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É possível separar a arte do artista?

“A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”. Essa frase foi dita pelo artista Pablo Picasso, um dos maiores e mais admirados de todos os tempos, que viveu sua vida rodeado por polêmicas, tanto na arte, quanto em seus relacionamentos. Picasso foi acusado de misoginia incontáveis vezes, inclusive no livro intitulado “Picasso: My Grandfather”, escrito por sua neta Marina Picasso, em que ela afirma que o artista tratava as mulheres em sua vida, suas “musas”, deploravelmente.

“Ele as submeteu à sua sexualidade animal, as domou, as embrulhou, as ingeriu e as esmagou em sua tela. Depois de ter passado muitas noites extraindo sua essência, uma vez que foram sangradas, ele iria se livrar delas”. Picasso é apenas um dos inúmeros exemplos de casos em que a vida profissional de um gênio da arte foi marcada pelos pecados cometidos na vida pessoal – o que, fatalmente, influenciou o modo como suas obras são percebidas.

É possível interpretar a frase de Picasso de duas maneiras: a primeira, em sua essência, que diz que a arte é a materialização da criatividade de um artista, quando ele quer exprimir seu ponto de vista ao mundo, questionando ou admirando algo que realmente existe. A segunda, no entanto, pode ser compreendida no sentido onde passamos a conhecer um artista e suas intenções, a partir da arte que produz, como uma janela da verdade.

Com isso, levanta-se o seguinte questionamento: a obra de um artista deve ter valor por si só? Não importa que tipo de vida o artista levou, mesmo se eles prejudicaram ou machucaram outras pessoas?

A resposta para uma pergunta como essa pode oscilar, porque ao mesmo tempo em que obras (sejam filmes, séries, pinturas, músicas, esculturas, etc) são endeusadas e exibidas em todos os lugares, como as de Picasso, por exemplo, outras caem em esquecimento ou são usadas como alertas sobre as intenções daquele artista. Portanto, pode-se colocar essa resposta em escala móvel, pois quando se trata de cultura não existe quem define a validação de um artista sob outro, estando nas mesmas circunstâncias.

A cultura como peça chave

O conceito do que é cultura e arte é volúvel e cada um a interpreta e a legitima conforme as vivências e percepções do que é certo e errado. Mas quando o artista ultrapassa níveis de bom senso, sua arte continua válida? Ainda merece ser admirada? Ou devemos aprender a separar a arte de seu artista, para que não haja conflitos de interesse?

De acordo com o professor dos cursos de Comunicação Social da PUC Minas, doutorando em Histórias e Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual (PPGCine) Pedro Vaz Perez, é possível, sim, fazer essa diferenciação, já que, na maioria das vezes – no caso das produções audiovisuais -, o produto final é baseado na visão de diversos contribuidores.

“Eu gosto de pensar que o artista produz uma obra e, no momento em que ela está pronta, ela passa a não ser mais dele. Essa obra é uma obra aberta para o mundo. Eu acho que é possível separar, nesse sentido. Quanto mais se for pensar numa arte, como cinema, que envolve não só uma pessoa. Não é só o diretor que está ali, ainda mais em um filme, é toda uma equipe de cineastas e o diretor, muitas vezes, é só mais um deles. Pode ser até o cara que tá mais à frente, mas essa obra costuma ser coletiva.”

Todo crime recebe castigo?

Mesmo com o desejo irreparável de separar a arte de seu artista, para que se possa apreciar o produto da forma com que é divulgado, existem casos onde a bússola moral de cada um é ativada ao questionar o processo em que qualquer produto artístico foi concebido.

Um dos exemplos mais conhecidos da atualidade é a polêmica que circunda o filme “Azul é a Cor Mais Quente” (2013), em que o diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche foi acusado de abuso pela atriz francesa Léa Seydoux, que estrelou o filme ao lado da também francesa Adèle Exarchopoulos. 

Em entrevista ao jornal inglês “The Independent”, Seydoux revelou que trabalhar sob a direção de Kechiche não foi confortável. “Claro que às vezes era meio humilhante, eu estava me sentindo uma prostituta. Claro, ele usa isso às vezes. Não posso dizer que não foi nada. Mas para mim é mais difícil mostrar meus sentimentos do que meu corpo.” 

O filme, que recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes em 2013, foi altamente criticado por expor uma sequência de cenas de sexo initerrupta entre as atrizes por quase 7 minutos, que, segundo os críticos, serviu apenas para suprir o desejo masculino em assistir a cenas como essa. 

Mesmo com toda a mobilização provocada pela denúncia ao diretor Abdellatif Kechiche, durante e depois das filmagens, ainda assim, o longa foi “celebrado” em um dos maiores e mais prestigiados festivais de cinema do mundo, onde ainda ganhou o prêmio mais cobiçado, consagrando-se na indústria do entretenimento.

O artista ainda como referência 

Para a estudante de cinema Beatriz Xavier, a visão imposta pelos envolvidos em qualquer externalização cultural deve ser consumida de forma consciente, mesmo quando se trata de uma obra concebida há mais tempo, quando as denúncias não eram tão frequentes.

“O maior problema é quando um filme é produzido há muito tempo atrás, por exemplo, no curso nós não assistimos a filmes do Griffith (diretor de cinema estadunidense), porque é mostrado pra gente que é um conteúdo completamente racista. Mas como foi o primeiro corte em paralelo e trouxe algum tipo de semiótica pro cinema, é uma construção da narrativa e a gente acaba estudando. É colocado para gente em um sentido mais técnico.”

Ela ainda completa: “Na minha vida particular, eu sempre tento ir atrás de obras que tenham mais sentido com um artista também. Porque, querendo ou não, existe essa relação muito próxima entre a obra e o artista. É uma equipe que se junta e coloca ali um sentimento particular, uma ideia particular e aí surge o filme a partir disso. Então, me incomoda muito alguns aspectos, por exemplo, filmes que abordam a temática da mulher negra. Se a equipe for feita completamente de homens brancos, nesse momento já perde credibilidade completa.”

O jogo virou

Tanara Burke, fundadora do movimento MeToo (foto divulgação The Guardian)

As manifestações culturais carregam muito do sentimento e ideais de quem as produz, podendo perpetuar preconceito e intolerância. Em certas produções, como séries ou filmes, o trabalho em equipe acaba ultrapassando uma visão única, mesmo se for o caso da ideia ter partido de uma pessoa, como um produtor ou diretor. Mas o que acontece quando algum desses homens, que detém o poder por trás das câmeras, começam a realmente ferir e prejudicar aqueles com quem convive de perto?

Com a criação do movimento #MeToo em 2006, pela sobrevivente e ativista Tarana Burke, foi se tornando cada vez mais recorrente as denúncias de assédio e abuso, em lugares como Hollywood, por exemplo. Diversas mulheres, dentro e fora da indústria, finalmente conseguiram ter voz em meio a constante violência e subestimação, conseguindo relatar e, em muitos casos, responsabilizar os homens que cometeram o ato.

Em 2017, quando a hashtag explodiu nas redes sociais, um dos casos mais marcantes veio à tona, movimentando ainda mais a causa: os crimes de Harvey Weinstein, co-fundador da Miramax, produtora estadunidense responsável pelos filmes premiados “Pulp Fiction” (1994), “Shakespeare Apaixonado” (1998), participando até da distribuição internacional da produção brasileira “Cidade de Deus” (2002). Em 2005, ele e seu irmão se demitiram da Miramax para fundar a The Weinstein Company, que produziu “Bastardos Inglórios” (2009), “Django Livre” (2012), “Os Oito Odiados” (2015), entre tantos outros.

Harvey Weinstein foi sentenciado e culpado por estupro em terceiro grau e por ato sexual criminoso em terceiro grau, podendo pegar entre 5 e 29 anos de prisão, de acordo com matéria divulgada pela BBC Brasil em 2020. 

Ainda de acordo com a matéria, mesmo quando os crimes de Weinstein aconteciam mas não eram divulgados pela mídia, sua influência na indústria se tornou irremovível. Um estudo revelou que o produtor foi citado ou elogiado em 25 discursos de aceitação ao Oscar — tantas vezes quanto Deus —, perdendo apenas para o diretor e produtor Steven Spielberg (até 2015).

Por consequência, antes das alegações contra o produtor, que começaram a surgir oficialmente em 2017, não havia amplo conhecimento sobre os crimes cometidos, o que acabou transformando aqueles que optam por parar de consumir conteúdos produzidos por criminosos como ele, alheios perante as acusações, já que seu passado ainda permanecia intocado.

A conta chegou

De acordo com o professor Pedro Vaz, da PUC Minas, além dos danos públicos de imagem, os crimes cometidos por essas personalidades geralmente vêm acompanhados de um colapso financeiro: ação mínima de reparação a ser tomada perante a ações hediondas dessa natureza. 

“Acho que isso diz muito sobre as relações que essas pessoas têm com as produtoras, com os estúdios, com o tipo de público que elas vão alcançar. Os donos das empresas pensam muito no seu próprio lucro, então eles estão sempre pensando no tipo de dano que aquele escândalo pode vir a causar. Se a gente pensar, por exemplo, no Polanski, os escândalos dele são muito do passado, coisas mais antigas e talvez hoje fiquem um pouco efêmeras se comparadas às polêmicas recentes do Weinstein.”

No caso de Harvey Weinstein, os crimes que foram atrelados a seu nome não só lhe custaram sua “boa imagem” na indústria, como sua empresa. A The Weinstein Company declarou falência em 2018 após os escândalos de assédio e abuso do produtor e, com isso, o ciclo foi encerrado entre o artista e suas obras.

O mundo da literatura

Apesar de serem mais divulgados pela mídia, artistas que trabalham na indústria do entretenimento audiovisual não são os únicos a serem desmascarados de crimes cometidos apesar do sucesso obtido através da arte. 

Na literatura, a autora da saga mundialmente reconhecida de Harry Potter, J.K Rowling, também se viu em meio a alegações consideradas transfóbicas, que foram divulgadas em suas redes sociais em 2020. 

A discussão começou quando a autora citou uma manchete do site Devex, que usava a frase “pessoas que menstruam”, em sua conta no Twitter. Ela deu a entender que apenas mulheres (cis) entrariam nessa definição, excluindo homens trans e pessoas não-binárias. 

Tweet feito por J.K. Rowling em junho de 2020

Com isso, milhares de fãs de Harry Potter partiram em defesa da comunidade trans. O resultado disso foi a total descredibilização da autora, tanto em relação a suas obras anteriores, quanto nos lançamentos futuros, que continuam gerando polêmica.

Na opinião da estudante Beatriz Xavier, J.K Rowling é um bom exemplo a ser mencionado quando o assunto é separar a arte do artista, dessa vez, tendo a artista (escritora, no caso), como única responsável pelas ideias por trás da obra, sem brecha para alegar inocência.

“Eu sempre fui muito fã de Harry Potter, desde pequena, só que depois de um tempo, a partir dos comportamentos da J.K Rowling, de suas falas transfóbicas, eu comecei a me distanciar das coisas que ela produz. Não consumo nada dela que foi feito depois desse conhecimento meu. Ainda construí várias críticas a partir disso, como a falta de diversidade dentro dos próprios livros. Enfim, não tenho aquela mesma paixão, mesmo ainda gostando de Harry Potter, mas não tenho a mesma inocência que eu tinha na época.”

Agora existe saída

Com o aumento das denúncias e divulgações, principalmente através das redes sociais que ajudam a promover movimentos como o #MeToo, o espectador/consumidor de conteúdo fica ainda mais informado do procedimento verdadeiro dos que estão envolvidos com a arte, algo que não acontecia antigamente.

Portanto, a possibilidade de se abster ou até mesmo de se levantar contra as inúmeras polêmicas que ainda permeiam a indústria do entretenimento, se tornou mais viável. No entanto, cabe à própria audiência, separadamente, definir o que ainda vale como arte? Quem é que carrega a responsabilidade de definir qual artista pode continuar se expressando livremente?

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