primeira década do século.
Além de Chávez, surgem nomes como Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Evo Morales na Bolívia, José Pepe Mujica e Tabaré Vázquez no Uruguai, Rafael Correa no Equador, Michelle Bachelet no Chile, Alan Garcia no Peru e Fernando Lugo no Paraguai — apenas a Colômbia não ingressou, em momento algum, na Onda Rosa.
Mapa político da América do Sul — 2009
Buscando reduzir desigualdades e problemas sociais, os governos de esquerda eleitos lograram sucesso a curto prazo, aproveitando o boom das commodities, ou seja, a alta da venda de produtos não-industrializados para um gigante que não parava de se desenvolver: a China. O país asiático registrava altas históricas no PIB, crescendo 10% ao ano.
Rita de Cássia Louback, professora de Jornalismo da PUC Minas e doutora em Relações Internacionais, ilustra: “se você olhar de 2000 a 2008, quando vem a crise do subprime, todos os países cresceram, e os emergentes cresceram muito”. Ela lamenta a perda de oportunidade de alguns países latino-americanos em aproveitar o momento para investir em infraestrutura: “Você tinha o cenário favorável ao aporte de capital nessas reformas que precisavam ser feitas — alguns de nós perdemos o bonde da história de ter feito reformas que precisávamos para tornar isso [a riqueza trazida pelo boom] mais permanente, e, agora, temos um ambiente internacional completamente diferente, conflagrado num pós-pandemia que empobreceu até os mais ricos”.
Passado o momento de alta econômica entre os governos de esquerda, escândalos de corrupção vieram à tona — como a Lava Jato, que afetou diversos governos da América do Sul — , além de processos de impeachment questionáveis, como os de Fernando Lugo no Paraguai (2012) e Dilma Rousseff no Brasil (2016), com órgãos oficiais (como o Mercosul, no caso de Lugo) advogando pela tese de que se trataram de golpes institucionais.
Na Bolívia, houve um golpe de Estado tradicional, com Jeanine Añez chegando à presidência de forma ilegal em 2019, após diversos protestos contra o governo de Evo Morales, majoritariamente concentrados na cidade mais importante economicamente do país, Santa Cruz de la Sierra. Maurício Macri venceu na Argentina em 2015 e encerrou 12 anos ininterruptos de kirchnerismo, com Cristina Kirchner sob graves acusações de aparelhamento do judiciário e corrupção. No seu segundo mandato, Michelle Bachelet não teve a mesma aprovação do primeiro, o que levou à eleição do conservador chileno Sebastián Piñera, em 2018.
Nova Onda Rosa?
A nova Onda Rosa teria se iniciado com a eleição de Alberto Fernández, na Argentina (2019), seguido por Luis Arce (Bolívia, 2020), Pedro Castillo (Peru, 2021), Gabriel Boric (Chile, 2021), Gustavo Petro (Colômbia, 2022) e Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil, 2022). Entretanto, apesar das eleições de governos de esquerda e centro-esquerda na América do Sul, ainda não há consenso sobre a existência de uma Nova Onda Rosa no continente.
Mapa político da América do Sul — 2022
Para João Estevam dos Santos, professor de Relações Internacionais na Universidade Anhembi Morumbi e doutorando em Relações Internacionais, é muito cedo para falar em uma Nova Onda Rosa: “eu acredito que a Onda Rosa que tivemos nos anos 2000 foi algo um tanto diferente do que vemos hoje, tendo um ciclo de crescimento econômico especialmente ligado ao boom das commodities, e uma base social de esquerda mais forte que possibilitou sua ascensão e governabilidade”. Segundo ele, hoje, temos um panorama diferente, com governos que ascenderam em momentos de crise e não conseguiram contorná-la, citando a Argentina com a eleição de Alberto Fernández em 2019. João Estevam acredita que o mesmo pode acontecer com o Brasil.
A Casa Rosada, sob o governo de Fernández, passou por diversas crises, com o presidente tendo realizado uma festa enquanto a Argentina decretava o lockdown mais longo do mundo durante a pandemia; crescimento latente da pobreza; inflação astronômica; derrota do peronismo nas PASO (eleições primárias que definem quais serão os candidatos do próximo pleito) e rixa interna entre a vice-presidente, Cristina Kirchner, com o presidente Fernández. Se, por um lado, a esquerda argentina voltou ao poder e, em tese, teria inaugurado a suposta nova Onda Rosa depois de um governo do direitista Maurício Macri que aumentou a pobreza e a inflação, de outro lado, parece uma tarefa difícil, dados os resultados das PASO, que o candidato peronista às eleições presidenciais argentinas de 2023 vença.
Diferenças e semelhanças
O contexto pandêmico e as crises sociais geradas pela crise da Covid-19 teriam impulsionado a eleição da esquerda, e não um movimento propriamente ideológico como no início do século, de acordo com Rita Louback.
Na primeira onda, havia uma espécie de irmandade entre os governantes que assumiram: Chávez, Kirchner, Lula, Morales, Correa… Hoje, existem várias esquerdas no poder. Nessa segunda onda, é uma esquerda mais heterogênea”.
Rita Louback, professora de Relações Internacionais da PUC Minas
Diferentemente do contexto da Onda Rosa original, o perfil dos candidatos de esquerda e de sua oposição mudaram, com exceção do Peru, que teve uma eleição bem singular, com muitos candidatos, incluindo a já conhecida candidata Keiko Fujimori, contra o professor rural sindicalista Pedro Castillo, um outsider que, inclusive, já enfrentou três processos para ser retirado do cargo. A esquerda eleita na Colômbia e Chile, por exemplo, de caráter progressista e mais próxima de causas sociais inclusivas, se diferencia do tradicional bolivarianismo: Boric e Petro têm em suas agendas o apoio à comunidade LGBTQI+ e a paridade de gêneros, questões não compartilhadas com os governos de Peru, Bolívia e Venezuela.
Os adversários atuais também mudaram. Na Bolívia, apesar do tradicional Carlos Mesa ter ficado em 2º lugar nas eleições de 2019, Luis Fernando Camacho emergiu como uma expressiva alternativa mais alinhada à direita radical e, após ocupar a 3ª posição na eleição presidencial, consagrou-se governador do importante departamento de Santa Cruz, em 2021. Na Colômbia, o segundo colocado, Rodolfo Hernández, acompanha a mesma linha do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, recém-derrotado nas eleições brasileiras de 2022.
Diferentemente da Onda Rosa original, a atual é marcada por países em crises econômicas e polarizações latentes, como enuncia João Estevam:
Não podemos esquecer que no Brasil, na Bolívia, no Chile e na Colômbia, não existe uma base de apoio social tão intensa como houve no passado e, ainda, há uma oposição de direita muito forte que não permite tantas manobras, diferentemente do que se viu no início dos anos 2000”.
João Estevam, professor de Relações Internacionais na Universidade Anhembi Morumbi
Rita Louback endossa a mesma visão e usa Gustavo Petro como exemplo: “Petro é uma novidade dentro da esquerda latino-americana no caso da Colômbia — é a primeira vez que um governo de esquerda assume. Ele cria essa plataforma que o leva ao poder em um país muito dividido, a vitória foi muito apertada. Este é outro elemento: os outros que assumiram na primeira Onda Rosa tiveram uma margem de votos muito maior, muito mais confortável. As suas populações, àquela época, não estavam com essa polarização”. O mesmo fenômeno de eleições apertadas aconteceu no Brasil e no Peru, cujos pleitos tiveram a diferença entre os candidatos menor do que 2%.
Política de concessões
A divisão da população e a falta de base aos governos de esquerda na América do Sul vai obrigar os atuais eleitos a realizarem concessões ao centro e lidarem com a insatisfação popular de forma precoce, como ocorreu com Petro, que enfrentou protestos massivos com menos de 50 dias de governo, período que a professora da PUC Minas vê como “lua de mel” entre governados e governantes: “É preocupante ter gente na rua com poucos dias de governo, e, para piorar, o cenário mundial é dos mais sombrios, com a Rússia ameaçando usar arma nuclear [na guerra com a Ucrânia]. Junto destas inseguranças, o que acontece com o capital, que é tão importante para o projeto do Petro? Ele pode ser afugentado de países emergentes e ir para locais mais seguros, que é o trajeto feito em períodos de incertezas”. Outra dificuldade, segundo a professora, é a falta de garantia de cumprimento de contratos em caso de convulsão social.
As mobilizações populares, cada vez mais constantes, também são resultado da nova oposição que, para João Estevam, está “disposta a minar as bases de governabilidade do novo governo para implementar sua própria agenda, diferentemente do que houve nos anos 2000, em que estes governos de esquerda tinham mais liberdade de implementar sua agenda mais progressista. Hoje, isso parece ser mais limitado”.
No Brasil, manifestações contra Lula já ocorreram no dia de sua eleição; no Chile, Boric chegou a ter aprovação de apenas 24% com menos de um ano de mandato e sofreu um duro golpe com a rejeição da nova Constituição chilena, o que o levou a dialogar mais com o centro. Para o professor de Relações Internacionais João Estevam, a restrição à atuação dos governos “gera vários problemas, pois a limitação para cumprir com a sua agenda faz com que a população veja o governo como mentiroso, já que houve promessas não cumpridas. A partir do momento que acaba não se fazendo o que se propuseram a fazer, sua legitimidade acaba desgastada”.
Entenda o contexto político das principais economias da região
Argentina
A Argentina foi o país a dar início à suposta Nova Onda Rosa, com a eleição do peronista Alberto Fernández contra o direitista Mauricio Macri. Neste webstory, explicamos o contexto argentino desde 2019, quando a esquerda venceu, até a atualidade:
Assista também: como jovens argentinos lidam com este cenário de crise?
Brasil
O Brasil elegeu como próximo chefe de Estado, pela terceira vez, Luiz Inácio Lula da Silva, tradicional político de centro-esquerda, em um confronto acirrado com o atual presidente, Jair Bolsonaro: Lula alcançou 50,90% dos votos, enquanto Bolsonaro chegou a insuficientes 49,10%. Foi a primeira vez que um presidente brasileiro concorreu à reeleição e perdeu; também foi a primeira vez, desde a instauração da democracia, que o perdedor da eleição não felicitou o vencedor após a constatação do resultado do pleito.
Como foi o primeiro turno
Como indicavam as pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ganhou o primeiro turno — entretanto, a sua diferença para o segundo colocado, Jair Bolsonaro (PL), foi bem menor do que indicavam os levantamentos. Lula recebeu 48,43% dos votos, enquanto Bolsonaro chegou a 43,20%. Institutos de pesquisa prestigiados, como o IPEC e Datafolha, apontavam uma diferença de mais de 10%, com Bolsonaro atingindo um teto de 36%, enquanto Lula alcançaria 51%. Se, por um lado, as pesquisas acertaram o número do candidato do PT, houve falha na estimativa de votos ao candidato conservador, que levou o confronto ao 2° turno com uma margem muito menor do que se pensava.
Em uma corrida presidencial marcada por temas como a polarização, violência e estabilidade democrática, diferentemente do pleito de 2018, marcado pelo antipetismo e discurso de combate à corrupção, o contexto das eleições brasileiras de 2022 é muito singular dentro da história recente: um tesoureiro do PT foi assassinado por um bolsonarista em sua própria festa de aniversário em Foz do Iguaçu/PR; um apoiador de Bolsonaro matou a facadas colega que defendeu Lula no interior do Mato Grosso. A escalada da violência, incentivada pelo candidato do PL, que já falou sobre “metralhar a petralhada” e “varrer o PT para o lixo da história”, trazia inseguranças quanto à reação dos seus apoiadores em caso de uma derrota no pleito. No mesmo sentido, havia, também, uma preocupação referente à própria reação do atual presidente, que já deixou dúvidas no ar quando perguntado se aceitaria os resultados da eleição — Bolsonaro questionou e deslegitimou o sistema eleitoral brasileiro em diversas oportunidades, alegando, inclusive, ter havido fraude na votação que o elegeu.
Tais atitudes, aliadas aos sucessivos ataques à Suprema Corte protagonizados por seu governo e apoiadores, trouxeram à campanha de Lula um caráter de frente ampla pela democracia e contra o ultradireitista. Várias figuras anteriormente críticas ao candidato petista, como Marina Silva, Fernando Henrique Cardoso e até mesmo o jurista Miguel Reale Jr., autor do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, declararam apoio a Lula — inclusive, seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, foi o principal opositor do PT em corridas presidenciais no passado.
Em um primeiro turno com cara de segundo, os candidatos que obtiveram as duas maiores votações atrás de Lula e Bolsonaro, Simone Tebet (MDB), com 5%, e Ciro Gomes (PDT), com 3%, anunciaram apoio — com ressalvas — à campanha petista. A justificativa dos presidenciáveis derrotados foi, justamente, não ver garantias de respeito e manutenção à democracia por parte de Jair Bolsonaro. Entretanto, fortalecendo o discurso de frente ampla pela democracia, Lula teve de aceitar a exigência de que aderisse a propostas de Tebet e Ciro, como a paridade de gêneros no governo e o perdão de dívidas às famílias com nome no SPC, respectivamente. Este apoio se demonstrou essencial para o petista devido à curta diferença percentual em relação a Bolsonaro, mesmo com a vitória lulista sendo inédita na história.
Houve uma inesperada vitória massiva de aliados bolsonaristas nas corridas pelo Senado, Câmara dos Deputados e governos estaduais: foram eleitos candidatos como Damares Alves, no Distrito Federal, Sérgio Moro, no Paraná e Cleitinho, em Minas Gerais. Já o bolsonarista mineiro Nikolas Ferreira bateu recorde de votação à Câmara Baixa; Cláudio Castro e Romeu Zema foram eleitos no primeiro turno do Rio de Janeiro e de Minas Gerais na eleição aos governos dos respectivos estados. A expressiva vitória de aliados de Bolsonaro, somada à sua própria votação mais alta do que o previsto por pesquisas, trouxe um gosto amargo aos apoiadores do petismo que, em certo momento, chegaram a crer em uma vitória no primeiro turno.
As eleições de 2022 se demonstraram como as mais importantes dos últimos tempos, dando impulso a uma onda de extrema-direita surgida em 2018 que, depois de uma gestão desastrosa da pandemia (o Brasil foi o segundo país com mais mortes por habitantes no mundo, tendo mais de 600 mil mortos) e números socioeconômicos fracos (o país voltou ao mapa da fome e atingiu níveis recordes de desvalorização em relação ao dólar), parecia estar fadada ao enfraquecimento — o que, definitivamente, não ocorreu — e enterrou, ao menos por enquanto, o espaço de uma direita moderada representada por partidos tradicionais, como o PSDB.
Como foi o segundo turno e suas consequências
O segundo turno foi marcado por ataques entre os adversários e escândalos envolvendo Bolsonaro, como a polêmica frase “pintou um clima”. Em entrevista a um podcast, Bolsonaro afirmou que elas estavam se arrumando para “ganhar a vida”, sugerindo que eram exploradas sexualmente, quando, na verdade, participavam de uma atividade de uma ONG que dava curso de estética às refugiadas — as meninas tinham 14 anos.
As frases de Bolsonaro suscitaram um debate público sobre pedofilia e como o presidente teria, supostamente, dado a entender que teria se sentido atraído pelas crianças, ao utilizar o termo “pintou um clima”. Posteriormente, o presidente gravou um vídeo ao lado da primeira dama, Michelle Bolsonaro, e a embaixadora da Venezuela no Brasil, María Teresa Belandria, em que pediu desculpas pelo que disse e alegou se sentir injustiçado, reiterando que sua fala foi tirada de contexto. A oposição pediu uma investigação sobre o caso.
Entretanto, mesmo com o seu nome envolvido em questões tão delicadas, Bolsonaro seguiu com uma base sólida para o 2° turno, obtendo apoio da maioria dos governadores — tanto os eleitos no 1° turno, quanto os que acabaram eleitos no 2° turno –, desencadeando um fenômeno pouco usual: em alguns estados da federação, a população optou por um governador bolsonarista, mas rechaçou o candidato à presidência— foi o caso em Minas Gerais, Amazonas e Tocantins. O inverso ocorreu apenas no Amapá, que elegeu Clécio (SD), apoiador de Lula, para governador e votou, em maioria, em Jair Bolsonaro. Confira os mapas das eleições de governadores e presidente:
Mapa de apoio dos governadores na corrida à presidência — 2022
Mapa das eleições presidenciais — 2022
Colômbia
Gustavo Petro superou o engenheiro e empresário Rodolfo Hernández nas eleições colombianas de 2022, contando com 50,44% dos votos contra 47,31% — um pleito apertado em um país que nunca havia, em sua história, escolhido um líder que não fosse de direita ou centro-direita.
Quem é Gustavo Petro?
Filho de professores, Gustavo Petro é economista e ex-guerrilheiro do Movimento 19 de Abril, o M19, uma das várias facções que aderiu à luta armada na Colômbia no século passado. Petro foi senador e prefeito de Bogotá, e já havia se candidatado à presidência duas vezes antes de vencer este ano, em 2010 e 2018.
Com um discurso ambientalista, contra a guerra às drogas e a favor de pautas sociais progressistas, como programas de auxílio financeiro aos mais pobres e inclusão de minorias na sociedade, Petro foi eleito como símbolo de esperança de uma nova Colômbia.
Por que a Colômbia nunca teve governos de esquerda?
Existem distintas razões. Uma delas é que, desde a independência da Colômbia, todas as vezes que algum político mais alinhado à esquerda teve chances de vitória, ele acabou assassinado. São os casos de Jorge Eliécer Gaitán, morto durante sua campanha em 1948; e Luís Carlos Galán, assassinado em 1989. Essas mortes causaram indignação, fomentada pelo acordo de liberais e conservadores, a Frente Nacional, para que o poder permanecesse nas mãos de membros de uma exclusiva elite. Nesse contexto surgem as guerrilhas armadas, problema que o país enfrenta até hoje.
As guerrilhas são outra razão que ajudam a entender o porquê da dificuldade da esquerda ser eleita: muitas vezes, a população enxergava as atrocidades cometidas contra civis como algo inerente à esquerda, o que criou medo em votar na oposição, formando uma sociedade muito conservadora no momento de eleger seus representantes. A própria esquerda tinha problemas com o tema das guerrilhas: havia políticos que apoiavam a luta armada, enquanto outros a repudiavam, causando uma divisão, o que facilitou a hegemonia da direita e centro-direita no país.
Esse histórico colombiano ajuda a entender como foram as eleições de 2022. Petro foi ao 2º turno disputando com Rodolfo Hernández, um populista de direita considerado outsider. Essa foi a primeira vez, em 20 anos, que nenhum candidato do establishment ligado ao uribismo (legado do político Álvaro Uribe, ex-presidente nos anos de 2002 a 2010) foi para o 2º turno. Por si só, o pleito já era histórico, antes mesmo da vitória de Gustavo Petro. O povo clamava por mudança, mesmo que Hernández não fosse exatamente alguém que tinha como objetivo romper com as estruturas do país, já que, a sociedade colombiana é historicamente conservadora. Entretanto, Hernández, entre os conservadores, era o menos tradicional, demonstrando uma inclinação do eleitorado por uma renovação.
O que mudou?
A alteração do perfil do candidato ideal pensado pela sociedade colombiana passa pelos fortes protestos que sacudiram o país em 2019 e em 2021 contra o governo de Iván Duque, um político tradicional uribista. Em 2019, a insatisfação, principalmente, com a lentidão com que Duque estava levando a cabo o Acordo de Paz com as Farc, aliada a rumores de políticas de austeridade e corrupção, levou pessoas a protestarem pacificamente e sofrerem violenta repressão policial, o que gerou mais descontentamento e protestos cada vez mais massivos por todo o país.
Em 2021, por sua vez, a causa da revolta dos colombianos foi a proposição de uma nova reforma tributária que atingiria fortemente o bolso das classes média e baixa, o que serviu como combustível para a retomada dos fortes protestos de 2019. Para João Estevam dos Santos, professor de Relações Internacionais na Anhembi Morumbi, estas mobilizações “não se deram apenas contra das reformas, mas também por uma mudança do panorama social da Colômbia”. Os manifestantes pediam por um alento e pela melhora da vida do trabalhador, segundo o professor.
Além de todo o descontentamento com o governo de Iván Duque, é importante lembrar que a Colômbia tem sérios problemas sociais de longa data. As recentes manifestações são um reflexo disso também.
Vamos aos dados:
- A Colômbia é o quarto país mais desigual da América Latina e Caribe, segundo dados do Banco Mundial com base no índice de Gini;
- 39,3% da população colombiana vivem em pobreza, ou seja, com uma renda menor do que 89 dólares por mês (480 reais) e não pode se alimentar adequadamente, ter moradia digna ou adquirir bens básicos;
- 12,2% vivem em pobreza extrema, ou seja, com menos de 37 dólares por mês. Na cotação atual, esse valor seria 200 reais.
Com tanta desigualdade, é de se esperar que alguns grupos sejam mais afetados do que outros:
- Uma mulher no país, por exemplo, tem 1,7 vezes mais chances de estar desempregada do que um homem;
- Um indígena recebe, em média, dois anos menos de escolaridade do que outros colombianos;
- Cidadãos pretos têm o dobro de possibilidades de viver em um bairro pobre, na comparação com brancos.
Também houve reflexos da pandemia: a inflação em 2018, quando Duque foi eleito, era de 3,2%. Hoje, ela alcança 9,1%; devido aos gastos com saúde, o governo de Iván Duque deixou um déficit para o Estado — o ex-presidente queria diminuir esse déficit, justamente, com a reforma tributária proposta que foi rechaçada pela população nos protestos de 2021.
Pobreza e relação com o perfil do eleitorado
As eleições colombianas também foram uma forma de escancarar como diferenças socioeconômicas de regiões e departamentos influenciaram no voto.
Nos mapas abaixo, foram cruzados os dados entre os candidatos eleitos e o índice de pobreza multidimensional em cada departamento. Na análise do professor da Universidade Anhembi Morumbi, João Estevam, houve um racha na Colômbia, gerando uma sociedade polarizada. Ele traça um paralelo com a realidade das eleições brasileiras: “Regiões mais ricas votaram na direita, e as mais pobres votaram na esquerda.”
Eleição — Gustavo Petro x Rodolfo Hernández
Índice de Pobreza Multidimensional — 2021
O Índice de Pobreza Multidimensional é medido pelo Departamento Administrativo Nacional de Estatística da Colômbia (DANE), órgão público responsável pelo planejamento, levantamento, processamento, análise e difusão das estatísticas oficiais da Colômbia, e leva em conta fatores como educação; condições infanto-juvenis (como abandono escolar e trabalho infantil); desemprego e trabalho informal; acesso à saúde; e condições de moradia e acesso a serviços públicos.
De fato, ao se cruzarem os dados entre a pobreza e o perfil do eleitor, nota-se que departamentos cuja população tem a renda mais baixa tiveram tendência a votar à esquerda, enquanto os mais ricos votaram à direita. Entretanto, não foi uma regra: Vichada, por exemplo, é o departamento colombiano com maior índice de pobreza e deu 60% dos seus votos a Hernández — o fator socioeconômico não foi o único levado em conta no momento de decidir por quem votar. No caso de Vichada, pode se entender a inclinação à direita como uma resposta ao histórico violento do departamento no combate contra organizações paramilitares — o passado de Petro como guerrilheiro pode ter sido uma das razões que afastaram os eleitores de votar na esquerda.
Para João Estevam dos Santos, a divisão geográfica de votos também reflete como foi a divisão do país no plebiscito sobre o Acordo de Paz de 2016: “Os departamentos que foram mais afetados pela violência armada foram os que mais votaram a favor do acordo, enquanto os que menos sofreram (e são regiões mais abastadas economicamente) foram contra o acordo e disseram ‘não’”.
Plebiscito sobre o Acordo de Paz de 2016 com as Farc
Apenas os departamentos de Boyacá, Vichada, Guainía, Guaviare e Vaupés foram a favor do Acordo de Paz e optaram, nas eleições de 2022, por Hernández no confronto com Gustavo Petro — os departamentos restantes a favor do Acordo votaram pelo candidato de esquerda.
As particularidades de cada país da América do Sul que levaram à ascensão da esquerda, como as da Colômbia, que envolvem violência policial e conflitos armados, ou da Argentina, com uma inflação galopante, podem até conferirem maior incerteza em relação a uma nova Onda Rosa como movimento homogêneo, porém os tempos atuais dão a garantia de que a América do Sul está vivendo uma instabilidade política. Para Rita Louback, “é importante ficar de olho nas mudanças políticas e geopolíticas da região, e é sempre bom ter uma dose de realismo quando falamos da volta da esquerda na América do Sul. Há potencial de transformação social, mas não pode haver desilusões, nem ser pego desprevenido”.
Reportagem produzida para o Laboratório de Jornalismo Digital, no semestre 2022/2 do curso de Jornalismo da PUC Minas - campus Coração Eucarístico, sob a supervisão das professoras Verônica Soares e Maiara Orlandini.
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