Uma nova proposta do Governo de Minas, divulgada no Diário Oficial no fim de abril, tem provocado indignação entre profissionais da educação e do ensino público.
Trata-se do Projeto Somar: um programa que pretende passar a gestão pedagógica e administrativa das escolas estaduais para instituições privadas da sociedade civil, num sistema de gestão compartilhada.
O projeto foi desenvolvido pela Secretaria de Estado de Educação (SEE/MG) sob a justificativa de que possibilitaria melhora na qualidade do ensino e diminuição da evasão escolar. Uma audiência pública foi realizada no último dia 12 de maio pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para debater a proposta.
Pelo Somar, as instituições privadas serão escolhidas por meio de edital já aberto para o projeto piloto e receberão recursos do tesouro estadual, sendo calculado o custo médio de cada estudante para o repasse. A iniciativa também envolve adotar escolas de ciclo único, separando as que ofertam ensino médio, por exemplo. Todavia, entidades representativas, professores e estudantes questionam a falta de diálogo com a sociedade e denunciam que o projeto pode culminar na privatização da gestão escolar.
Em Belo Horizonte e na região metropolitana já foram definidas as três escolas que integrarão um projeto piloto ainda neste ano. São elas: a Escola Estadual Coronel Adelino Castelo Branco, em Sabará; a Escola Estadual Maria Andrade Resende e a Escola Estadual Francisco Menezes Filho, ambas de BH. Ao todo, as três unidades têm mais de dois mil alunos. A previsão da SEE/MG é que o projeto começará com elas já no segundo semestre deste ano, como período de transição, para a implantação definitiva em 2022.
As escolas Coronel Adelino e Francisco Menezes tiveram queda nas notas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), e a escola Maria Andrade não pontuou, por baixo comparecimento. Mas, para o professor Alanderson do Nascimento, que leciona história na Francisco Menezes, a escolha vai além dos índices. “As três escolas estão em excelentes localidades. Em regiões de classe média alta. Falando especificamente da qual trabalho, a comunidade do entorno tem certa repulsa à escola pública. E o sonho dessa parcela da sociedade é fechar a escola”, explica.
Na audiência pública, Adriano José de Paula, diretor estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação (Sind-UTE/MG), também questionou a escolha baseada no Ideb. “Há escolas com índices inferiores e em áreas de vulnerabilidade social. Acreditamos que esse projeto não serve para escola nenhuma. Se a intenção é melhorar, deveriam começar pelas escolas com menores índices. Mas talvez elas não interessem à iniciativa privada.”
Houve críticas também à frieza da SEE/MG ao escolher as escolhas apenas se baseando apenas em números do Ideb. O professor Jonatas Souza Lima da escola Francisco Menezes Filho pontuou que a complexidade do ensino não pode ser descritas em números e que faltou diálogo para entender essas questões. Através da assessora estratégica Clara Pinheiro, a SEE/MG informou que a escolha também levou em conta a localidade, o fato de serem escolas que ofertam apenas o ensino médio, não possuírem escola em tempo integral, serem de porte médio e terem um custo aluno similar ao de referência.
Principais mudanças para o ensino público
O Projeto Somar vai ao encontro da implementação do Novo Ensino Médio, previsto para começar a vigorar no ano que vem. Uma das principais mudanças é que os professores, atualmente servidores públicos, passarão a ser contratados como na rede privada. A previsão é que os concursados sejam remanejados para outras instituições de ensino.
Mas os docentes das três escolas do piloto afirmam que foram pegos de surpresa pelo projeto, tendo tomado conhecimento por divulgação na mídia. “Foi realmente desestruturante para todo mundo, tirou nosso sossego para trabalhar. Um desrespeito com o servidor público”, diz Alanderson. Ele ressalta que os educadores não foram consultados para elaboração do novo modelo. “Quem está ali na ponta do processo educacional é o professor, e ele deveria ter sido ouvido”.
Durante a audiência pública, a deputada Laura Serrano (Novo) informou que a SEE/MG fez reuniões com os diretores das escolas, no dia 27 de abril, orientando que comunicasse à comunidade escolar. A reunião aconteceu um dia antes da publicação do edital. A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), que presidiu a audiência, criticou a tentativa de amenizar a situação. “Tentar transformar uma reunião às vésperas do lançamento do edital em uma justificativa, como se assim tivesse sido informado a comunidade, também é desrespeitoso.”
Entre os deputados que se posicionaram a favor do Somar na ALMG, Laura Serrano (Novo) argumentou que “as três escolas não deixarão de ser públicas”. Segundo ela, o que se busca é uma inovação de gestão compartilhada para ter resultados melhores. Também na audiência, o representante do Sind-UTE/MG rebateu tal perspectiva: “Na prática é uma privatização do ensino público. Uma mercantilização do patrimônio público. Não há como dizer ‘gestão compartilhada’, se é privatização”.
De acordo com a SEE/MG o Projeto Somar está embasado e amparado na Lei Federal 13.019/2014 e no decreto estadual 47.132/2017, ambas sobre sobre o estabelecimento de parcerias entre a administração pública e a iniciativa privada. Apesar disso, Beatriz Cerqueira apontou inconstitucionalidades na implantação do projeto. “A constituição do país não autoriza o Estado a abrir mão do seu poder estatal de prestar o serviço da educação e transferir para a iniciativa privada. Não há parâmetro legal para esse projeto. É inconstitucional ao tirar a gestão democrática. Na constituição federal e estadual a gestão democrática é um princípio garantido e uma das primeiras coisas que o Projeto Somar subtraí é o direito a uma gestão democrática da comunidade sob sua escola”, explica.
Referenciais do Projeto Somar
A SEE/MG usou como referência para o projeto o modelo de charter school estadunidense, as experiências das Escolas Família Agrícola (EFAs) que possuem parcerias com organizações sem fim lucrativo e a escola Cidade dos Meninos, em Ribeirão das Neves. Esta última sendo alvo de muito debate na audiência pública. Laura Serrano destacou, além dos exemplos internacionais, a experiência em Ribeirão das Neves. “A cidade dos Meninos é uma escola estadual com gestão compartilhada com uma organização social que gera resultados excelentes”. Porém, Adriano José de Paula, que é professor nas proximidades da Cidade dos Meninos, rebateu a declaração dizendo que, mesmo havendo a parceria, os professores da escola são todos efetivos da SEE/MG.
Adriano também destacou que muitos alunos saem da Cidade dos Meninos para ir para escola em que ele trabalha, por não se adequarem ao perfil. “Na escola pública trabalhamos com todos os alunos e não escolhemos o que se encaixa no perfil da escola. A Cidade dos Meninos não é um exemplo que dá certo, pois quando você seleciona seus alunos, você controla o resultado. Mas na escola pública acolhemos a todos dentro das suas diversidades”, pontuou.
Ainda sobre as referências do projeto, a deputada Beatriz Cerqueira criticou a comparação do modelo de gestão compartilhada com as EFAs. “É inacreditável que a SEE/MG tenha como ponto de partida um projeto que é de alternância, e que aproxima a educação da família camponesa e permite a permanência do jovem no campo. Compará-las à privatização é desconhecer a metodologia das Escolas Família Agrícola”.
Também houve muitos questionamentos sobre o embasamento teórico do projeto, sobre quais dados e estudos científicos foram utilizados para a elaboração do projeto. A SEE/MG, através da representante na audiência, afirma ter feito uma pesquisa de opinião na região da escola Cidade dos Meninos. O professor Jonatas Souza Lima, da escola Francisco Menezes Filho, disse que foi “estarrecedor” ouvir que apenas uma pesquisa de opinião foi feita para implementar um novo modelo. Ele também questiona quais foram os princípios pedagógicos utilizados.
Desempenho esperado para o ensino público
A SEE/MG informou que vai monitorar a eficiência e a eficácia do desempenho dos alunos sob gestão das instituições. Rudá Guedes, cientista político convidado para a audiência pública, declarou na ocasião que o modelo focado nessas metas foge da realidade social do Brasil. “São dois conceitos autorreferentes, pois eles não dialogam com a cultura local nem com a comunidade. O conceito atual é o de relevância cultural, em que a gestão dialoga com a comunidade para então absorver e transformar numa concepção mergulhada na nossa cultura. Os conceitos de eficiência e eficácia são do século passado, que sozinhos pouco dialogam com a cultura local ou constroem uma governança social”, criticou.
Laura Serrano defendeu os conceitos argumentando que não são apenas conceitos gerenciais abstratos, pois consideram a realidade social ao tentar dar as mesmas oportunidades a um aluno de escola pública e um aluno de escola particular. Para Rudá isso não se justifica, pois os modelos de gestão empresarial na educação, tais quais os pretendidos pela gestão compartilhada, são focados na população de alta renda e não acolhe os menos favorecidos.
Alunos afetados pelo projeto
Regina Moura é mãe de uma aluna da escola Francisco Menezes Filho e se posicionou contra o projeto durante a audiência. Ela disse não entender quais as garantias que o governo atual ofereceria ao lançar um projeto dessa amplitude no fim do mandato, sem ter a certeza de que vai permanecer no poder. Regina não está satisfeita de que sua filha esteja sendo usada num experimento durante o ensino médio. “O projeto é piloto para vocês, porque para o aluno que está no terceiro ano, como minha filha, não é piloto. Se der errado, deu errado para ela e vai ter impacto para o resto da vida. Não quero que minha filha seja teste de vocês.”
A deputada Beatriz Cerqueira além de ter dado entrada no pedido de impugnação do edital, também protocolou junto à promotoria de justiça uma denúncia sobre a ilegalidade do Projeto Somar. Em nota SEE/MG informou que a implantação do piloto segue prevista para começar ainda este ano e que as parcerias serão formalizadas até final de julho, quando será iniciado o processo de transição para o novo modelo.