Letícia Cesarino é professora na Universidade Federal de Santa Carina (UFSC) e doutora em Antropologia pela Universidade de Berkeley, na California. Suas pesquisas focam no estudo do neoliberalismo e da performance de governos de extrema direita, mais especificamente, na figura do presidente Jair Bolsonaro.
Em entrevista ao Colab, Cesarino analisa a construção do corpo digital de Bolsonaro e as características neopopulista no governo brasileiro.
A entrevista foi editada para garantir clareza e concisão aos leitores.
Em palestra na UFMG, você afirmou que a estrutura da mídia de hoje tem um viés técnico que é favorável a tipos de política como a que associamos a Bolsonaro. Você pode explicar um pouco mais sobre?
A mídia, na atualidade, trabalha com um sistema de economia da atenção e uma temporalidade efêmera, que auxiliam o fortalecimento de figuras midiáticas como o Bolsonaro. Esse formato de notícias, na tentativa de compartilhar informações o mais rápido possível, acaba por trazer discursos como o de Bolsonaro para o centro da discussão política, aumentando seu alcance entre a população.
De que maneira os dados falsos compartilhados em grupos bolsonaristas contribuem para o discurso da deslegitimação de órgãos públicos e institutos de pesquisa?
Em 2018, a campanha bolsonarista visou atacar formadores de opinião, no sentido de deslegitimar essas figuras e descredibilizar as críticas a ele, aumentando seu apoio eleitoral. Já no contexto das eleições de 2022, o movimento bolsonarista precisa lidar com a baixa popularidade e as críticas ao seu primeiro mandato. Por isso volta às estratégias de deslegitimação para institutos de pesquisa e o TSE, já articulando as vias para no futuro contestar o resultado das eleições caso ele perca.
O que significa afirmar que Bolsonaro representa a antiestrutura da política atual?
A teoria da antiestrutura se centraliza na separação da sociedade em camadas normativas e camadas mais latentes, marginalizadas pelas normas preestabelecidas. A figura populista anti estrutural representa os grupos que se consideram excluídos pelos ideais normativos existentes. No contexto eleitoral de 2018, Bolsonaro se pautou como essa figura que pleiteava as reivindicações de grupos fora do centro do cenário político e cultural. Agora, em 2022, ele ainda mantém a postura do antipolítico, pautando-se como a peça diferente no jogo.
O que é a metáfora do caleidoscópio e como Bolsonaro se enquadra nela?
Quando pensamos em uma figura anti estrutural, é importante pensar que nunca é possível ascender sendo completamente contra as camadas normativas da política, portanto o líder anti estrutural acaba por ser fractal e mostrar diversas facetas diferentes de um mesmo discurso.
Aí entra a metáfora do caleidoscópio, discutida pela pesquisadora Isabela Kalil e outros. Essa metáfora está relacionada com essa ideia de mostrar vários lados de si para diferentes grupos, cada um vendo uma imagem diferente, mas mantendo a unidade do “todo”.
Como a mobilização permanente de conteúdos alarmistas e conspiratórios mantém o eleitorado bolsonarista?
A disseminação de conteúdos alarmistas no bolsonarismo surgiu em 2018, junto com a deslegitimação dos meios de comunicação e dos formadores de opinião. Porém, mesmo depois das eleições, diversos grupos mantiveram esse comportamento – como, por exemplo, o movimento antivacina e do tratamento precoce. A construção de narrativas alarmistas contribuíram para manipular as fontes de informação e fortalecer o pensamento bolsonarista acima das instituições oficiais, também já preparando o terreno para uma possível contestação do resultado eleitoral em outubro.
O que é o conceito de espelho inverso na política e como o bolsonarismo utiliza esse recurso?
O espelho inverso, ou mimese inversa, é a ideia de se apresentar no mesmo formato do adversário, porém, com o conteúdo invertido, passando um efeito implícito de superioridade. Tal estratégia pode ser observada nos movimentos bolsonaristas em 2018 que eram criados a partir de ideias da esquerda, como, por exemplo, o movimento #Elesim em contraponto ao #Elenão. A mimese inversa também é forte nos memes bolsonaristas que passam ao usuário a sensação de que a direita é melhor, como foi feito ao comparar a imagem da mulher de direita respeitosa com a imagem da “feminista suja”.
O que é Gramscismo? Como o bolsonarismo utiliza essa linha de pensamento?
O Gramscismo traz a ideia, ou teoria da conspiração, de que a esquerda teria deixado de lado a luta original pela redistribuição dos meios de produção e focado na manipulação da luta de classes por meio de uma suposta guerra cultural. O bolsonarismo se apropria desse discurso e o utiliza para distorcer os pensamentos do filósofo, utilizando dessa narrativa para justificar uma suposta manipulação da mentalidade e da cultura pela esquerda, fortalecendo seu próprio eleitorado.
Qual a relação entre o crescimento do conservadorismo moral e a prática de políticas neoliberais?
Inicialmente, o pensamento neoliberal era alinhado com um pensamento mais progressista, pautando lutas sociais e impulsionando mudanças que auxiliavam o mercado. Contudo, após a crise de 2008, o neoliberalismo viu a necessidade de uma mudança na dinâmica política e, com isso, se alinhou com a direita conservadora. O conservadorismo se alinha com a implementação de práticas neoliberais, como, por exemplo, a imagem da mulher como cuidadora na esfera doméstica. Em uma realidade em que as mulheres ficam em casa para cuidar da família, é mais fácil impulsionar cortes de verba em setores como o de creches, auxílio familiar, cuidados com idosos, entre outros. O empenho do bolsonarismo em trazer de volta pensamentos conservadores também facilita seu diálogo com a parcela liberal do congresso.
Outra pauta progressista que é criticada pelo conservadorismo é a lei de cotas, trazendo o argumento da ameaça à meritocracia. Políticas de redistribuição popular da verba pública são sempre pautadas como um ataque à classe trabalhadora, mas o mesmo grupo que critica iniciativas como as cotas proporcionou o repasse de verbas públicas para o cantor Gusttavo Lima, ou seja, quando vai para políticas públicas é um problema, mas se é cachê de cantores, não.
Podemos dizer que quem fez e faz atualmente a campanha de Bolsonaro são seus apoiadores? Essa campanha é profissional ou amadora?
É inegável que existe uma grande participação orgânica no compartilhamento de conteúdo pró-bolsonarista. Desde o crescimento do Bolsonaro, em 2018, seus apoiadores produzem e compartilham uma grande quantidade de conteúdos, inclusive saindo de espaços anti estruturais, como o Telegram, para se estabelecer também em plataformas mais normativas, como o Youtube. Porém, a análise das produções para o Telegram mostrou que alguns dos usuários, apesar de não serem bots, enviam grande volume de mensagens, mantendo os grupos ativos constantemente. Fatores como esse podem apontar que, apesar da participação dos ativistas bolsonaristas, existe uma manipulação sutil que direciona as discussões dos canais.
Como o corpo digital de Bolsonaro se separa de seu corpo físico e o que essa dinâmica altera em sua popularidade?
O corpo digital representa os apoiadores do presidente. Quando Bolsonaro levou a facada e ficou impossibilitado de fazer campanha, seus apoiadores se apresentaram para preencher o vácuo no projeto eleitoral do então candidato. Com esse acontecimento, consolidou-se o corpo digital de Bolsonaro, que foi e é essencial para a sustentação da sua relevância na política. Sem o meio digital, Bolsonaro muito provavelmente não teria ido tão longe.
A estratégia digital de Bolsonaro é específica dele, ou marca o início da migração da política para o meio digital?
Não acho que a política migrará totalmente para o digital, até o Bolsonaro, que é o mais forte nesse quesito, não faz política apenas na internet. Mas sinto falta de maior participação de outros políticos. Ciro tentou se inserir na internet e acabou se perdendo um pouco no personagem. A campanha de Lula, apesar de ter uma frente voltada para as redes sociais, ainda é muito tímida em comparação com a presença online de Bolsonaro, tendo pouco efeito num meio já dominado pelo bolsonarismo.