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Falta de representatividade nos cinemas contribui para manutenção de sistema hegemônico

A falta de representatividade no mundo cinematográfico é um problema antigo que perpassa todas as esferas da indústria, desde a atuação até a produção, direção e roteiro de uma obra. Essa realidade contribui para a manutenção de discursos hegemônicos e o apagamento das histórias de minorias sociais.

No cinema nacional, o protagonismo é guardado para os homens brancos. Em 2016, as mulheres representaram 40% do elenco, já os negros, 13,3%. Na direção e roteiro a desigualdade é ainda maior. Homens brancos representam 75,4% dos diretores, sendo que 59,9% dos roteiros também foram elaborados exclusivamente por eles. Mulheres negras não aparecem nenhuma vez como diretoras e roteiristas. No cinema estadunidense, a realidade não é muito diferente, o homem branco ainda é o perfil dominante em Hollywood.

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“Assim, temos apenas uma única perspectiva de experiência de mundo nas histórias que se contam. Isso cria um padrão hegemônico, uma forma de estar no mundo, que exclui as outras possibilidades de existência”, afirma a pesquisadora e professora Carla Maia sobre a predominância de figuras masculinas e brancas nos cinemas. 

Para ela, a representatividade é fundamental para tornar visível a diversidade humana e a multiplicidade das experiências. Nesse sentido, é importante pautar para o público questões dos grupos que ficam invisibilizados. “As pessoas que sofrem experiências relacionadas a uma forma de estar no mundo não hegemônica precisam pautar as suas questões para construirmos uma sociedade mais plural e com mais respeito pelas diferenças”, diz.

Para além de Hollywood

Mas a questão vai além. A falta de representatividade de países periféricos e a hegemonia estadunidense alienam as sociedades fora desse eixo hegemônico da sua opressão. A supremacia estadunidense se fundamenta na lógica colonialista e, para a pesquisadora, a disseminação e idealização do american way of life do cinema hollywoodiano contribui para o pensamento de que as produções dos EUA são melhores que as nacionais ou de outros países periféricos. “A gente passa a admirar o que é estrangeiro, a querer o estrangeiro e a entender que lá que é bom”, coloca.

Segundo ela, essa visão é desprovida da crítica necessária para entender que eles são os opressores. “Eles que nos colonizaram economicamente, politicamente e culturalmente”, pontua e faz crítica a essa visão. “O consumo dos produtos norte-americanos é efeito do colonialismo e o problema do colonialismo é manter uma relação de opressão”, opina.

“O primeiro passo para lutar contra a opressão é ter consciência da opressão.”

Carla Maia

Nessa perspectiva, ela discute a importância de consumir produções fora desse eixo hegemônico no combate à condição colonial e aos preconceitos e estereótipos. Assim, é possível entender a perspectiva e a realidade do outro sujeito, desconstruindo mitos e preconceitos. “Quanto mais a mídia consegue dar abertura para esses conteúdos, mais temos uma diversidade de leituras de mundo, de experiências de mundo e isso, é claro, vai sempre ajudar a combater o preconceito, pois não estaremos mais lidando com o outro idealizado, o outro que eu vejo, mas com o outro como ele se vê”, explica.   

O papel do Oscar na indústria cinematográfica

O Oscar é a premiação mais antiga e importante dos cinemas. Atuando como uma vitrine para o mundo, ela movimenta um grande público e serve como guia de filmes para amantes do cinema. No entanto, nos últimos anos, a premiação tem sido ameaçada pela falta de representatividade. Foi nesse sentido que, em 2020, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas divulgou a adoção de novos critérios para a premiação do Oscar com o objetivo de torná-la mais inclusiva.

Apesar disso, Carla Maia faz críticas a sua importância e intenções. Segundo ela, o Oscar foi criado na década de 30, apelidada de Era de Ouro do Cinema Americano, justamente para legitimar as produções dos EUA. Além disso, acredita que o posicionamento mais inclusivo das últimas edições busca, na verdade, recuperar a credibilidade perdida e ampliar o público da premiação, por isso não deve ser visto com ingenuidade.

“O Oscar foi criado para legitimar a produção de cinema norte-americana.”

Carla Maia

Resistência e transformação do cinema

A professora também não vê essas mudanças com muito otimismo e pontua que não é apenas o conteúdo que precisa mudar, mas a estrutura, e que essa continua intocada, uma vez que Hollywood continua dominando as salas de cinema. “Para mim, tornar mais inclusivo tem a ver com distribuição, são mais filmes não-hollywoodianos chegando nas salas comerciais de cinema, e isso não está acontecendo”, afirma.

“O grande poder do cinema de resistir e de criar histórias que confrontam essa hegemonia não virá de Hollywood, mas do cinema independente e experimental, que enfrenta a indústria.”

Carla Maia

A representatividade em “Coisa Mais Linda”

Com estreia em 2019, a série brasileira “Coisa Mais Linda”, disponível na Netflix, chamou atenção pela representatividade do elenco e abordagem de temas importantes como feminismo e racismo.

Em entrevista ao Colab, um dos criadores da série, o roteirista Giuliano Cedroni, conta sobre representatividade em “Coisa Mais Linda”.

Coisa Mais Linda é uma série nacional que se passa no Brasil com atrizes e atores brasileiros. Qual a importância dessa representatividade para o público nacional e de outros países?

É muito importante que a cultura de um país seja bem representada tanto para seu próprio povo como para estrangeiros. É nos livros, músicas, filmes e séries, por exemplo, que nos reconhecemos, nos entendemos e nos aceitamos. E só podemos aceitar o outro de fato depois que nos aceitamos. Em tempos como estes, quando forças autoritárias travam uma guerra aberta contra a cultura e as ideias mais progressistas, se faz necessário resistir.

A atriz Pathy Dejesus contou que na gravação da série foi a primeira vez que ela participou de um set majoritariamente negro. Como foi trabalhar com um set tão diverso? Qual foi a importância disso para a construção da história e da identificação com o público?

A história nasce com três protagonistas brancas e uma negra (Adélia, a personagem da Pathy Dejesus) e, já na segunda temporada, temos duas protagonistas negras e duas brancas. Isso é algo raro no Brasil em uma produção grande como a de Coisa Mais Linda. Esse fato, por si só, já deveria influenciar na escolha de uma equipe diversa. Mas, no Brasil, onde a comunidade negra é de fato maior que a branca, tentar essa diversidade no set é uma obrigação. Sou a favor de cotas, sou a favor de programas de formação em prol da diversidade, e sou a favor da reparação histórica. E claro que tudo isso influencia no processo, que influencia no produto final, e que acaba por tocar o público de forma diferente — neste caso, de forma mais profunda no público negro. 

A série, apesar de se passar na década de 60, aborda temas que ainda são muito atuais, como o feminismo, o feminismo negro e o racismo. Por que considera importante abordar essas questões? Como isso pode mobilizar e mudar a percepção do público sobre elas?

Falar de assuntos relevantes sempre foi uma busca pessoal minha, desde quando eu era jornalista na extinta revista ATENÇÃO! ou diretor de redação da TRIP. Com o tempo, fui aprendendo que para atingir um público maior com esses temas é preciso ser mais inteligente; como ir “escondendo” certas questões espinhosas atrás de uma estética mais atraente, criar uma personagem mais divertida para carregar um história difícil (como a de Theresa), ou escrever arcos narrativos menos “cabeçudos” para tratar de aborto, sexismo, feminicídio. Por causa dos meus anos de jornalismo, conheço a realidade do Brasil e sei que certos temas que eram importantes nos anos 60 ainda o são agora. Infelizmente. Assim que para mim não é uma escolha tratar desses temas, mas uma necessidade.

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