Qual a atual situação da mulher no cinema?
As diversas controvérsias e os debates ao longo dos anos envolvendo a representação e inserção da mulher em séries, filmes e afins, trazem reflexões sobre o que consumimos como entretenimento e se essas produções seriam fiéis ou justas com a realidade da mulher, em vez de apenas se limitarem a estereótipos e exageros.
A experiência da mulher no meio audiovisual muda de geração para geração e segue em uma lenta, porém constante, progressão para um futuro com equidade na representação em filmes, novelas e séries. Existem diversos aspectos a serem analisados em uma peça fílmica, desde sua criação em rascunho inicial até o modo como é interpretada ou faz sentido para quem consome o produto audiovisual.
Mulher no cinema: o teste de Bechdel
Para iniciar uma análise cinematográfica sobre a representação feminina, a professora do curso de Cinema na PUC Minas Clara Albinati, que é graduada em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (EBA-UFMG), propõe o Teste Bechdel para identificar o papel das mulheres nas obras, a partir de três questões como tática de averiguação: a peça midiática possui duas ou mais personagens mulheres que tenham nomes? Elas conversam entre si? Conversam algum assunto que não gire em torno de homens ou romances?
O Teste Bechdel foi desenvolvido a partir de uma tirinha criada pela cartunista Alison Bechdel em 1985, na qual ela satirizava o papel estereotipado da mulher nos filmes Hollywoodianos. A partir disso, o teste foi criado como uma forma de “verificar” a importância da mulher representada para o enredo cinematográfico. Essa análise mostra o quanto o cenário da mídia cinematográfica está intoxicado com machismo e fantasias patriarcais.
De acordo com a professora, que também é pesquisadora das relações entre arte e política na América Latina, a problemática envolvendo a representação da mulher nas mídias pode ser resolvida com a inserção de mulheres no processo por trás das câmeras.
“O principal é termos mulheres diretoras, mulheres na equipe, atrás das câmeras, que aportem maneiras diversas de se autorrepresentarem e também maneiras diversas de auto-organização”, propõe Clara. Ela também defende estruturas de produção não hierarquizadas e de maior contribuição criativa entre as envolvidas, suscitando diferentes experiências de rodagem.
Analisando como a representação da mulher no meio cinematográfico pode variar de diferentes formas, tanto pendendo para o machismo quanto para a supremacia feminina, a inserção de uma equipe de mulheres, sem descartar qualidade de competência, no processo de escrita e produção da peça midiática é certamente indispensável para enriquecer perspectivas e trazer autenticidade para personagens femininas.
Assédio nos bastidores
Assédios morais e sexuais, além de agressões verbais e físicas, são mais comuns do que se imagina: uma a cada três mulheres sofrem ou já sofreram assédio no local de trabalho e uma a cada seis mulheres pedem demissão por conta do ocorrido.
Celina Barbi, diretora na produtora Quarteto Filmes e graduada em Cinema e Audiovisual pelo Centro Universitário UNA, relata que já chegou a ser assediada em um set em seu primeiro trabalho como assistente de produção de elenco.
“O pior é que, por mais que eu reportasse as questões, nada era feito. Foram assédios verbais, e lembro de cogitar todos os dias ao acordar de não passar maquiagem, ou de ir mais desarrumada”, desabafa.
Esse tipo de situação é constrangedora, apesar de, infelizmente, muito comum. Por outro lado, a perseverança de Celina está dando resultados e ela afirma que sempre que possível, quando está na posição em que pode montar a própria equipe, faz questão de ser criteriosa, para que situações como a que teve que passar não se repitam.
A mulher participante da equipe cinematográfica exerce grande diferença no produto final. Segundo a atriz e cineasta Bianca Rolff, as experiências com a dinâmica por trás das câmeras podem ser agradáveis quando desenvolvidas com mulheres que são exemplo de competência na área.
“Aqui em Belo Horizonte, eu vejo muito, mas muito mesmo, um respeito enorme pelas profissionais femininas do cinema”. Bia, como gosta de ser chamada, ressalta que tem ciência do seu privilégio em relação às experiências que teve durante a carreira. “Eu estou sempre trabalhando em sets com uma presença feminina muito grande, então, estar entre mulheres é algo muito comum na minha experiência”.
Bianca reflete sobre as estruturas de trabalho, explicando que o efeito que causam na indústria cinematográfica excedem o profissionalismo por se tratar de pessoas lidando com pessoas, ou seja, não é só por ser um ambiente de trabalho que a mulher está segura de sofrer diversos preconceitos, abusos e assédios.
“É muito importante pensar como as relações de trabalho na indústria do entretenimento se estruturam dentro da maior empresa do ramo no Brasil e na América Latina”, ela comenta, referindo-se ao recente caso da TV Globo envolvendo o ex-diretor, ator, roteirista e humorista Marcius Melhem com as acusações de assédio moral e sexual por várias mulheres dentro da emissora, inclusive a roteirista, atriz e humorista Dani Calabresa.
Bia destaca que casos como esse são extremamente comuns no meio cinematográfico e agradece a sorte que teve até hoje de não passar por situações de assédio no ambiente de trabalho, “É o que a gente sempre busca e espera para todo mundo [as boas experiências no ramo], mas a gente não pode deixar de sempre ficar atento ao que acontece para além da gente, para além das nossas experiências pessoais”.
Algo a ser observado desde a infância
A também graduada em direção de ficção pela Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños (EICTV-Cuba) Clara Albinati analisa que a problemática da repressão feminina não está somente na produção fílmica, mas também muito presente desde a infância.
A observação feita por Clara parte de uma análise sobre como estereótipos expressados no mundo ficcional podem afetar o comportamento de jovens de modo a reduzir sua confiança em se expressar e oprimir as imensidões do imaginário, limitando o que elas acreditam que podem fazer ou não.
Clara enfatiza que há muitas questões que precisam ser resolvidas nessa área, como a necessidade da invenção de uma nova cinefilia para abrir espaço para diversas poéticas e que seja desligado de um prazer cinéfilo vinculado à História do Cinema de caráter evolutivo ‘branco-cis-hétero-patriarcal’, como descreve Clara, dando lugar a histórias diversificadas e plurais.
Por uma nova cinefilia
O manifesto “Por uma nova cinefilia”, de 2019, proposto pelo autor Girish Shambu e discutido por ele e pelas pesquisadoras Carol Almeida e Janaína Oliveira durante o congresso da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE), declara que a cinefilia tradicional é baseada na construção do que foi imposto no cinema há mais de 70 anos pelo homem cisgênero caucasiano.
A nova cinefilia almeja multiplicar a diversidade de vozes e subjetividades, além de uma constelação de narrativas sobre a experiência cinéfila, segundo o manifesto. Então, a cinefilia passa de majoritariamente uma obrigação universal com visão unilateral para uma compreensão da diversidade, libertando-se das amarras do tradicionalismo como forma de reconhecer sua origem e, ainda assim, respeitar e ousar com as questões da atualidade. A nova cinefilia entende que os conceitos tradicionalistas são antiquados e não cabem na sociedade atual.
Durante uma criação coletiva de filmes, realizada com crianças de oito anos, estudantes de uma escola municipal de Belo Horizonte, a professora Clara Albinati observou que as meninas desenhavam casinhas, famílias e paisagens, enquanto os meninos desenhavam personagens diversos, extrapolando na imaginação e criando cenários extravagantes. Essa dinâmica tinha como proposta fazer com que os estudantes ilustrassem algum sonho para que fosse transformado em cenas de uma produção cinematográfica.
Clara confessa que ficou chocada com a situação e tentou apresentar um diálogo sobre o assunto com as crianças. “É necessário entender que jovens, independente do gênero, observam e baseiam suas atitudes no que são sujeitos no cotidiano. Se uma menina sempre foi criada com a mentalidade de que “meninas cuidam da casa e da família”, é muito complicado que ela consiga sair dessa bolha e os danos na imaginação e ambição já foram enraizados”.
Representação nas mídias
Quando personagens femininas passam a ter suas histórias reescritas de forma a serem mais ambiciosas, fortes e com personalidades complexas e profundas, um universo de possibilidades é apresentado para as jovens que acompanham o cinema. Isso é o que de algum modo representa Elsa, principal personagem na animação Frozen: Uma Aventura Congelante, da Disney, lançada em 2013.
A ruptura do estereótipo convencional das princesas também contou com o impulso da protagonista Moana, do filme de mesmo nome, estreado em 2016. Elas não têm interesses amorosos nos longas-metragens e suas histórias focam no crescimento pessoal das personagens, que precisam enfrentar complexas questões para resolver o enredo do filme.
O protagonismo feminino com personagens diversificadas, ultrapassando o estereótipo superficial, teve sua imersão aos poucos. De acordo com Clara, a imagem da mulher menos “maquiada” pode ter tido seus primeiros passos no neorrealismo italiano, um movimento cinematográfico iniciado nos anos 1940, com poucos recursos, que focava em representar o realismo cotidiano, por suas características “orgânicas”. A partir deste marco, outras produções, mesmo que Hollywoodianas, passaram a representar as exceções em relação ao clichê perpetuado por décadas.
Produções como as da roteirista, cineasta e produtora de televisão norte-americana Shonda Rhimes, que é criadora da produtora Shondaland, têm a característica de apresentar protagonistas mulheres ou jovens multifacetadas, como no longa O Diário da Princesa 2: Casamento Real (2004), e na popular série de suspense Como Defender um Assassino (How to Get Away with Murder, 2014-2020), . Esse tipo de produção abre o caminho para filmes e séries semelhantes, o que contribui com novos modelos a serem proporcionados. As personagens Merida (Valente, 2012), Hermione Granger (Harry Potter, 2001-2011), Hit-Girl (Kick-Ass, 2010) ou Michonne (The Walkind Dead, 2010-atualmente) são outros exemplos.
A diretora Celina Barbi é otimista em relação ao futuro das meninas da atualidade: “Somos reflexo das nossas vivências, e nada mais grandioso que alimentar da forma mais positiva nas crianças as mil possibilidades de sua própria existência”, comenta esperando que o futuro ajude a escrever uma história com equidade de gêneros, ambição feminina e que traga progressivamente grandes nomes de mulheres para o meio audiovisual.