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Indígena Yanomami de cabelos pretos e olhos preto, usa ornamento característico da sua cultura na sua orelha e em seu pescoço.
Acervo Público Nacional. Foto: Marcos Corrêa/ PR

Sonhos indígenas instigam nova maneira de ver o mundo

Entenda a importância dos sonhos nas culturas indígenas e suas visões sobre a realidade

Material visual do projeto Ideias Para Adiar O Fim Do Mundo, essa frase está escrita em destaque com ondas irregulares abaixo dela e o texto "#múltiplas leituras" à esquerda

Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando, mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada”.

Ailton Krenak

Essas são palavras de Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo e escritor brasileiro da etnia krenak em um de seus livros, Ideias Para Adiar o Fim do Mundo. Na obra, o autor critica as ideias de civilização e humanidade da perspectiva etnocêntrica e defende visões mais diversas sobre conhecimento e humanidade.

Os sonhos desempenham um papel fundamental na vida humana desde os tempos imemoriais. Embora, para a maioria, sejam apenas uma expressão do nosso inconsciente, há grupos culturais que tomam os sonhos como algo muito além, desde atos políticos até premonições. A pós-graduada em Clínica e Teoria Psicanalista, Ceres Bifano relatou que os sonhos são, de fato, uma das formas de acesso ao inconsciente, mas não de maneira literal, já que as informações passam por uma espécie de metáfora.

“Os padrões existem e são influenciados por vários fatores, internos e externos, individuais e sociais”, explica Ceres Bifano. Para ela, o tema requer uma compreensão delicada e contextualizada dos símbolos e padrões presentes, reconhecendo a complexidade e a multiplicidade de influências que moldam cada um. “Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, os sonhos das pessoas refletiram de maneira peculiar as ansiedades e tensões coletivas da época”.

Segundo Ceres, os sonhos funcionam muitas vezes como um mecanismo de defesa psicológica para lidar com alguns conflitos internos e situações difíceis. “Os sonhos censuram e nem sempre trazem à tona as lembranças e situações de forma tão explícita. Mesmo em um trabalho analítico, isso não se esgota. Há sempre algo que não é possível alcançar e este impossível tem relação com o que damos conta de ouvir, de perceber e entender”.

A psicanalista também explica que os sonhos podem ajudar um indivíduo a entender suas necessidades emocionais, de uma forma com que a interpretação de um sonho seja associada pelo indivíduo com uma análise a partir de um acompanhamento com um profissional. Os sonhos são repletos de significantes e significados que são construídos ao longo da vida na interação com outras pessoas. Ceres cita, ainda, uma afirmação de Freud em que o pai da psicanálise diz que, em última instância, os sonhos são realizações de sonhos que não nos damos conta facilmente.

Sonhos para os indígenas têm sentidos múltiplos

A jornalista Cláudia Antunes, do site Sumaúma, contou ao Colab que, na oportunidade de entrevistar Davi Kopenawa, importante líder político do povo Yanomami, descobriu que o indígena teria visitado um parque instalado próximo às suas instalações no Rio de Janeiro não fisicamente, mas por meio dos seus sonhos. Davi contou à jornalista que os espíritos daquele local o transportaram para lá. Os sonhos para o povo Yanomami estão relacionados ao cotidiano, às experiências que as pessoas têm e à vida na comunidade. Envolvem a imaginação de outros mundos possíveis, quando há um encontro com a alteridade, com outros seres e outras realidades.

“Para a gente, pode parecer uma história fictícia mas, pra eles, é algo real, um outro modo de relação com a natureza”.

Cláudia Antunes, jornalista do site Sumaúma
Davi Kopenawa, escritor e líder político Yanomami./ Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Na conversa com o Colab sobre suas experiências cobrindo os povos originários, a jornalista também abordou o conceito de “utupe“, ou imagem vital, dos Yanomami. “Todo ser, pessoa, água, montanha, tem uma imagem vital, essa imagem se desprende do corpo e vê coisas que as pessoas que estão na Terra em carne e osso não veem”. Esse entendimento do mundo, segundo Cláudia, exige pensar em outra lógica, onde outros seres também têm pensamento e percepção.

Davi Kopenawa é também o autor do livro A Queda do Céu, no qual  explora profundamente a relação dos Yanomami com os sonhos e a natureza. Segundo a obra, os sonhos são uma forma de conexão com os espíritos e o cosmos, permitindo um entendimento mais amplo da existência. Ele critica a fixação dos Brancos na relação de propriedade e na forma-mercadoria, apontando que essa obsessão aprisiona o pensamento ocidental e desvaloriza a experiência onírica.

Os Brancos dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”, escreve Kopenawa, destacando a incapacidade dos ocidentais de discernir a humanidade secreta dos existentes não humanos e sua avareza ‘fetichista’. “Em vez de sonharem com o outro, sonham com o ouro.”

Trecho do livro “A Queda do Céu”

Sonhar e adiar o fim do mundo

Ailton Krenak, autor do livro Ideias para adiar o fim do mundo/ Foto: garapa.org

A obra de Ailton Krenak, Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, levanta questões cruciais sobre a relação entre a humanidade e a natureza. A jornalista Cláudia Antunes acredita que a mudança climática e a relação dos povos indígenas com a natureza são fundamentais para a sobrevivência do planeta. Ela destacou que a crise climática não apenas aumenta a intensidade dos eventos climáticos, mas também sua frequência. “Tem de ter um jeito com que os países e cidades se organizem para que os eventos climáticos provoquem menos vítimas”.

Para Cláudia, a visão indígena oferece um valioso modelo de coexistência e respeito à natureza, algo essencial para enfrentarmos os desafios ambientais atuais. Ela explica que a perspectiva ameríndia, como descrita pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, sugere que devemos reconsiderar a separação entre natureza e cultura, reconhecendo que outros seres também têm suas visões de mundo e sua importância no ecossistema.

Matéria produzida por: Bernardo Batista, Gabriel Arlindo e Júlia Vida no âmbito do projeto Múltiplas Leituras.

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