5 de junho de 1921 pode parecer uma data qualquer no calendário anual daquela época, mas quando posta ao lado de 14 de abril de 1976 em um túmulo no Cemitério São João Batista, no Rio De Janeiro, essas datas se cruzam no nascimento e assassinato da estilista e ativista política, Zuzu Angel, que completaria 103 anos de idade neste ano. Em 2024, o ano em que rememoram-se os 60 anos do início da ditadura no Brasil, o nome de Zuzu é um dos mais lembrados quando o assunto é a defesa da liberdade naquele período.
Zuleika de Souza Netto, mais conhecida como Zuzu Angel, natural de Curvelo, Minas Gerais, deu os primeiros passos em sua carreira profissional como costureira ainda em sua terra natal. Pioneira no movimento que rompeu com a moda nacional baseada somente em reproduções e importações europeias, nos anos 1960, ela se destacou como uma das principais estilistas do Brasil ao apresentar criações caracterizadas por cores vibrantes, designs únicos e elementos da cultura popular — rendas nordestinas, chitas coloridas, conchas, pedras brasileiras e estampas que retratam a flora e a fauna tropicais — que capturaram a essência da brasilidade na moda. Os famosos “anjos” de Zuzu se tornaram o principal símbolo de sua estética singular.
Seu trabalho ganha ainda mais força quando a estilista passa a vestir figuras importantes, como as primeiras-damas Sarah Kubitschek e Yolanda Costa e Silva, além de modelos e celebridades como Elke Maravilha, Liza Minnelli, Joan Crawford e Kim Novak. Nos anos 1970, com sua carreira já consolidada, Zuzu Angel atingiu um de seus pontos mais altos ao abrir sua loja em Ipanema, no Rio de Janeiro, fortalecendo ainda mais sua presença na capital fluminense e solidificando seu legado na moda brasileira.
A morte de ZuZu Angel e a retratação na imprensa
“Causa Mortis: em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto de perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985.” - Certificado de Óbito
No dia 14 de abril de 1976, na Estrada da Gávea, próxima à saída do Túnel Dois Irmãos – hoje batizado Túnel Zuzu Angel -, no Rio de Janeiro, Zuzu Angel foi brutalmente assassinada por agentes do Estado brasileiro – ao contrário do que a imprensa da época divulgou, mas segundo o que consta em sua certidão de óbito, emitida somente em 2019.
Quase cinco décadas após o falecimento de Zuzu Angel, seu impacto na moda e na história política e democrática brasileira permanece vivo. Esse legado tornou-se um propósito também para sua filha do meio, Hildegard Angel, jornalista de formação e militante de causas sociais, que, aos seus 74 anos, continua dedicando-se a preservar a memória de seus familiares assassinados pelo regime ditatorial.
Hilde, como gosta de ser chamada, descreve, logo nos primeiros minutos de entrevista com o Colab, sua indignação com a abordagem dos veículos de mídia tradicional atuais ao se tratarem da morte de seus familiares e pontua uma certa “preguiça mental” por parte dos mesmos em relacionar a morte de sua mãe a um assassinato, denunciando-os com apoiadores do Golpe Militar de 64.
Até hoje, mesmo já tendo o novo atestado de óbito, tanto para minha mãe quanto para o meu irmão, as publicações brasileiras se referem ao assassinato da minha mãe como um acidente com causas inexplicáveis. Isso, eu acho, se deve muito a uma preguiça mental da mídia atual, devido à facilidade de acesso às pesquisas no Google, elas vão na primeira pesquisa e isso vira verdade definitiva. […] As novas gerações são boicotadas porque elas não têm acesso à realidade. Elas têm acesso a versões convenientes para quem as divulga. Então, eu acho que é uma crueldade que é feita com os jovens brasileiros que não haja essa responsabilidade de informar corretamente e levando em consideração a verdade. Então, com esse novo império da mentira, até os que se propõem a dizer a verdade a relativizam em função dos ganhos econômicos”.
Hildegard Angel
Stuart Edgart Angel Jones, o primogênito de Zuzu Angel, foi quem deu início ao histórico de luta e resistência na família Angel. Nascido em Salvador (BA), ele passou a maior parte de sua vida na capital do Rio de Janeiro. Era estudante de economia da UFRJ durante a ditadura militar e neste mesmo período se integrou ao MR8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro).
Stuart, de codinome Paulo ou Henrique, foi um dos importantes guerrilheiros da luta armada contra o regime militar no Brasil. Em 14 de junho de 1971, foi preso, próximo a base do MR8 no bairro Grajaú e, segundo o que conta a versão mais conhecida e difundida de sua tortura e morte, Stuart Angel teria sido amarrado a um carro e arrastado por todo o pátio da Base Aérea do Galeão.
Desde o desaparecimento de Stuart, solucionar o paradeiro dele e buscar por justiça tornaram-se o principal propósito de vida de Zuzu Angel. Das buscas pelos quartéis e delegacias do Rio de Janeiro, ao acesso às informações sobre o brutal assassinato de Stuart, incluindo as tentativas de intervenção no Congresso dos Estados Unidos junto ao senador Ted Kennedy, visto que Stuart possuía cidadania americana, até sua morte, Zuzu nunca soube do paradeiro do corpo de seu filho, mas também, nunca deixou de procurar por respostas.
Hildegard também menciona o livro “Memórias de uma Guerra Suja” (2012), do ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra, que afirma que o coronel Freddie Perdigão foi o organizador da emboscada que matou Zuzu Angel. Ainda de acordo com Guerra, a emboscada foi encomendada a ele diretamente pelo gabinete do general Geisel, então presidente do Brasil.
Esse clichê de dizer que a Zuzu Angel foi morta por causas desconhecidas, inexplicadas, quando foi tudo muito bem explicado, até com o livro publicado pelo agente do DOPS, que conta como ela foi assassinada, por quem, quando, onde e por quê […] Então, eu acho que devido a uma certa preguiça e indolência e falta de interesse de uma mídia que deveria ser mais consequente e responsável, as mentiras se perpetuam, não apenas no caso da minha mãe”.
Hildegard Angel
Em 2011, uma comissão proposta pela então presidente Dilma Rousseff, investigou e rememorou os crimes e violações dos direitos humanos da Ditadura Militar do Brasil. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou os períodos de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. Foram mais de 100 reuniões organizadas pela comissão, ouvindo vítimas e testemunhas, bem como a convocação de agentes da repressão para prestar depoimentos. Em uma dessas audiências, em 2014, Cláudio Antônio Guerra, ex-agente da repressão e autor do livro citado por Hildegard, confirmou a participação dos agentes da repressão na morte de Angel.
O Legado de Zuzu Angel
Em 1971, no consulado brasileiro em Nova Iorque, a artista apresentou o primeiro desfile-protesto já visto e uniu-se a outras mães brasileiras que também tiveram seus filhos sequestrados, torturados e assassinados nos porões da ditadura. Ativista dedicada até o fim de sua vida, Zuleika encontrou na moda uma ferramenta para direcionar os olhares da comunidade internacional e denunciar os horrores da ditadura civil-militar que sufocou o Brasil por 21 anos, e que, sustentada pela narrativa de “um mal menor para combater o comunismo que ameaça a nação”, eliminou aqueles que ousaram se opor à repressão.
O marco estabelecido pela estilista através do desfile de 1971 fez com que, anos à frente, sua filha Hildegard, a atual Presidente do Instituto Zuzu Angel (IZA), se mobilizasse para a criação, em 1995, do primeiro curso superior de Design de Moda do estado do Rio de Janeiro, reconhecido pelo MEC, em parceria com a Universidade Veiga de Almeida (UVA).
No Rio de Janeiro, o primeiro curso superior de moda foi o nosso, que foi feito com a Veiga de Almeida. Esse curso deu filhote, foi transformador. Nós contratamos o Joãosinho Trinta (carnavalesco) para fazer o laboratório, para juntar o carnaval com a moda. E agora haverá uma universidade de carnaval com a moda, isso é muito importante. Você dar um primeiro passo é muito importante. Então, a partir do curso do Instituto Zuzu Angel, que foi gerado, criado a partir das propostas dela”.
Hildegard também fala sobre identidade e legitimidade, propostas por sua mãe, que mudou a moda brasileira, deixando às gerações seguintes um patrimônio inestimável de reconhecimento da cultura nacional como elemento essencial para o reconhecimento do estrangeiro.
Ela propunha uma moda com brasilidade, moda com nossos valores, com a nossa cultura, com a nossa natureza, com as nossas tradições, os nossos mitos, Maria Bonita e Lampião, as mulheres candeias, os baianos [..] E ela percebeu que você só teria condição de exportar, de criar interesse no estrangeiro, se você fizesse uma moda com brasilidade.”
Dentre muitos artistas, Zuzu Angel é um dos nomes que recebe reconhecimento do legado deixado na luta contra a opressão e a violência na Ditadura, a maneira como a modelista e estilista encontrou ferramentas para dar voz a sua dor e ao seu repúdio aos crimes que os governos daquela época praticavam desmedidamente, deixou uma marca na sua história e na história do Brasil. As novas gerações ainda são impactadas por seu exemplo de trabalho e comprometimento com a sua consciência e com seus ideais.
Já passamos o bastão para vocês. Ninguém tem que colocar a vida em risco, ninguém tem que sair dando tiro, mas tem que ter consciência. O que há de mais revolucionário é a consciência. O que há de mais revolucionário é o conhecimento. O que há de mais revolucionário é o argumento, é ter instrumentos para argumentar e saber o que é melhor para si e saber o risco que se corre quando a mentira confronta a verdade.” – pontua a filha de Zuzu, Hildegard Angel.
As gerações futuras de Zuzu Angel
A geração futura, representada pelas filhas de Zuzu, Hildegard e Ana Cristina Angel, não teve outra opção a não ser unir-se ao propósito da mãe. Embora ainda jovens durante o período militar e pouco entendidas do que exatamente acometia seus familiares, as sucessoras de Zuzu Angel, ainda que indiretamente, se mobilizaram contra as injustiças da ditadura. Desde então, nunca mais pararam de agir para evitar que a história de violência e brutalidade sofrida por sua mãe e irmão se repita.
Santo de casa não faz milagre, é um ditado mineiro da minha família mineira. Nós achávamos que o nosso irmão era quem era o herói.[…] Nós tínhamos muito medo pela mãe, porque ninguém quer perder a mãe, assim como ela não queria perder o filho. Nós tínhamos muito medo de perder a nossa mãe pela sua luta por um outro filho, que não éramos nós. Olha que coisa complicada, freudiana. Mas nós dávamos todo apoio à mamãe, apoio de não obstaculizar, não reclamar. Era um sofrimento interno. […] A luta da mamãe foi uma luta isolada. O mérito da luta dela foi dela, a coragem foi dela”.
Hilde ainda atua como jornalista, até o presente momento, em um dos grandes veículos de mídia independente nacional, o Brasil 247. A filha de Zuzu é colunista, apresentadora do programa “Conversas com Hildegard Angel”, no mesmo veículo, e uma formadora de opinião ativa nas redes sociais onde está presente.
Antes de encerrar sua entrevista com o Colab, Hilde deixa um recado para a nova geração de colegas de profissão:
Eu acho que os futuros jornalistas têm que ler sobre essa época, ler os bons historiadores, têm que acompanhar a mídia progressista que tem grandes articulistas, muito bons, e que servem de orientação. E o jovem tem que aprender, tem que estudar, tem que ler. É isso. E não vir com o prato pronto da Rede Globo, da Rede Record, da Rede disso, da Rede daquilo. Isso é rede. Eles acham que nós somos peixes para pescar na rede. Nós não somos peixes, não. Nós somos peixe grande”.
Reportagem produzida por Gabriela Reis, Ilana Penido e Luiz Otávio Barbosa.
Que matéria maravilhosa!