Se você é uma pessoa branca que teve acesso à televisão na sua infância, provavelmente cresceu assistindo filmes, seriados e programas de televisão em que príncipes, princesas, heróis e a maior parte dos personagens se pareciam com você. Eles tinham os mesmos traços físicos, trejeitos, modos de falar e também se pareciam com grande parte da sua família.
Mas, se você é uma pessoa preta, brasileira, que cresceu assistindo a esses mesmos programas e emissoras, a realidade é bastante diferente.
A mestranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Etiene Martins, sabe muito bem disso. Mulher preta e pesquisadora das relações étnico raciais, ela explica que essas diferenças são fruto de um longo processo de colonização sofrido pelas populações não brancas ao redor do mundo.
O europeu um dia resolveu se autointitular como branco e deu ao africano o nome de negro, o povo originário o nome de indígena, ao asiático o nome de amarelo e, assim, criou hierarquias entre essas populações. Tudo que permeia como qualidade, como beleza e como inteligência passou a estar atrelado aos corpos brancos”
Etiene Martins
Pensando nisso, torna-se cada vez mais fácil entender por que a representação de pessoas pretas sempre foi – e é até hoje – tão escassa nas novelas, filmes, publicidades, dentre outras representações midiáticas.
Dalila Musa, doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a problemática da presença de pessoas pretas vai muito além da existência como personagens de narrativas. “Eu acredito que alguns estereótipos precisam ser quebrados a partir não só da presença de atrizes e atores pretos mas, principalmente, de roteiristas e de pessoas que produzem as próprias narrativas”, afirma.
Na maior em audiência, falta representação
Na última década, 15 autores e 13 produtores estiveram à frente do desenvolvimento das conhecidas “novelas das nove” da Rede Globo. Dentre os 28 profissionais, estão nomes como Wolf Maya, Glória Perez, Walcyr Carrasco, Aguinaldo Silva, João Emanuel Carneiro, dentre muitos outros. Em meio ao glamour de profissionais tão conceituados no ramo um detalhe não pode passar batido: nenhum deles é uma pessoa negra.
Ou seja, 100% do conteúdo consumido pela população brasileira nos últimos dez anos foi escrito e produzido com base na visão de pessoas brancas. Por isso, é possível entender o por quê da representação das pessoas pretas na mídia ser tão estereotipada e por muitas vezes escassa.
Além disso, uma análise das últimas 23 novelas das nove da Rede Globo concluiu que menos de 12% dos personagens presentes eram pessoas negras, conforme gráfico produzido a partir de dados do Gshow.
Além da escassez de profissionais negros na construção das narrativas, a ausência dessas pessoas como personagens de suas histórias é notória. Novelas de grande repercussão como Amor à vida, Império, Fina estampa, Avenida Brasil e A regra do jogo estão entre as narrativas que contam com menos de 10% de personagens negros em seu elenco, segundo dados do Gshow.
Representação negra na mídia e relacionamentos amorosos
Relacionamentos inter-raciais são foco de debate desde muito antes da televisão e da internet existirem. Na música, no futebol, na arte e nas mais diversas esferas da sociedade o debate racial está presente e impacta as relações entre os indivíduos.
Na arte
Um grande exemplo de representação de relacionamentos inter-raciais é o clássico quadro A redenção de Cam, do artista espanhol Modesto Brocos. Em 1895, ele retratou uma mulher escravizada negra e sua filha mestiça – fruto de um relacionamento inter-racial. A imagem sugere que, após se relacionar com homem branco, a mulher tem uma criança branca, que leva a avó negra a dar “graças aos céus” por ter conseguido o embranquecimento para sua família.
Esse é um reflexo do racismo arraigado na sociedade que enxerga a mestiçagem como uma estratégia de purificação, elencando corpos negros como ruins e corpos brancos como uma meta a se alcançar.
Na música
Um caso emblemático de relacionamento inter-racial na música foi a história de amor entre a rainha do pop, Madonna, com o rapper, Tupac. Nos anos 1990, o relacionamento acabou sob a justificativa de que, sendo ela uma mulher branca, prejudicaria a carreira do cantor frente ao seu público.
Na imagem acima, postada no perfil oficial de Tupac no Instagram, um registro do cantor junto de Madonna e Sting, na época do relacionamento.
Em trecho famoso da carta de término do casal, Tupac afirma:
Para você (Madonna), ser vista com um homem negro não ameaça a sua carreira, no máximo, faz com que você pareça mais aberta e aventureira. Mas, no meu caso, senti que, devido à minha “imagem”, eu estaria decepcionando metade das pessoas que me fizeram ser o que sou”.
Tupac, em carta a Madonna
A perspectiva do cantor é um reflexo do peso que a sociedade coloca sobre relacionamentos entre pessoas pretas e pessoas brancas. Ele, um homem preto que canta os dramas da negritude, não se sente confortável em estar ao lado de uma mulher branca que performa todos os estereótipos da branquitude, pois sabe que será julgado por isso, tido como aproveitador ou terá seu talento negligenciado pelo seu relacionamento.
Vivências e letras
O debate inter-racial também aparece nas letras das canções de artistas contemporâneos. Em 2020, o rapper Orochi foi alvo de críticas ao postar uma foto com sua namorada branca, Lara Jucá. Os seguidores do cantor se incomodaram com o fato de suas músicas abordarem a realidade das favelas e de mulheres negras, mas o cantor se relacionar com uma mulher loira de pele clara.
Na internet, usuários utilizaram o verso em que o cantor diz “Minha pequena deusa africana”, da música Amor de fim de noite, como justificativa aos ataques.
Outros cantores também foram alvo de críticas nas mídias sociais pelo mesmo motivo, dentre eles Mc Cabelinho, Bin, Dfideliz e Mc Neguinho do Caixeta.
Nas novelas
As novelas são recheadas de romances, traições, casamentos e diversas representações sobre o amor. Nelas, casais se formam, se separam, vivem dilemas e diversas experiências amorosas ao longo da trama. Porém, há um fator que não muda entre as narrativas: o debate racial.
Nas múltiplas etapas da consolidação da televisão brasileira, é possível perceber a representação de milhares de casais nas telinhas. Mas, quando vamos falar da presença de casais com pessoas pretas, essa realidade é bastante diferente.
Nos anos 1990, por exemplo, a proposta de retratar casais inter-raciais resultou em muitos casos em que a população não recebia bem essas representações. Um caso emblemático foi a novela Corpo a Corpo da Rede Globo que, há 38 anos, levou para o principal horário da emissora o relacionamento entre Cláudio (Marcos Paulo) e Sônia (Zezé Motta).
O casal causou polêmica dentro e fora da telinha. Na época, Zezé foi hostilizada e Marcos Paulo chegou a receber recados agressivos em sua secretária eletrônica, criticando a aceitação do autor em formar um par amoroso com a atriz negra. Este caso é apenas um reflexo da negligente realidade do audiovisual – e por que não da sociedade – brasileiro.
Para além do amor, representatividade
A pesquisadora Dalila Musa enfatiza que para além das questões de afeto, falar que ‘amor não tem cor’, ou que é uma simples escolha, é muito simplório: “O que realmente acontece é que existe uma série de narrativas por trás desses relacionamentos inter-raciais que são pouco discutidas e que são fundamentais para explicar o processo de construção desses casais na mídia”.
Analisar o marketing e a forma como a mídia televisiva trata os corpos pretos é fundamental para entender o que está por trás das construções que vemos diariamente. Ao falar da presença de pessoas pretas na publicidade, por exemplo, é necessário pensar em dois pontos: pessoas negras como personagens e como consumidores.
Se formos pensar em figuras negras sendo protagonistas de suas histórias, sabemos que grande parte dos comerciais não as incluem como personagens e, quando incluem, nem sempre recebem boa aceitação do público.
Esse foi o caso da campanha de Dia dos Pais de 2018, da marca O Boticário, em que uma família negra estrela o vídeo bem humorado. O fato de a família ser negra não é o foco do comercial, mas essa não foi a compreensão do público.
No YouTube, a versão de 30 segundos da campanha da agência Almap virou alvo de ataques racistas, que conseguiram dar 16 mil “não gostei” ao vídeo. Nos comentários, muitos usuários perguntavam “Cadê a representatividade?”, de forma irônica, e alegavam que o comercial era racista, porque só tinha negros e faltava representatividade, sem levar em conta que a grande maioria dos comerciais, séries, novelas, são estrelados por pessoas brancas.
Apesar dos ataques e do ódio, os defensores da campanha deixaram 48 mil curtidas e mais de 6,5 milhões de visualizações do vídeo em quatro dias.
Já ao pensarmos em pessoas pretas enquanto consumidores, Dalila Musa propõe uma importante reflexão sobre o caráter político do consumo:
O consumo é também como um lugar de disputa, principalmente para pessoas negras, um lugar de disputa pela inserção de produtos, pela presença de celebridades, disputa no consumo de músicas como funk, samba, dentre outros ritmos que ainda hoje não são tão bem aceitos pela sociedade”
Dalila Musa
A pesquisadora ainda cita a aceitação dos cabelos crespos e cacheados como uma grande luta não só no campo pessoal, mas como um reflexo da ação de grupos militantes nas lógicas de consumo.
Quando a gente é bombardeado por campanhas publicitárias em que as únicas imagens relacionadas a questões positivas são de mulheres loiras, brancas, com corpos muito magros, a gente cria também dentro da gente esses imaginários”
Dalila Musa
Portanto, aumentar a representatividade é importante justamente por inspirar outras pessoas negras a amarem seus traços, ocuparem posições de poder e reivindicarem seus espaços na sociedade, tanto no mercado de trabalho quanto no protagonismo de suas próprias narrativas.
“Por quanto tempo pessoas pretas alisaram seus cabelos, já que na lógica de consumo, o cabelo crespo era tido como sujo, feio, desleixado e desarrumado? É a partir do momento em que há maior aceitação e uma visão política desse cabelo, que começa a pressão no mercado”, comenta Dalila Musa. A pesquisadora ainda afirma que, devido aos movimentos que visam inclusão e diversidade, as marcas sentem-se na obrigação de ofertar produtos específicos, produzir conteúdos de publicidade e, com isso, automaticamente, levar à mídia essas representações de pessoas pretas empoderadas que por anos foram negligenciadas.
Dessa forma, mais mulheres começam a se identificar com esse cabelo [crespo] e passam a entendê-lo agora como bonito, cheiroso e arrumado. Isso é o consumo participando de um processo de construção de identidade”
Dalila Musa
A mídia ocupa um espaço muito importante no imaginário do povo brasileiro. Etiene Martins afirma que “a televisão é fundamental para quem ganha um salário mínimo, tem dois filhos e não pode arcar com os valores altos das ofertas culturais dos grandes centros como cinemas e teatros”. Por isso a importância de ser um espaço plural que não reforce os estereótipos sobre pessoas pretas e os seus relacionamentos.
Reportagem produzida por Paula Barreto Ribeiro para o Laboratório de Jornalismo Digital, no semestre 2022/2 do curso de Jornalismo da PUC Minas - campus Coração Eucarístico, sob a supervisão das professoras Verônica Soares e Maiara Orlandini.
Que legal!!!
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