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Foto: Marianna Ferry

Tik Tok e profissionais da dança: parceria ou conflito?

Dançarinos e influencers. Até onde as danças virais interferem na dança profissional?

O Tik Tok é uma rede social com mais de 800 milhões de usuários, de acordo com dados de janeiro de 2021. Atualmente, é responsável por ajudar a definir ‘trends’, assim como hits musicais ou “danças virais” ao redor do mundo. Para os dançarinos, isso inspira um questionamento: afinal, até onde as danças virais interferem na dança profissional??

Um diálogo aberto sobre essa questão, com vários dançarinos profissionais renomados, como Alyson Stoner (“Ela Dança, Eu Danço”, 2006), Hokuto “Hok” Konishi (“All Styles”, 2018) e Justin “Jet Li” Valles (“Ela Dança, Eu Danço 4”, 2012), foi realizado em janeiro deste ano via aplicativo Clubhouse. O debate levantou perspectivas sobre por que a plataforma estaria afetando a carreira dos profissionais da dança ou o futuro dos dançarinos. No Brasil, a controvérsia também está em alta.

Engajamento interferindo na dança profissional

De acordo com relatos de dançarinos em diversas plataformas de debates, a falta de zelo com a arte performática traz danos a longo prazo para a comunidade da dança. O debate na plataforma Clubhouse denominado Is TikTok Destroying Dance? (O Tik Tok está destruindo a dança?) trouxe reflexões para dançarinos do mundo inteiro que participaram do evento online. O debate era acerca do conteúdo disseminado no aplicativo ter mais a ver com autopublicidade e engajamento do que com qualidade do conteúdo propagado. Coreógrafo, professor e dançarino profissional com mais de 18 anos de carreira, Jonatas dos Santos Cardoso, conhecido artisticamente como Jo Cardoso, afirma que a situação se deve ao sentimento imediatista que acomete a sociedade atual.

Foto: ErnnaCost

O professor esclarece que as pessoas estão optando pelo “caminho mais fácil”. Ao invés de treinar coreografias mais desafiadoras, como os movimentos reproduzidos por Beyoncé em Single Ladies há alguns anos atrás, escolhem passos simples e virais para um vídeo curto. Isso gera maior alcance com melhor possibilidade de engajamento.

De acordo com Jo, “É tudo sobre o hype, é tudo sobre o máximo de pessoas, curtidas, comentários, compartilhamentos e seguidores que eu conseguir sem fazer muito esforço”. Então, não é possível negar a relevância da dança num contexto social e cultural. E, quando esse objetivo se perde, a dança passa de algo emocional e relacionado à energia para instrumento de popularidade. “A falta de criatividade, a pandemia, esse hype… tudo motiva para que as pessoas cada vez façam menos. Façam apenas o básico”, Jo esclarece. Por isso, é tão complicado definir até onde as danças virais interferem na dança profissional.

Ensinamentos (des)embasados nas danças virais

Um caso recente muito comentado entre a comunidade da dança é o vídeo postado no IGTV (Instagram) da influencer Mirela Janis, de 22 anos, intitulado “Aprenda passos para viralizar suas dancinhas”. No vídeo, ela estaria supostamente ensinando danças virais do Tik Tok para os seus mais de seis milhões de seguidores. O vídeo pode ser considerado uma ferramenta de desvalorização do profissional, principalmente dos professores de dança.

Foto: ErnnaCost

Jo Cardoso menciona o vídeo como exemplo da problemática do Tik Tok para a dança. Ele relata como ponto negativo a influencer tentar ensinar passos sem preparo ou conhecimento. Também explica que a influencer acaba declarando completo desprezo pela cultura por trás dos movimentos apresentados no vídeo quando inicia a aula com “Eu não sei o nome dos passos, mas a gente inventa. O importante é fazer legal e bonito”.

O vídeo foi criticado por dançarinos e professores pelo Brasil, que consideraram a fala desrespeitosa e uma apropriação cultural. Durante a live que realizou no Instagram, Jo comenta que é uma pena Mirela exercer a função de professora de maneira irresponsável. Ele acrescenta que ela estaria ignorando a cultura e o conhecimento que o professor tem com o objetivo de passar para seus alunos.

“A partir do momento em que ela não tem a dança, ela não tem o conteúdo. Ela não tem propriedade do que ela precisa passar pra frente, então ela não tem esse direito. Porque ela não estudou para isso!”, acrescenta Jo se referindo ao fato de alguns influenciadores digitais se colocarem em posições para as quais não têm formação ou preparo.

Por meio de uma sátira videográfica, Diego Josh, 21 anos, que é professor e profissional da dança há cinco anos, também manifestou seu descontentamento pelo vídeo da influencer. O dançarino traz uma mensagem no fim da publicação pedindo “Parem de deturpar a cultura preta!”, associando o ato à apropriação cultural do hip hop, que é uma vertente da cultura preta estadunidense. Diego disserta a respeito da falta de cuidado de influencers como Mirela em relação aos meios para atingir seus objetivos de engajamento nas redes sociais. “Muitas pessoas estão conseguindo se tornar mais populares, se tornarem virais por conta da dança. E, às vezes, isso acaba ludibriando a pessoa”, ele aponta.

Mirela postou vídeos nos stories do Instagram, logo após a repercussão entre a comunidade da dança, desculpando-se com os dançarinos e professores que se sentiram ofendidos. Ela também explica que a intenção do vídeo foi alcançar pessoas que normalmente não têm contato com o mundo da dança e facilitar a informação. A influencer acrescenta que terá zelo com informações como nomes de passos em seus próximos tutoriais. Também relata que entende a importância da valorização do profissional da área. Entretanto, o vídeo objeto de crítica ainda está disponível no perfil da influencer. Atualmente, constam mais de 1,4 milhões de visualizações.

Problema para os professores

Imagem: reprodução/YouTube Canal Millennium Dance Complex Brazil/Vídeo “Atenção – Pedro Sampaio & Luisa Sonsa – Class Jo Cardoso”

Com a pandemia do novo coronavírus, a forma de socialização passa por alterações. O “novo normal” transforma o presencial em online e cria uma moderna forma de interação. Esses fatores resultam em uma hipersocialização das plataformas de rede social, nas quais o conteúdo é voltado para cliques rápidos e interações. 

De acordo com Jo, o Tik Tok é um meio de as pessoas encontrarem a dança e se interessarem por ela. A rede social como ferramenta de divulgação e popularização poderia servir para estimular as pessoas a buscarem professores qualificados. O empecilho da conexão entre a plataforma e as salas de aula ocorre no momento em que influenciadores digitais se colocam na posição de professores. Isso cria um “atalho” para processos de aprendizado que não podem ou não deveriam ser encurtados. “O tentar e o conseguir está muito mais fácil, porque eu olho (o vídeo), tento três vezes e ‘consigo’. Beleza, tenho essa sensação de conquista”, argumenta Jo. A facilidade em torno desse processo é uma falsa sensação de êxito. Isso acontece porque não existe instrução qualificada e o ‘conhecimento’ é passado de forma desleixada.

Danças virais interferem na dança profissional?

Um dos principais problemas está na desinformação ou até na falta de informação passada. Jo Cardoso relaciona as atuais “danças virais” do Tik Tok a uma “caixa de passos sociais que não pertencem à galera do Tik Tok”. Ele diz que a seleção limitada de passos de dança escolhidos e reproduzidos isenta a criatividade. Então, muitas vezes se tornam mímicas, e pode ser considerada apropriação cultural: “Vira uma mímica! Não é mais dança, não tem mais a relação com a criatividade. […] A galera pega esses movimentos que já são de uma cultura e transfere isso para essa ‘caixa’ de qualquer jeito”, afirma.

Entretanto, Jo é otimista ao comentar sobre o futuro, acreditando que o aplicativo levará alunos para o meio da dança. Segundo ele, os passos virais são “a ponta do iceberg” para que mais pessoas se interessem e busquem conhecer sobre a dança profissional. “Você aprende a dancinha e pensa ‘isso aqui não é o suficiente pra mim. Quero investir mais no meu corpo e dançar com as pernas também. Pra onde eu vou?’ Você vai pra sala de dança”, imagina.

Foto: Mov&raw

Já o dançarino Diego Josh reflete sobre a falta de estrutura para definir uma posição ou imagem no mundo da dança. Por isso, muitas pessoas leigas se colocam em posição de professoras. Ele relata que o caráter do trabalho está relacionado com experiência e prática, como frequentar eventos, competições, palestras e aulas sobre dança. “Toda dança vai ser envolvida culturalmente por conta de um aspecto, e não só isso! Até as nomenclaturas e as bases têm os criadores, lugares, religiões onde foram criadas e formadas. Têm as datas e toda uma história, todo um conteúdo que também vai da parte do professor de transmitir”, explica.

Influencers como “coreógrafos

Para os profissionais coreógrafos e dançarinos, a desvalorização afeta ainda mais até onde as danças virais interferem na dança profissional. Diego explica que a viralização com seletos passos sociais em plataformas como o Tik Tok ou o Reels no Instagram intervêm no mercado de trabalho. O dançarino relata que um empresário ou publicitário que ouvir de um influencer pelas redes sociais que “é só juntar dois passos que você tem uma coreografia”, como Mirela comenta em seu vídeo no Instagram, acaba sendo influenciado por esse discurso e, por fim, descredibilizando o trabalho. “Cada vez mais as marcas têm contratado pessoas que não são dançarinos ou professores de dança, de fato, para trabalharem com isso. Por conta de números, por conta de views”, ele lamenta.

Esse tipo de situação interfere diretamente na carreira e no ofício de coreógrafos e dançarinos. “Acho injusto que eu tenha investido dinheiro e tempo. Aberto mão de inúmeras coisas para poder me dedicar à minha profissão. E uma pessoa que nunca fez isso se coloca no lugar de coreógrafo, faz o meu trabalho e ganha o meu dinheiro”, afirma Jo Cardoso, aludindo à apropriação da carreira por leigos.

Qual o motivo da viralização?

Entender até onde as danças virais interferem na dança profissional não é simples, mas também é importante saber como funciona a “viralização”. De acordo com a professora e coordenadora do curso de Publicidade e Propaganda na PUC Minas, Lívia Borges, a viralização em plataformas sociais não possui uma matemática exata. “Temos algumas estratégias (para viralização de conteúdo), porém nada garante que vai funcionar”, explica.

(O vídeo mostra uma mulher dançando uma trend de dança do TikTok. O vídeo possui mais de 1,9 milhão de visualizações)

Lívia comenta que a viralização não necessariamente depende do conteúdo. Por isso, ocorrem casos em que pessoas leigas passam conhecimentos sem respaldo e existe a possibilidade de se tornarem virais. “Como fazer uma viralização [nas redes sociais] quando não temos [um alcance] tão grande? Nós podemos aproveitar da rede de outras pessoas”. Lívia explica que, na publicidade, estudam-se estratégias para controlar a viralização, apesar da sua imprevisibilidade. Isso indica que pessoas com grande alcance compartilharem de alguma forma seu conteúdo é a melhor forma de se viralizar. Quanto maior o alcance da pessoa que dissemina a informação, mais facilidade essa informação vai de pessoa em pessoa até se tornar viral.

Um exemplo claro de viralização a partir desse ponto de vista (apesar de ter sido acidental), é o Russell Horning (ou the backpack kid, inventor da flossing dance). O vídeo no qual aparece dançando foi compartilhado pela cantora pop e empresária Rihanna nas redes sociais em dezembro de 2016 como um meme. Logo após, várias outras celebridades, como a cantora Katy Perry, começaram também a compartilhar os vídeos dele. Todo este fenômeno ocorreu em questão de dias e, em pouco tempo, Russell já contava com milhares de seguidores nas redes sociais.

(O vídeo mostra parte da performance da cantora Katy Perry com a música “Swish Swish” no SNL no qual o “Backpack Kid” mostra sua dança ao lado de Katy e outros artistas)

Em menor escala, situações como danças virais nas mídias são facilmente disseminadas quando pessoas com grande visibilidade no aplicativo decidem postar o conteúdo. A professora Lívia afirma que é estratégico cantores contratarem influencers da rede para dançar ou criar coreografias virais em trechos da música de lançamento.

Outra forma para a viralização, de acordo com Lívia, é aproveitar tópicos que estão em alta. Ou seja, criar algum tipo de conteúdo baseado em um assunto que esteja sendo muito comentado atualmente. É uma forma de gerar posicionamentos e compartilhamentos quando a pessoa se identifica com o material ou acha relevante o suficiente.

Dançarinos começam a se manifestar

Levando o valor da dança em consideração como combustível de seu trabalho e carreira, Diego Josh propôs entrar na “moda” de ensinar passos no Tik Tok. Porém aposta na didática correta. “Caramba, tem tanta gente nesse aplicativo que se coloca no lugar de professor para ensinar uma movimentação […] e não sabe nada. Não sabe o nome daquela movimentação, não sabe explicar de uma forma coerente, de uma forma didática”, ele explica seu raciocínio para decidir começar com os vídeos. Ele também se refere a como estava insatisfeito com os atuais “tutoriais de passinhos” que existem na plataforma onde a forma de ensino é falha e não existe apreciação da cultura.

Os vídeos do dançarino no Tik Tok explicam a lógica passo a passo por trás de cada movimentação ensinada, além de dar uma breve backstory, apresentando o criador, local de criação e as nomenclaturas corretas dos passos ensinados. Diego conta que ficou aliviado em saber que muitas pessoas no seu atual público comentam as publicações agradecendo pela didática. Eles exclamam que “finalmente alguém sabe os nomes dos passos e ensina corretamente!”. Diego entende até onde as danças virais interferem na dança profissional como uma forma de usar aquilo para disseminar informações precisas.

(O vídeo mostra Diego Josh ensinando o passo de dança “Swagg Bouncee”

Jo Cardoso não pretende ficar para trás e diz que vai criar seu próprio desafio: “Já que eu não gosto do que está sendo feito nos challenges, eu vou fazer um challenge na visão que eu acho que tem que ser. E vamos ver no que vai dar!”. Ele ainda reforça que não tem nada contra a rede social e os challenges, já que o problema não está em participar das trends. O problema está no leigo se colocar no lugar de professor ou profissional, atrapalhando a cena e trazendo obstáculos para a comunidade da dança.

Marianna Ferry

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