Em um sábado típico de outono, com céu azul e tempo fresco, moradores da Região Leste de Belo Horizonte visitam a feira da Rede Terra Viva, um ecossistema agroecológico que reúne mais de 20 produtores de alimentos orgânicos e veganos, além de estandes de artesanato e mercadorias feitas à mão.
Com música ao vivo, o espaço é ocupado por um clima familiar e acolhedor. O público é diverso, e o ambiente lembra o grande quintal de uma casa – famílias, crianças, casais, pessoas sozinhas ou acompanhadas por cachorros.
Mas o “carro-chefe” da feira é o comércio de alimentos. Entre os pequenos produtores que ocupam o espaço, Narli vende há 10 anos, em uma singela tenda, frutas e verduras “tiradas direto da horta”, em suas palavras. Mesmo sem um grande retorno financeiro, ela destaca que está lá por um propósito: qualidade de vida a partir da alimentação saudável. “Não temos uma produção enorme, mas é tudo com a confiança que plantamos e colhemos. Sabemos a procedência desses alimentos. É difícil, mas está dando para sobreviver”, diz.
Além da possibilidade de comprar diretamente de pequenos produtores, os visitantes encontram uma grande tenda com produtos da fazenda Vista Alegre Orgânicos, localizada em Capim Branco, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A organização participa da feira há 14 anos. “A importância aqui na feira não é só a parte social, onde a gente encontra e fraterniza. Há também o fato de trazer cura para a mesa das pessoas. Para além do impacto social, existe um efeito nutricional na mesa de cada um”, explica Lílian Alves, ativista e vendedora da Vista Alegre Orgânicos.
Foi a necessidade de ampliar o acesso a alimentos orgânicos que fez com que um grupo de moradores do Santa Tereza se reunisse para buscar pequenos produtores para comprar cestas de produtos livres de agrotóxicos. A ideia cresceu e deu origem ao coletivo Rede Terra Viva.
Ativista no âmbito da agroecologia desde 2009, a professora Marina Alvim é uma das figuras que compõem o grupo de visitantes que fortalecem o movimento da Terra Viva. “Sempre me preocupei com o que os agrotóxicos poderiam refletir no meu corpo e, assim, conheci a feira. Infelizmente há uma falta de divulgação desses espaços, o que acredito ser resultado do capitalismo, um sistema que prioriza o lucro e quem acaba tendo poder são os grandes produtores”, contou.
Comunhão prazerosa
O grande momento da festa é a comida, e o maestro, quem a cozinhou. “A comida agrega todo mundo”, escreveu Nêgo Bispo. Ao mesmo tempo, a forma como a plantamos, distribuímos e comemos revela – e, muitas vezes, reproduz – estruturas de desigualdade. “Orgânico é o que todo mundo tem acesso!”, exclama Tati Otoni, cozinheira e educadora alimentar, ao relembrar as ideias do pensador quilombola, falecido em 2023.
Entre a colheita e o preparo da mesa, o escritor de “A terra dá, a terra quer” defendia a lógica da “biointeração”. Com base nela, entende-se que a relação entre humanos e natureza se dá por comunhão prazerosa, o que significa que os princípios de extrair, utilizar e reeditar acontecem em uma dinâmica coletiva. Na ausência da biointeração, brechas para a emergência climática são criadas.
Para Nêgo Bispo, não basta vender alimentos sem agrotóxicos em mercados caros de zonas nobres. A comida só se torna verdadeiramente orgânica quando compartilhada e produzida em comunidade, respeitando os tempos da terra e dos corpos. Afinal, comida nunca foi apenas comida: ela é memória, território, saúde e – sobretudo – poder.
Marina Alvim ajuda a esclarecer a diferença entre agricultura orgânica e agroecologia, conceitos muitas vezes confundidos. A primeira se relaciona às técnicas claras de plantio. Quando se diz que um alimento é orgânico, significa que ele foi plantado seguindo regras previstas na legislação, especificamente a Lei nº 10.831/2003 e seu regulamento principal, o Decreto nº 6.323/2007, além de normas complementares do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).
A legislação proíbe o uso de agrotóxicos sintéticos e organismos geneticamente modificados, exige o uso de sementes oriundas de sistemas orgânicos e estimula práticas de conservação do solo, da água e da biodiversidade. Para que um alimento possa receber o selo de “orgânico”, a unidade de produção precisa se adequar a um dos mecanismos de garantia previstos pelo Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade Orgânica.
Os três caminhos principais são a certificação por auditoria, na qual o produtor contrata uma certificadora credenciada pelo MAPA e acreditada pelo Inmetro; a certificação participativa, em que grupos ou redes de produtores, consumidores e técnicos formam um Sistema Participativo de Garantia (SPG) reconhecido pelo MAPA; e a Organização de Controle Social (OCS) para venda direta, voltada a agricultores familiares que comercializam seus produtos em feiras, por exemplo. Na venda direta em feiras da agricultura familiar, a legislação admite orgânicos sem selo de embalagem, mas vinculados a uma OCS ou SPG reconhecido, o que permite rastrear a origem e o grupo responsável pelo controle.
Já a agroecologia, como Marina explica, “pensa o cultivo dos alimentos, mas também as relações pessoais e interpessoais”. De acordo com a professora e ativista ambiental, o alimento agroecológico não é definido “apenas” por não ter agrotóxicos – ele também faz parte de um projeto político de relação com a terra e com as pessoas. A proposta é ampliar o olhar para além das técnicas agrícolas e questionar toda a cadeia que envolve o próprio alimento: quem produz, como produz, para quem produz e em quais condições.
Então, afinado com o pensamento, para que um produto orgânico seja considerado também agroecológico ele deve estar ligado a um contexto produtivo para além de sustentável – em que agricultores não sejam explorados, a concentração fundiária seja posta à mesa e com a garantia de que o alimento chegue, em especial, a quem mais precisa. Trata-se de repensar o palco em que terra, trabalho e gente são orquestrados – e questionar quem permanece lendo as partituras e guiando cada performance.
Feiras em Belo Horizonte
De acordo com a base de dados Equipamento de Segurança Alimentar e Nutricional da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), a cidade conta com 73 tipos de feiras distribuídas por diferentes regiões, embora a maior concentração permaneça na Região Centro-Sul. O infográfico acima apresenta esse mapeamento – que organiza as feiras em quatro modalidades: Feiras Livres, em verde; Feiras Orgânicas, em azul; Feiras da Agricultura Urbana, em laranja, e Feiras Modelo, em rosa.
As Feiras Livres seguem o formato tradicional e funcionam geralmente entre 7h e 13h, comercializando produtos hortifrutigranjeiros, biscoitos e peixes. As Feiras Orgânicas, por sua vez, oferecem hortaliças, frutas e cereais cultivados segundo os princípios da agricultura orgânica e devidamente certificados. Os produtos vêm de produtores rurais da região metropolitana de Belo Horizonte e suas organizações associativas, com funcionamento estendido até as 15h.
Já as Feiras da Agricultura Urbana promovem a venda direta entre produtor e consumidor, disponibilizando alimentos característicos da culinária mineira cultivados com base agroecológica, o que inclui hortifrutigranjeiros, folhosas, raízes, ervas, frutas, flores, sementes e outros produtos da terra. A feira central ocorre às quintas-feiras na Rua Goiás, das 9h às 15h, e outras localidades contam com pontos regionais.
Diferentemente das outras categorias, que funcionam pela manhã, as Feiras Modelo acontecem nos períodos vespertino e noturno, integrando a venda de alimentos saudáveis com comidas e bebidas prontas para consumo.
Feira Terra Viva: ecossistema agroecológico reúne mais de 20 produtores de alimentos orgânicos e veganos no bairro Santa Tereza. Fotos: Ana Clara Torres
Entraves estruturais
A crise de modelos tradicionais e predatórios de monoculturas com alto grau de agrotóxicos tem levado cada vez mais pessoas a buscarem propostas e modelos de cultivos mais sustentáveis, aponta o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nesse contexto, cresce o espaço para práticas agrícolas baseadas em princípios da agroecologia, mas sua expansão ainda encontra barreiras que envolvem questões políticas e problemas enraizados na sociedade brasileira.
Em 2025, o Brasil saiu do mapa da fome. O percentual de lares com insegurança alimentar grave caiu para 3,2%, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Apesar dos avanços, milhares de pessoas ainda vivem em um contexto de insegurança alimentar, sem ter o que comer diariamente no país.
Esse cenário dificulta que a agroecologia chegue para a população em geral, como explica Luiza Diniz, diretora da ONG SapucaECO. “Como você chega em uma pessoa e fala assim: ‘O que você tá fazendo errado porque você não tá comprando orgânicos’, é absurdo, porque as pessoas não estão conseguindo nem comprar verduras e legumes”, diz a ativista.
Luiza esclarece que o fortalecimento da agroecologia no país não depende apenas de responsabilidades individuais: ele deve passar por mudanças profundas de hábitos, o que envolve não somente indivíduos na sua relação com o alimento, mas também a valorização dos produtores, reforçando a necessidade de políticas públicas para o setor. “A gente vê que existem leis de incentivo, mas que precisam ser ampliadas, tem vários agricultores que estão fazendo a transição para a agroecologia e estão conseguindo se sustentar por conta disso”, argumenta.
Por outro lado, as mudanças climáticas dificultam esse desenvolvimento, tornando a situação ainda mais complexa. O desempenho das plantações é influenciado por longos períodos de estiagem e ondas de calor e frio, por exemplo. “É uma questão que não pode ser simplificada, mas precisa de um encaminhamento, não dá para a gente continuar consumindo agrotóxico e ficar sentido os efeitos no corpo e no planeta também”, diz Luiza.
Além disso, a distribuição e acesso a terras também é um fator importante, levantando discussões a respeito da reforma agrária. Atualmente, os produtores que trabalham com a agroecologia enfrentam um cenário adverso, competindo diretamente com o agronegócio. Ainda assim, surgeminiciativas de cooperativas e associações que buscam organizar e criar alternativas que tentam romper com essas barreiras.
A agroecologia está lutando contra tudo e todos”, diz Luiza Diniz.
O acesso à alimentação saudável em Belo Horizonte também é atravessado por muitas desigualdades. Em muitos bairros periféricos, faltam feiras, sacolões e iniciativas de venda direta que garantam a oferta de frutas, hortaliças e alimentos frescos. A distribuição territorial cria um cenário em que ultraprocessados, presentes em qualquer esquina, acabam se tornando a opção mais acessível, não por escolha, mas por disponibilidade e por seus valores acessíveis.
Essas disparidades também refletem o modo como o sistema alimentar é organizado. A lógica de produção e distribuição favorece alimentos industrializados, que chegam às prateleiras com preços mais baixos devido à estrutura concentrada do agronegócio e ao peso dos subsídios. Já iniciativas baseadas em agroecologia e agricultura familiar enfrentam custos maiores e menor apoio estatal.
Como explica Marina Alvim, “não é só sobre o alimento em si, mas sobre as relações e estruturas que determinam quem consegue acessá-lo”. Essa dimensão estrutural impacta diretamente o preço final e transforma o ato de comer bem em um privilégio acessível a somente uma parcela da população.
Além disso, fatores cotidianos, como jornadas de trabalho extensas, falta de tempo para cozinhar e a fragilidade de políticas públicas de abastecimento, reduzem a autonomia alimentar das famílias brasileiras. Para muitas delas, o ambiente urbano não oferece condições reais para escolhas saudáveis no prato, reforçando padrões alimentares prejudiciais à saúde e aprofundando desigualdades.

Arte: Guilherme Ferreira com informações de O Joio e O Trigo.
Domínio dos ultraprocessados na mesa brasileira
Segundo levantamento do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) em parceria com pesquisadores da UFMG publicado em novembro de 2025, os alimentos ultraprocessados podem ficar mais baratos do que alimentos saudáveis em 2026. A pesquisa mostra que produtos ultraprocessados tiveram queda de aproximadamente 16%, analisados entre janeiro de 2018 a dezembro de 2024, com projeções estendidas até dezembro de 2026, enquanto alimentos naturais ou minimamente processados se tornaram mais caros no mesmo período: atingindo uma média de preço de R$18,60 em 2024.
Essa realidade é perceptível no dia a dia, conforme relata Tati Otoni, cozinheira e pós-graduada em Nutrição, Alimentação Saudável e Empreendedorismo. Tati destaca como fatores sociais, econômicos e políticos moldam o que chega ao prato da população. Para ela, não se trata de uma decisão individual, já que “até na cesta básica, às vezes, vem um produto ultraprocessado”.
Barreiras de tempo e acesso, além das financeiras, também atingem famílias de baixa renda e moradores de periferias. “As mães que saem para trabalhar e deixam os filhos com as avós, que precisam tomar conta de várias coisas. Quando essa mãe sai para o trabalho às 5 horas e volta só às 18 horas, até pode ter lugares para ela comprar alimentos, mas ela só quer pegar o ônibus e ir embora correndo para casa. Às vezes, um negócio de microondas é muito mais fácil para cozinhar, muito mais rápido”, reflete Tati.
Segundo a cozinheira, o sistema econômico alimentar favorece a indústria dos ultraprocessados, já que esses produtos chegam com preços mais baixos ao consumidor do que alimentos frescos ou orgânicos. “Hoje o alimento in natura, o alimento orgânico, a verdura, o legume, não tem o subsídio que o ultraprocessado tem. Então, é uma questão muito política. São muitos mercados mesmo por trás de tudo isso”.
Marina Alvim reforça a visão de Tati Otoni: “porque miojo e refrigerante são tão baratos? Porque esses alimentos recebem subsídio do governo, o governo ajuda as empresas a produzir. Com isso, você não passa fome, mas come porcaria, está colocando veneno para dentro, e, dessa forma, gasta mais dinheiro com remédios, porque vai ficar mais doente com facilidade. O sistema imunológico não dá conta”.
A cozinheira observa como a indústria se aproveita de discursos sobre saúde para lançar versões “melhoradas” de produtos ultraprocessados, como achocolatados com adição de proteína, apesar de as adições não corresponderem às necessidades nutricionais verdadeiras da população. “A população brasileira não tem deficiência de proteína. Mesmo em desertos alimentares, as pessoas não têm deficiência de proteína, elas têm deficiência de fibras, elas têm deficiência de comer. Tudo tem fibra, todos os alimentos têm todos os macronutrientes”.
Para ela, essa realidade empurra o país a padrões que se distanciam da cultura alimentar brasileira e reforçam tendências que enquadram o alimento como produto pela propaganda da indústria de “bem-estar”. “Eu penso: ‘Gente, eu tô saindo para poder comer uma comida’, mas transformaram a comida em proteína”, questiona Tati.
Marina Alvim explica que os alimentos ultraprocessados também contêm agrotóxicos, além de aditivos, conservantes e estabilizantes. “A Dona Maria, que trabalha a semana inteira, não tem acesso à internet, algo assim, ela vai ao supermercado mais próximo, vai comprar o que der para ela comprar e pronto. Para mim, os ultraprocessados não são comidas de verdade”, observa a professora, que reforça o papel de dinâmicas próprias do cotidiano em grandes cidades como fatores ligados ao consumo desses alimentos. Enquanto insumos frescos deixam de fazer parte diante do ritmo da cidade, os produtos industrializados ocupam espaços com facilidade pensada e estruturada, especialmente ao levar em conta os subsídios oferecidos pelo governo.
E o jornalismo?
A cobertura do colapso climático na imprensa brasileira frequentemente isola temas ligados à alimentação e ao agronegócio. Em geral, veículos tradicionais destacam negociações internacionais e medidas de emergência, mas raramente relacionam esses eventos à estrutura do sistema alimentar. Na COP30, por exemplo, projetos como a ferrovia Ferrogrão, voltados ao escoamento de commodities, tiveram mais espaço do que debates sobre pobreza alimentar.
Segundo análise das jornalistas Jessica Thais Hemsing e Claudia Herte de Moraes publicada no Observatório da Imprensa, “o destaque vai para projetos do agronegócio como o Ferrogrão para […] facilitar o escoamento de commodities do Centro-Oeste, beneficiando exportadores e não quem precisa de alimento no prato”. Esse foco seletivo reflete também os interesses econômicos. Levantamentos recentes mostraram que empresas acusadas de desmatamento e emissões, como Vale e JBS, financiaram a cobertura da COP30 nos principais jornais e revistas, abrindo dúvida sobre viés editorial.
A análise ainda demonstra que pautas sobre sistemas alimentares costumam ficar fragmentadas em editorias separadas, dificultando um olhar integrado do problema: “a cobertura na mídia de sistemas alimentares existe, mas é fragmentada… a divisão por editorias inibe um olhar mais amplo, sistêmico”. É justamente essa visão segmentada que especialistas vêm criticando.
Organizações de jornalismo ambiental e iniciativas independentes têm procurado preencher essa lacuna na imprensa brasileira. O projeto brasileiro de jornalismo especializado e independente O Joio e O Trigo, criado por João Peres e Moriti Neto, defende uma abordagem sistêmica sobre alimentação. Tatiana Merlino, editora de Colapso Climático do Joio, ressalta que “o sistema alimentar globalizado tem um dos maiores pesos nas emissões associadas às mudanças climáticas”. Essa linha de trabalho combina a dimensão ambiental com a social, discutindo, por exemplo, como o modelo de produção atual agrava a insegurança alimentar ao privilegiar monoculturas para exportação.
João Peres ressalta durante entrevista que “tudo está atravessado pela alimentação”: jornada de trabalho, desigualdades de gênero e raça, o direito à cidade e à moradia digna. Mesmo assim, ele entende que cobertura jornalística tradicional trata os problemas da alimentação de forma episódica, sem questionar estruturalmente o modelo de produção.
Quando a inflação dispara, por exemplo, surge “uma enxurrada de matérias” sobre o preço da comida. “Em relação aos ultraprocessados, os problemas de saúde ainda recaem, em uma parte da cobertura, sobre o indivíduo”, explica João. Ele destaca que reportagens questionam raramente a distribuição dos alimentos ou para onde está indo o financiamento público que financia a produção agropecuária no Brasil. O jornalista e diretor do portal ainda reitera a impossibilidade de explicar a captura de poder no Brasil sem passar pelos sistemas alimentares.
Em relatos jornalísticos, percebe-se que a pauta de justiça social se mistura à ambiental quando se fala em soberania alimentar. Movimentos sociais em Belém, sede da COP30, clamam por isso. Adriano Ferreira, representante do MTC (Movimento dos Trabalhadores do Campo) ressaltou em debate que “só existe justiça climática se houver proteção dos territórios tradicionais, dos povos indígenas e também dos camponeses que produzem o alimento que nutre o povo brasileiro”. De fato, artigos críticos destacam que é inócuo falar em soberania alimentar sem enfrentar concentração de terras e subsídios ao agroexportador.
A COP30 ofereceu ambientes alternativos para trazer essas questões à tona, ainda que, nos holofotes oficiais, tenham predominado discursos afáveis ao agronegócio. Entre as prioridades definidas pelos organizadores para a agenda da conferência está a “transformação da agricultura e dos sistemas alimentares”. Porém, na prática, o debate permanece raso e controlado, avalia João Peres durante a entrevista, ao apontar que grandes conferências climáticas tendem a tratar a alimentação de forma episódica, sem enfrentar o modelo de produção e a captura política exercida pelo agronegócio.
Paulo Petersen, agrônomo da Articulação Nacional de Agroecologia (Ana) nomeado como enviado especial para Agricultura Familiar na COP30, destaca, em entrevista para o portal Sumaúma, que o agronegócio tradicional entra na conferência com narrativas falsas sobre “agricultura tropical sustentável” e “regenerativa” que, segundo ele, devem ser contrariadas em favor da agroecologia. Ele argumenta que a agricultura familiar tem múltiplas funções climáticas, reduz emissões de gases, preserva biodiversidade e aumenta resiliência, para além da produção de alimentos saudáveis.
Por outro lado, setores conservadores usaram a COP30 para reivindicar mais recursos financeiros e ênfase em biocombustíveis, minando medidas mais ousadas. No balanço pós-evento, muitos analistas lamentaram que faltou agenda social: “a maior parte dos veículos de comunicação ignora a pauta da soberania alimentar. No caso do Ferrogrão, por exemplo, nenhum veículo tradicional destacou o tema no contexto da COP-30”.
Segundo a análise de Jessica Thais Hemsing e Claudia Herte de Moraes, “falar em soberania alimentar sem tocar na concentração de terras e nos bilhões de reais em subsídios ao agronegócio é esvaziar o sentido da expressão”. Nesse sentido, a cobertura jornalística estruturada deveria explicitar essas conexões, ou seja, relacionar legislação agrícola, incentivos fiscais e desmatamento aos resultados no prato e ao agravamento do clima. Só assim, o público entenderá que agrotóxicos, terras griladas e queimadas não são problemas isolados, mas integram um mesmo sistema.
Diante dos desafios, há exemplos positivos de jornalismo que cobrem temas alimentares de forma mais contextualizada. No Brasil, o projeto Por Trás do Alimento (Repórter Brasil com Agência Pública) mapeou o uso de agrotóxicos e revelou práticas escabrosas, como o uso de pesticidas já proibidos na Europa, redes de supermercados multadas por produtos contaminados e distribuição de veneno por usinas de cana para intimidar comunidades locais. Em outra frente, investigações conjuntas ligaram a maior frigorífica do mundo (JBS) a áreas de desmatamento na Amazônia, mostrando como exportadores de carne alimentam o colapso ambiental. Nas editorias convencionais, veículos como Brasil de Fato e portais regionais deram atenção às vozes dos agricultores familiares e indígenas na COP30, contrapondo-se às posições oficiais.
Mesmo no jornalismo mainstream há iniciativas relevantes. A agência Bori, ligada à Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência), organizou cursos sobre sistemas alimentares que levaram dezenas de jornalistas a produzir reportagens interligando dieta, saúde e sustentabilidade.
De fato, a crise climática e alimentar requer jornalismo que entenda esses temas como partes de um mesmo quebra-cabeça. Nem sempre a imprensa tradicional faz isso espontaneamente. Por isso, iniciativas jornalísticas independentes e colaborativas têm exercido papel crucial para conectar os pontos e fazer chegar ao público o que as manchetes isoladas não mostram. O desafio é cobrir a alimentação não como tema menor, mas como componente vital da crise climática e da justiça social global.
Esta reportagem foi produzida pelos alunos Ana Clara Torres, Guilherme Ferreira, Júlia Melgaço, Luiza Gomes, Maria Alice Aguilar e Náthaly Escobar, para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital, sob a supervisão da professora Nara Lya Cabral Scabin.












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