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Prevalência de problemas psicológicos entre policiais é grave no Brasil

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública acendem alerta sobre assistência à saúde mental de agentes

O suicídio entre policiais ainda é um tabu,  principalmente nas instituições policiais e entre agentes penais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define o suicídio como “um ato deliberado, intencional, de causar a morte a si mesmo, ou seja, um ato iniciado e executado por uma pessoa que tem a noção de que do seu ato poderá resultar a morte, e cujo desfecho fatal é esperado” (OMS, 1998).

De acordo com artigo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020 sobre a vitimização de policiais em tempos da Covid-19, no último ano,  houve redução de 15,6% da taxa de suicídio se comparada a 2019. Entretanto, esses números são subnotificados devido à invisibilização da pauta.

Dados publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2019 divulgaram que, só em 2018, 104 policiais foram vitimas de suicídio no país. O número é maior que a quantidade dos que morreram em decorrência de confrontos nas ruas (87) durante o serviço.

As próprias instituições estaduais têm dificuldade em sistematizar e acolher esses dados, o que complexifica a abordagem e, consequentemente, dificulta a criação de políticas públicas voltadas para a saúde mental de policiais. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 90% dos casos de suicídio estão associados a distúrbios mentais e, portanto, podem ser evitados com o tratamento certo.

Pesquisas  alertam para a subnotificação, pois muitos dos casos de suicídios consumados e tentativas de suicídio não são informados ao setor responsável por inúmeras razões. Entre elas estão as questões socioculturais, o tabu em torno do fenômeno, e a existência de preconceito ao policial diagnosticado com problemas emocionais e psiquiátricos.

Imagem meramente ilustrativa / Pixabay

Um problema estrutural

Marcell Felipe Alves dos Santos graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Newton Paiva, mestre pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador em Psicanálise e Violência, analisa que as questões institucionais são extremamente responsáveis por essas questões:

‘Você só será aceito se for desse modo. Você só será o policial se for desse modo.’ Não pode ser policial se for de outro modo, não pode ter diálogo, por exemplo. Tem que ter força, tem que ter ódio, tem que ter vontade de matar, você só vai por isso.  Tem uma relação imaginária entre a instituição, a cultura e o policial que favorece o sofrimento desse policial, a vulnerabilidade, o não diálogo, não discurso ou a não conversa. A palavra ‘não’ tem espaço. E quando a palavra ‘não’ tem espaço, o corpo é agredido e agressor”.

Marcell Felipe Alves dos Santos

Dentre os principais fatores que podem contribuir para que os casos de suicídio entre agentes penais sejam tão recorrentes está o estresse devido à função policial, e a ausência de suporte de serviço de saúde mental. Cristianos Campidelli, delegado de Polícia Federal e professor de Direito Penal, relata que não há nenhuma diretriz dentro da corporação que exija um acompanhamento e avaliação psicológica regular. “Houve uma iniciativa de avaliação médica, anos atrás, mas não se tornou uma prática institucional recorrente, estando atualmente a cargo de cada servidor ou colaborador”, comenta.

Há também conflitos financeiros, familiares e institucionais, além de um cenário grave: o livre acesso a armas de fogo e munição. De acordo com o Atlas da Violência de 2020, o livre acesso a uma arma dentro de casa, além de aumentar inúmeras vezes as chances de algum morador sofrer homicídio ou morte por acidente, também aumenta as chances de suicídio.

“A arma é instantânea. Se o sujeito tem fácil acesso à arma e está em momento de pura angústia, o uso da arma é o ato que ele pode fazer para acabar”, afirma Marcell dos Santos. Campidelli complementa que, em casos que há risco de autoextermínio, administrativamente as armas funcionais ou particulares são recolhidas. Mas, conforme o próprio delegado contou, sem diretrizes de acompanhamento psicológico, o diagnóstico desse risco fica comprometido.

Policiais vivem rotina de frustração

Desde o ingresso do agente na corporação, inicia-se um cotidiano de rigidez e intimidação, agravando o estresse, o medo e a angústia presentes na profissão, quase sempre vividos em silenciosa solidão. “Em vários casos, os agentes optam por não relatar o transtorno para não perder o porte de armas ou até mesmo o emprego dentro da corporação”,  relata o agente penal Wagner Borges dos Santos, que atua na profissão há cinco anos.

No livro Por que policiais se matam?, coordenado pela  doutora Ciência Política e Pós-doutora em sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Deyse Miranda aponta que, entre os problemas listados, estão a dificuldade de pedir ajuda, a falta de diálogo e a forma como são tratados pelas corporações quando adoecem. Cristiano Campidelli destaca que para que estes preconceitos sejam superados, “a solução é a orientação, a desmistificação, o conhecimento, pois só isso afasta o medo de falar do assunto, afasta o medo de admitir a fragilidade humana e, principalmente, diminui o preconceito daqueles que estão ao redor. Nós policiais somos vistos como super-heróis, como pessoas infalíveis, o que é reproduzido pela mídia e especialistas de plantão, que não medem palavras para criticar o policial que erra”.

Recortes: gênero e machismo institucional 

Pesquisas apontam que a maioria dos casos relacionados a problemas psicológicos na polícia são de profissionais homens. Enquanto 75% das mulheres que já tentaram suicídio já estiveram em contato com um psicólogo, apenas 50% dos homens buscaram algum tipo auxílio. Marcell dos Santos explica estes números: “O sujeito que procura tratar o seu psiquismo, isso que é abstrato, coloca-se em uma situação de vulnerabilidade, uma coisa que o machismo não suporta. Não suporta colocar nós, homens, como seres vulneráveis. Precisamos sempre nos dar conta de ser uma máquina de sexo, ser uma máquina de poder, ser uma máquina de guerra. Mulher nenhuma faz guerra, quem faz guerra é homem.”

Pesquisa realizada em 2020 pelo Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES), com policiais militares que tentaram suicídio, revelou-se que 78% dos casos foram desencadeados porque os homens se sentiram desrespeitados, 55% por insultos, xingamentos ou humilhação e 52% por amedrontamento ou perseguição.

A pesquisa também revela que quase a metade dos policiais com ideação suicida pensou em utilizar arma de fogo e 40,5% daqueles que tentaram o suicídio utilizou este meio no incidente. Marcell Santos afirma que para que casos como este sejam prevenidos,  é preciso o acompanhamento psicológico desde o início, desde o momento em que o agente passou no concurso da polícia: “A polícia não é o problema. A cultura institucional é o problema. É preciso mudar o conceito, a missão ou a visão e o valor da instituição policial. Porque a polícia já saí de lá com inimigos, [o policial] tem uma lavagem cerebral, com inimigos. Infelizmente, a instituição  está destruindo pessoas que podem fazer, e muito bem, uma proteção dentro da legalidade”.

É durante o processo de alistamento para o Exército Brasileiro que o agente tem o primeiro contato com estes tipos de violência. O treinamento é conhecido pelo abuso, preconceito e incitação a violência física e psicológica. “Não precisa de treinamento de guerra se nós não estamos em guerra”, comenta Marcell.

Campidelli também aponta a desmistificação do tema e a abertura para o diálogo como forma de prevenção, e atenta sobre a reprodução do mito do policial herói, por parte da população e, principalmente, pela mídia. “Tudo isso gera uma pressão imensa no homem e na mulher policial, o que em nada colabora para a solução do problema”.

Imagem meramente ilustrativa / Pixabay

Diálogo para a prevenção do suicídio de policiais

 A saída sempre é pela palavra. Em uma instituição onde o sujeito é calado, esse calar-se não é silêncio, é calar-se. Porque o silêncio produz, o calar não, o calar obstrui. O calar é como se fosse uma mangueira que você tampa a ponta, sabe? Ela [a água] vai precisar sair de algum lugar e quando ela não sai é quando o sujeito se coloca em uma situação de não transbordar essa energia. Essa vontade, esse calar-se para a destruição externa, o sujeito vai colocar o corpo em risco. 

Marcell Felipe Alves dos Santos

Acesse aqui para o Boletim IPPES 2020: Um panorama do suicídio policial no Brasil

Reportagem desenvolvida por Luiz Fernandes e Natália Teixeira, 6º período jornalismo PUC Coração Eucarístico 

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