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True crime e os desafios éticos da representação de crimes reais

Em 24 de setembro de 2021, o duo de filmes-documentários O menino que Matou Meus Pais e A menina que Matou os Pais foi lançado na plataforma de streaming da Amazon Prime. Nas tramas, foram representadas as versões da história do crime do assassinato do casal Richthofen, ocorrido em 2002, a partir da ótica dos depoimentos de sua filha, Suzane Von Richthofen, e de seu então namorado, Daniel Cravinhos, em seu julgamento, no ano de 2006. O objetivo desse formato, opção dos roteiristas Ilana Casoy e Raphael Montes, foi colocar em contraste versões controversas do mesmo fato para assim estimular cada espectador a interpretar a história.

A estreia incitou diversas discussões em relação à documentação de crimes reais e seus efeitos na sociedade. Fenômeno mundial, a produção de representações de crimes cruéis é uma crescente há diversas décadas no Brasil e no mundo. No cenário cinematográfico brasileiro, ainda no ano de 1908, foram lançados três filmes distintos que contam a história do “Crime da Mala”, que ocorreu na primeira década de 1900, em São Paulo. Já no cenário do cinema mundial, um exemplo de produção dupla com o mesmo fato narrado duas vezes é o Funny Games, Violência Gratuita, como lembra o professor de Cinema da PUC Minas, Pedro Vaz Perez.

Banners oficiais dos filmes lançados em 2021 / Reprodução: Divulgação

“A gente tem casos, por exemplo, como o diretor do filme Funny Games, Violência Gratuita, o Michael Haneke, que dirigiu o mesmo filme duas vezes, a mesma ficção duas vezes: uma em alemão e outra em inglês, para fazer uma refilmagem nos Estados Unidos”, relembra Pedro. “Ele fez exatamente o mesmo filme, com os mesmos planos, a mesma duração, mas com outros atores e outro texto”, completa. Diante desse fato, a estratégia utilizada nos filmes do caso Richthofen não é exatamente original, mas parece uma boa jogada de marketing, segundo o professor.

A sensibilidade é essencial na cobertura jornalística

Modus Operandi é um dos podcasts mais ouvidos do Brasil e aborda uma narrativa sensível sobre crimes reais de todo o mundo. Idealizado, roteirizado e narrado pela publicitária Mabê Bonafé e pela cineasta Carol Moreira, o programa reúne amantes de true crime em uma base de ouvintes chamada de operanders. Em entrevista ao Colab, Mabê Bonafé comenta que, para comporem a análise do caso, elas analisam o contexto social e histórico do crime, de maneira a entender as influências e o porquê do crime ter acontecido da forma que aconteceu. “O foco nunca é a violência e, mais do que discutir as ações em si, a gente gosta de falar sobre todo o caminho que a pessoa percorreu até ali”, conta a publicitária.

Ela também comenta sobre a importância da sensibilidade quando se trata da documentação desses delitos, uma vez que se analisa a vida de vítimas, pessoas, que tiveram suas vidas ceifadas e histórias acabadas, o que também repercute na vida de outras pessoas. Por esse motivo, as podcasters decidiram nunca abordar casos que ainda estejam acontecendo, como forma de respeito às vítimas, de garantir a melhor apuração dos fatos e evitar o sensacionalismo.

Crime Scene Do Not Cross / Foto de Puamelia, CC Search

A cobertura midiática de casos de crimes brutais, principalmente alguns dos mais relevantes como o Caso Eloá e o Caso Richthofen, no Brasil, e o Caso O. J. Simpson, nos Estados Unidos, falha bastante no quesito sensibilidade. No de Eloá, por exemplo, a cobertura insensível dos programas televisivos impossibilitou o contato da polícia com o sequestrador da jovem. A mídia optou pelo espetáculo ao entrevistar, sem preparação, o suspeito Lindemberg Alves ao vivo, fato que, infelizmente, contribuiu para o desfecho fatal da história.

“Entendo que é papel da mídia informar e mostrar os fatos durante os acontecimentos, mas acredito que dá para fazer isso sem sair por aí divulgando qualquer informação que surja em cima de uma situação, sem nenhum tipo de responsabilidade em checar as infos [informações], não fazer julgamento, e nem buscando furos jornalísticos apenas por causa de audiência. O ideal seria contar com especialistas da área que possam embasar e ensinar sobre alguns temas”, conta a host do Modus Operandi.

Além disso, Mabê também aponta o caráter espetacular da sociedade e a presença de conteúdos efêmeros, que a mídia tem a tendência de acentuar. Para ela, os veículos pecam com a abordagem sensível e, por consequência, pecam com a dignidade da história das pessoas envolvidas.

“As pessoas têm muita curiosidade e até um desejo ávido por casos cruéis”

Mabê Bonafé

Por que o gênero true crime é tão atraente?

Daniela Ferreira, 38, estudante de jornalismo da PUC Minas, é uma das pessoas que se interessam por acompanhar e explorar o true crime. Tendo o costume de se inteirar das novidades pela internet e por documentários, a jornalista em formação conta que tem curiosidade sobre esse assunto desde sempre, por ter grande interesse na questão social da criminologia e as motivações psicológicas e manipuladoras que envolvem o crime.

“Quando eu era mais nova, eu tinha vergonha de comentar sobre isso [crimes reais de interesse] por medo do estranhamento dos outros, mas, agora, me sinto muito mais confortável compartilhando minhas pesquisas e descobertas”, conta Daniela. Ela ainda comenta que, a partir de seus estudos de true crime, percebe muitos padrões de comportamentos de pessoas próximas ou de personalidades da internet, e que acha super interessante o tanto da psique humana que é possível aprender a partir da observação da ação de criminosos.

Cena de crime. Foto de Faruk Tokluoğlu / Unsplash. Imagem meramente ilustrativa.

O interesse mundial pelo true crime cresce cada dia mais – como pode-se observar no nível de popularidade de podcasts como o Modus Operandi, Projeto Humanos, Serial e Crime Junkie, de séries de plataformas de streaming como Mindhunter ou American Crime Story, ou filmes documentais como O Menino que Matou Meus Pais, A Menina que Matou os Pais ou Ted Bundy: Face do Mal. Da mesma forma que o debate provocado por essas produções pode ser saudável, como forma de estudo e observação, ele pode incitar o fanatismo e paixão da população pelos criminosos.

Ficção que romantiza os criminosos

É fato que a documentação de tais eventos estimula o debate sobre saúde mental, relações interpessoais e segurança civil, porém, às vezes o debate e a representação ficcional levam à obsessão e ao fanatismo. Nesse sentido, quando um conteúdo da ficção se baseia em eventos reais, é notável o desafio de encontrar o equilíbrio entre trazer a mensagem principal sem romantizar a história e os personagens.

Essa tendência, por exemplo, pôde ser observada por Mabê Bonafé na representação cinematográfica do criminoso sexual estadunidense Ted Bundy no filme A Face do Mal. “O filme pecou em muitas coisas, pois transformou um dos maiores criminosos sexuais em uma pessoa extremamente carismática, que provocava empatia, sem trazer nenhum contraponto. Distorceu fatos de sua vida, como o relacionamento dele com a namorada, que parecia um conto de fadas quando, na vida real, não era assim, apenas para causar um choque.”

Na prática, existem diversos criminosos que utilizam do carisma para a manipulação das pessoas e a efetivação dos crimes, porém, as telas devem representar isso com o cuidado necessário, o que não foi o que aconteceu nesse longa-metragem. Um fato curioso é que o condenado em questão, Ted Bundy, reuniu milhares de groupies – admiradores – por todo o mundo e, enquanto vivo, recebia dezenas de cartas de amor de pessoas que genuinamente se atraíam por ele e o admiravam. Outra classe desses groupies são os Richthórfãos – fãs assumidos de Suzane Von Richthofen, réu do caso de um dos assassinatos mais famosos do Brasil.


Glamourização gera banalização

Diante desse tipo de midiatização de fatos reais, não é incomum nos perguntarmos se é possível trazer uma narrativa 100% real e factual ou se sempre há um pouco de ficção. O professor Pedro Vaz Perez afirma que toda narrativa é uma representação e, enquanto representação, sempre é “uma visão enviesada do objeto que está sendo representado”. Ele ainda explica que toda história pode ser contada por diferentes pontos de vista, seja ela de gênero ficcional, ou de gênero documental. “O documentário também é uma ficção nesse sentido, ele é uma ficcionalização, é sempre uma narrativa, uma performance, uma construção que poderia ser outra, sempre uma visão parcial dos fatos”.

Para além, outro questionamento constantemente levantado quando o assunto é o gênero true crime, é a glamourização da violência e banalização dos crimes. “Quando um conteúdo de ficção é baseado em fatos reais, parece sempre desafiador encontrar um equilíbrio entre trazer uma mensagem e não romantizar a história”, ressalta Mabê Bonafé.

Colab Indica: conheça o podcast de true crime ‘Modus Operandi’, com as vozes de Mabê Bonafé e Carol Moreira

Texto escrito por: Giovanna de Souza e Dara Russo

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