A partir de dados disponibilizados pela entidade representante das instituições de ensino superior do Brasil, o Semesp, houve um o aumento na quantidade de matrículas de alunos autodeclarados indígenas no ensino superior foi de 374% entre 2011 e 2021. Apesar desse crescimento expressivo, o total desses estudantes no ano final da pesquisa era em torno de 46 mil, número que representa apenas 0,5% do total de alunos na universidade.
O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 garante que: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Logo, recai, principalmente, sobre as autoridades públicas e direções das universidades criar e manter políticas a fim de apoiar os ingressantes da graduação e tornar a jornada mais fácil. Já existem, por exemplo, leis federais e estaduais que garantem vagas destinadas aos indígenas, como a Lei de Cotas (Lei 12.711, de 2012), que reserva no mínimo 50% das vagas em universidades e institutos federais para estudantes que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas.
Gilson Ipaxi’awyga Tapirapé, indígena nativo do povo Apyãwa, graduado, especializado, mestre e também professor efetivo na Universidade Federal de Goiás (UFG), apontou para a importância da presença indígena no posto de docentes na universidade. “A partir do momento que um professor indígena se enquadra como professor na universidade, ele leva consigo conhecimento de saberes especializados do seu mundo, então a dinâmica de ensino na universidade vai ser diferente”.
A partir da fala de Gilson, percebe-se que a presença de indígenas como docentes no meio acadêmico representa muito mais do que inclusão: é um fomento crucial para a verdadeira interculturalidade. O professor reconhece a universidade como um projeto colonialista, no qual a luta pela democratização e diversidade no universo educacional é diária e repleta de resistência. Para ele, a presença indígena representa a inserção de um novo olhar dentro do mundo acadêmico, desafiando a visão convencional de que a ciência é única e enriquecendo esse ambiente com uma compreensão mais profunda das complexidades culturais.
Ao inserir pessoas com saberes e culturas tradicionais como docentes na academia, abrem-se portas para que o ambiente universitário se transforme. Gilson Tapirapé declara, como educador e indígena, que para a descolonização desse universo é essencial o diálogo com outras formas de conhecimento, promovendo a interculturalidade e fazendo com que ele se torne um lugar de partilha.
Gilson também alerta que a ciência não é uma entidade homogênea, mas, sim, um conjunto de perspectivas que refletem as maneiras pelas quais os seres humanos compreendem e interagem com o mundo ao seu redor. “Se existe diversidade dentro do país, é porque existe diversidade também nas ciências. Não adianta discutir a interculturalidade sem levar em consideração a diversidade de saberes e diversidade do mundo que existe no país”, afirma, defendendo a necessidade de reconhecer a diversidade do conhecimento no ambiente acadêmico e valorizar a diversidade de saberes presentes na sociedade.
A discriminação e o preconceito em relação às populações indígenas é uma realidade que acompanha a sociedade. A presença da cultura indígena no universo acadêmico também pode ser vista como esperança para diminuir a discriminação, além de ser uma forma de colocar em pauta debates, valores e diversidades indígenas na universidade, um ambiente em que a colonialidade se faz fortemente presente. O pensamento é compartilhado por Gilson e por Werymehe Alves Braz, indígena Pataxó, moradora da aldeia Muã Mimatxi em Minas Gerais. Graduada em Formação Intercultural Para Educadores Indígenas e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela reforça a importância da inserção dos indígenas no meio acadêmico, considerando que, historicamente, eles foram silenciados e tiveram suas histórias narradas e escritas por pessoas não indígenas
Outras formas de encarar a natureza
Gilson Tapirapé compartilha que a relação com a natureza e com o sobrenatural presente nos conhecimentos indígenas é parte vital da cultura e da ciência para sua comunidade, sendo tidos não só como fonte de entendimento do mundo, mas também base fundamental para sua identidade cultural. Ele ressalta que é uma oportunidade levar para o público não indígena essa maneira de olhar para o mundo. Ao levar esses saberes para a universidade, os professores indígenas não apenas fortalecem suas próprias comunidades, mas também enriquecem o tecido cultural e intelectual da sociedade como um todo. O professor conta, ainda, que procura compartilhar seus saberes através da oralidade, pois considera que a escrita nunca dá conta de expressar o que ela consegue transmitir.
Visando à valorização da ancestralidade, Werymehe compartilha a história de sua mãe no que se diz respeito à alfabetização: ela se negou a ser alfabetizada em uma língua não indígena, considerando os ensinos passados através da oralidade, por uma cultura que honra a terra, a natureza e os mais velhos. No livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, o filósofo Ailton Krenak afirma: “Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência”. Esse pensamento reforça a importância da inserção dos saberes indígenas em outros grupos culturais.
Apesar de reconhecer a relevância da inserção do conhecimento indígena nas universidades, Gilson declarou que uni-lo ao conhecimento acadêmico é um desafio devido às grandes diferenças presentes nesses sistemas de conhecimento. Mas, mesmo assim, existem oportunidades de encontrar maneiras de integrar essas perspectivas diversas, valorizando e respeitando a singularidade de cada sistema e buscando formas de diálogo e cooperação.
Reportagem: Ana Clara Torres, Gabriela Reis e Júlia Vida