Como fazer com que milhares de estudantes tenham acesso à educação pública sem que possam frequentar as escolas? Esta é a pergunta que vem desafiando gestores escolares desde que a pandemia do novo coronavírus foi decretada.
Enquanto muitas empresas e instituições de ensino particulares aderiram ao home office e ao regime de ensino remoto, possibilitando o isolamento de funcionários e estudantes, bem como a manutenção dos serviços prestados, no setor público isso não foi possível.
Uma parcela de alunos dos ensinos médio e fundamental ficou à deriva desde o fim de março, com a suspensão das aulas em decorrência dos riscos de transmissão da covid-19. Enquanto alunos de instituições privadas têm acesso a plataformas online de ensino, alunos de instituições públicas sofrem com a desorientação educacional decorrente do afastamento.
“Pra mim, será um ano perdido! Um ano a mais na escola!”, relata Jorge Bagno, 14 anos, estudante do ensino fundamental no Instituto de Educação de Minas Gerais (IEMG). A indignação ocorre devido à falta de aulas na rede pública. Mesmo com a disponibilização de material para estudo, como apostilas com atividades, alunos não estão satisfeitos e sentem falta do ensino cotidiano, do contato com professores e colegas de turma.
Pais e responsáveis já se preocupam com o desânimo e a falta de produtividade dos filhos durante a quarentena, dividindo opiniões sobre a repetição do ano interrompido.
Para professores da educação pública, desafios serão de longo prazo
O professor de química Mateus Campelo, 30, explica que a situação é um déficit no processo de aprendizado sem previsão para desenlace, já que é complicado obter uma garantia de comprometimento dos alunos e responsáveis ou o simples acesso a classes online.
“A dificuldade é ter contato com os estudantes nesse período. Muitos não têm acesso ou não sabem lidar com mídias sociais, e isso dificultou”, declara Campelo, que é professor da Escola Estadual Presidente Tancredo Neves e do Colégio Técnico da UFMG (Coltec).
O professor revela também que a interação docente e aluno foi reduzida drasticamente. Das sete turmas que leciona, com cerca de 40 alunos em cada, apenas oito estudantes entregam as atividades propostas. Entretanto, Campelo acredita que nem tudo está perdido, pois considera que, apesar das dificuldades de acesso, toda forma de aprendizado é aproveitável e indispensável.
Os alunos de instituições privadas também compartilham da incerteza sobre a reincidência do ano escolar. Apesar de estarem tendo aulas remotamente, a falta do ensino presencial pode levá-los a não serem tão responsáveis ou comprometidos com os estudos. “No início foi complicado, afinal, a gente está dentro de casa. Eu perdia muito os primeiros horários, já que acabava dormindo, mas aos poucos fui acostumando” explica Bruna Bitencourt, 17, estudante do ensino médio no Colégio Santa Dorotéia. A estudante afirma que, por isso, sente que sua vida estudantil está sendo afetada.
A questão da possibilidade da repetição do ano letivo não está tão longe da realidade. Conforme Eduardo Magrone, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em Sociologia pelo Iuperj (atual Iesp/Uerj), a prolongação da vida estudantil, apesar de não ser obrigatória pela lei, pode ser aplicada.
“A repetição do ano letivo talvez não seja uma necessidade ainda, mas é uma possibilidade”, afirma, ao considerar as circunstâncias excepcionais que o país enfrenta. Magrone ressalta que a educação nacional não passa por situação como a atual há quase um século, o que abriria margem para haver cancelamento deste ano letivo e novo processo para o próximo. Ele analisa que essa possível ocorrência deve partir de diálogo entre estudantes, seus responsáveis e as secretarias de educação, defendendo que essa negociação como imperativa, já que não pode ser uma decisão governamental autoritária.
Educação para quase todos
Responsável pelo apoio pedagógico do Ensino Fundamental da Diretoria de Educação Centro Sul de Belo Horizonte, Lauren Marra esclarece que, a partir de um levantamento socioeconômico dos alunos de rede municipal, foi definida a não utilização dos meios remotos como base de ensino.
“Sabemos que a desigualdade é enorme, portanto, aderir ao EaD [ensino à distância] ou ensino remoto sem conhecer a realidade dos nossos alunos, e mostrar para sociedade que as aulas estariam acontecendo, realmente não era nosso objetivo”, explica. Apesar da falta de aulas, o acesso a atividades não presenciais foi disponibilizado por meio online ou impresso (neste caso, com material disponível para recolhimento nas unidades de ensino).
Magrone compartilha dessa visão sobre o EaD e lamenta a situação atual da educação, refletindo sobre a falta de acesso às aulas especialmente pela comunidade com menos recursos. O especialista explica que a simples adoção do regime remoto não resolve a questão da desigualdade, visto que, automaticamente, famílias que não têm condições ao acesso estariam excluídas do sistema educacional.
“É a mesma coisa que o seguinte: Existem 40 vagas e carteiras na escola, mas 60 alunos foram designados para estudar nela. Vinte alunos vão sentar onde?”, exemplifica.
Magrone reforça que a escola é, também, um local de socialização e convivência, de modo que essa interrupção abrupta nos laços sociais dos estudantes pode trazer consequências severas para as condições emocionais e habilidades sociais, podendo afetar o processo de amadurecimento.
A falta de contato frequente social pode resultar em prejuízos no futuro profissional das crianças e dos adolescentes, que podem se acomodar com uma posição não favorável ou até serem incapazes de expressar suas ideias no ambiente de trabalho. “A escola é um espaço necessário para desenvolver essa habilidade social”, afirma Magrone.
Acesso a internet ainda é desigual
A despeito do esforço dos órgãos públicos responsáveis, nem todos os alunos estão se adaptando bem à mudança. Isso é derivado de um longo histórico de desigualdades sociais que afetam a vida estudantil em todas as faixas etárias. Segundo levantamento do IBGE, a desigualdade socioeconômica do povo brasileiro aumentou consideravelmente em 2019, sendo o produto da classe alta até 33,7 vezes maior que o da metade da população mais humilde, que vivia com cerca de R$850 por mês.
Atualmente, os efeitos desta desarmonia social crescente refletem no acesso escasso à educação e às suas potencialidades. Conforme levantamento de 2019 do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil, um em cada quatro brasileiros não tem conexão com a internet. Em meio a uma pandemia, isso significa limitações e impacto no acesso à educação. Se, por um lado, há alunos desmotivados e cansados da rotina online, por outro, há estudantes frustrados sem direito a ter aulas.
Conforme dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o tempo que os alunos entre 6 e 17 anos estão dedicando para os estudos durante a pandemia em Minas Gerais é quase metade do tempo previsto pela Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB), sendo a média de 2,5 horas, enquanto a norma prevê quatro horas diárias obrigatórias. A pesquisa alega que essa diminuição é mais causada pela falta de acesso dos estudantes ao material escolar do que pelo comprometimento aos estudos por parte dos alunos, sendo que 13,5% dos estudantes entre 6 e 15 anos não tiveram acesso aos materiais escolares e apenas 2,88% não utilizaram o material recebido.
A decisão das escolas particulares de prosseguir com o ensino e manter o ano letivo, segundo Lauren Marra, é resultado de um sistema que somente se preocupa com notas, não dando devida importância ao aprendizado.
“Mais uma vez nossa sociedade se divide em realidades constrangedoras. Educação para todos não é real”, diz, ao explicar que a classe mais abastada torna a educação puramente comercial, elitizando a afluência na educação nacional na relação entre público e privado e tornando a formação acadêmica aligeirada, ou seja, preocupando-se mais em ter um diploma do que em fornecer aprendizado de maneira eficiente.
Conforme relatado no artigo A Normalidade da Desigualdade Social e da Exclusão Educacional no Brasil, de Iracema Santos do Nascimento e Patrícia Cerqueira dos Santos, a “normalidade da exclusão” é uma desnaturalidade humana causada pelo protagonismo da sociedade rica dentro do capitalismo. Remetendo ao fenômeno social onde é “comum” que aqueles que não têm os instrumentos para acompanhar a sociedade privilegiada são deixados “para trás” ou “para depois”.
A necessidade de um esforço maior por parte dos governos para cumprir o direito à educação previsto pela lei brasileira é urgente, conforme avalia a advogada da área educacional Alynne Nayara Ferreira Nunes, que também é mestra em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Ela salienta a importância de não apenas disponibilizar material didático impresso, como de garantir que este material chegue ao aluno e o mesmo tenha condição favorável para dedicar tempo à educação.
A advogada argumenta como a falta das merendas escolares pode ser um empecilho para o estudo dos alunos de instituições públicas, mencionando ainda a notoriedade de manter um ambiente seguro no lar do estudante. “Quando você protege a família, você acaba protegendo também a criança”, expõe Alynne, enunciando o dever do órgão público de garantir uma situação oportuna e confortável para crianças e adolescentes estudantes, de forma que nada possa interromper ou atrapalhar a vida escolar.
“Estamos em um período de pandemia, mas isto não significa suspensão dos direitos à educação”, afirma a advogada. Mesmo com as apostilas disponibilizadas, é importante que as instituições de ensino reforcem a matéria escolar dada neste ano nos próximos anos letivos, para garantir que não haja mais perdas ou carências na área. Isso se aplica mesmo para as instituições privadas, pois, segundo Alynne, uma instituição que normalmente trabalha com ensino presencial, não está isenta de prejuízos em relação ao aprendizado.