Uma goteira. Pablo Peixoto sempre preferiu gravar para o YouTube sem se prender a roteiro algum. Mas, sem uma câmera, as coisas se complicam um pouco. E foi exatamente o que lhe foi posto à prova por uma persistente goteira no teto, pingando bem em cima de uma câmera. Por conta disso, a cobra, o peixe ou a salamandra da internet – como queiram considerar o caráter camaleão do personagem deste perfil – fez o que está acostumado: adaptou-se. Não ligou a câmera para nos conceder a entrevista, mas se dedicou por mais de uma hora a nos atender e responder com humor a todos os questionamentos.
Mineiro de 47 anos, Pablo de Melo Peixoto é natural de Cataguases e vive em São Paulo desde 2012. Criador e apresentador do canal Quatro Coisas, autoproclamado “o youtuber que mais trabalha no Brasil”. Consolidou-se como uma figura conhecida no nicho de divulgação geek e cultura pop, abordando filmes, séries, quadrinhos e games.
A trajetória, contudo, é um fascinante estudo de caso de reinvenção profissional, marcada pela busca incessante pela criatividade e a recusa em se prender à “verdade” factual do jornalismo tradicional. Foi isto que o levou a migrar para a “ficção”, produzindo desde scripts para TV até conteúdo online ligados ao entretenimento.
Sempre gostei mais de ler quadrinhos do que de ler romance. Isso até me prejudicou um pouco na entrada que eu tive com os livros, mas os meus professores falavam que era melhor ler quadrinhos do que nada.
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber

Pablo, desde cedo apaixonado por contar histórias, sempre esteve imerso no universo de séries, filmes, brinquedos e quadrinhos. Ele cresceu em uma família estável: a mãe, 21 anos mais velha, compartilhava com ele referências de cultura pop, como o filme Planeta dos Macacos. O pai, funcionário do Banco do Brasil, era de uma geração que priorizava a segurança do concurso público.
Pablo confessa que a falta de um exemplo empreendedor em casa fez com que ele tivesse dificuldades para pensar em seus projetos como negócios rentáveis, incluindo seu canal no YouTube. Além disso, seu pai o aconselhou a nunca trabalhar com aquilo que gosta, para não transformar um hobby em obrigação, mas Pablo reconhece que ignorou as advertências.
Agora, olhando para a minha infância, eu acho que me faltou muito essa esperteza de empreendedor, porque eu não tive esse exemplo dentro de casa. Então foi uma coisa que me faz falta hoje em dia: pensar como empresa. Eu demorei a pensar no Quatro Coisas como empresa, eu demorei a pensar como empresário.
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber
Formação
Formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Pablo já mostrava na rádio universitária, que funcionava em um banheiro adaptado, seu traço bem-humorado e criativo. Ele apresentou vários projetos à faculdade, como programas de rock, mas suas propostas de humor eram consideradas “perigosas” para o ambiente universitário federal, que buscava o reconhecimento do mercado de trabalho para os alunos. Mesmo assim, Pablo injetava doses de humor e espirituosidade em seu programa de variedades.
A porta de entrada de Pablo para a criação de conteúdo se deu em 2001, quando era estagiário numa subsidiária da Embratel e tinha acesso à internet de banda larga e fibra óptica, algo raro à época. Nesse estágio, começou a criar PowerPoints em looping com dicas de trabalho, humor e entretenimento na empresa. E, no tempo livre, inspirado por blogs da época, Pablo lançou o seu, chamado Pérolas para Porcos.
O nome foi inspirado por um quadro do Monty Python’s Flying Circus com o mesmo nome. O Pearls for Swines original, em português Pérolas para Porcos, vem de um adágio bíblico: cuidado ao dar algo de grande valor para alguém incapaz de o apreciar. Pablo, que publicava apenas piadas que o entretiam e temas que o interessavam, achou o nome apropriado, além de engraçado: “toma aí, divirta-se quem puder.” Ele mantém a filosofia até hoje.
Nunca me preocupei em adaptar, facilitar, mudar o meu conteúdo, minha abordagem, de maneira que fosse mais comercial, palatável.
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber
Após a faculdade, a carreira de jornalista durou apenas uma semana. Foi rejeitado em um teste em um jornal de Juíz de Fora. Pablo admitiu que tinha preferência por “manipular” as entrevistas, trocando o que as pessoas diziam para deixar a matéria “mais interessante”. O feedback do jornal, quando os entrevistados ligavam para reclamar, o fez concluir: “eu não posso trabalhar com a verdade… A ficção é muito mais incrível”, brinca. Ele então migrou para a publicidade, onde “podia mentir à vontade”, de acordo com ele.
Trajetória profissional
Na área da ficção, em 2006, ele foi convidado para escrever dois episódios de Avassaladoras: A Série para a Record e Fox Brasil, após ter feito parte de uma equipe selecionada para um projeto que não vingou. Contudo, a carreira de roteirista se mostrou ingrata, com muito trabalho “por risco” e poucas vendas.
Outro projeto de grande repercussão foi o blog viral do Tumblr “Porra, Mauricio!“, criado por Fernando Marés de Souza e editado por Pablo, que satirizava as imagens da Turma da Mônica fora de contexto. O próprio Maurício de Souza chegou a entrar em contato com Pablo, achando as sátiras “incríveis” e pedindo apenas que não usasse imagens manipuladas e colocasse um aviso de que não era um site infantil.
O Quatro Coisas nasceu da necessidade de Pablo criar um projeto solo, com sua identidade, em 2011. A ideia original veio ao assistir à televisão e ver a tradição americana do vestido da noiva em casamento: “something old, something new, something borrowed, something blue” (algo velho, algo novo, algo emprestado e algo azul). Ele adaptou para a cultura pop para a criação de seu canal do YouTube.
Falei: eu vou fazer something old [algo velho], something new [algo novo], something lame [algo sem graça], something cool [algo legal]. Vou fazer o Quatro Coisas.
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber
YouTube
A trajetória no YouTube começou com “redublagens” cômicas, incluindo o sucesso Dunga em um Dia de Fúria. Pelo formato mais próximo do audiovisual desde o início, o Quatro Coisas chamou a atenção da PlayTV, que estava buscando atrações do YouTube para sua grade. O canal comprou três temporadas do Quatro Coisas, e o contrato permitia que Pablo postasse o conteúdo no YouTube uma semana após a exibição na TV.
No entanto, um hiato de seis meses entre as últimas temporadas o fez se dedicar mais ao YouTube, percebendo que não daria para viver apenas do contrato da TV. A grande virada foi quando ele saiu das networks (empresas que gerenciam canais no YouTube). Enquanto estava em uma, ele não tinha acesso ao Analytics e não sabia o quanto ganhava, delegando a profissionalização a terceiros. Ao sair, viu como o que fazia se refletia nos ganhos e começou a traçar estratégias, transformando o canal em sua principal fonte de renda, algo que só aconteceu depois de dez anos de YouTube.
Com 406 mil inscritos no canal da plataforma, Pablo mantém uma rotina de trabalho intensa. Ele grava, edita e publica os vídeos sozinho, sem roteiro fixo ou grande estrutura técnica. O improviso é parte essencial do processo criativo: “Eu me valho de notícias e humor atuais, de conteúdo quente, que é mais uma demanda do YouTube também. E estou aí, me virando. Se tiver lama, eu viro cobra, se tiver água, eu viro peixe, se tiver fogo, eu viro salamandra”, diz, explicando que sua maior habilidade é se adaptar.
A dedicação o levou a brincar se intitulando de “o youtuber que mais trabalha no Brasil”, e a alcunha “pegou”. Hoje em dia, além de análises, o formato de paródias noticiosas da cultura pop no canal conta com a ajuda de personagens que ele criou, como Carlinhos Brother, fictício CEO da Warner Bros.
Mas e se tudo desse errado?
Como um “plano B”, caso as coisas não dessem certo, ele traçou: para conseguir aprovação em um concurso público e dar aulas em uma federal, garantindo um salário fixo, precisava fazer um mestrado. Assim ele fez e defendeu a dissertação Made in Bra(s)zil: um estudo do jogo de forças na música brasileira no tempo do tropicalismo, em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF. Começou ainda o doutorado em Sociologia da Cultura. Estudava a teoria dos campos de Bourdieu aplicada à música, mas confessa que poderia ter aplicado o mesmo arcabouço para falar de Marvel e DC, se quisesse. Chegou a dar aulas e a ser coordenador de curso na Universidade Paulista (UNIP).
O doutorado, no entanto, foi atropelado pela vida e pelo sucesso crescente, em 2010, de seus projetos digitais, como o Dunga em um Dia de Fúria e o “Porra, Mauricio!“. Ele pausou o curso, que hoje considera uma “vaidade” se fosse apenas pelo título, e se convenceu de que o conhecimento adquirido, e não o diploma, é o que realmente importa. O conhecimento acadêmico em ciências sociais, segundo ele, o ajuda nas análises sobre fofocas no canal atualmente.
Eu nunca mais voltei lá [UFJF] […]. O meu coordenador do doutorado comentou num vídeo meu do YouTube: ‘olha você aqui! Que saudade!’ Aí eu respondi para ele: ‘pô, me desculpa!
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber
Os imprevistos e a capacidade de improviso que o fizeram deixar o caminho acadêmico para se dedicar aos projetos digitais marcaram seu trabalho e contrastam, no cotidiano, com a postura mais metódica de sua esposa, Isabella, com quem tem uma filha, Sophia.

O esporte é tema, mas não paixão
Em dezembro de 2010, publicou o primeiro livro, Calaboca Galvão, um compilado de frases icônicas do narrador esportivo comentadas por Pablo. Apesar de tanto a “redublagem” de sucesso no YouTube quanto o livro satirizarem assuntos do futebol, ele já revelou que não tem o esporte como uma grande paixão.
Mesmo depois de se tornar apresentador e youtuber, Pablo nunca deixou de se envolver em outras produções. O segundo livro, Como assim, Bial?, de 2012, apresenta uma seleção das “pérolas” ditas em 11 edições do Big Brother Brasil pelos participantes.
Pablo conta que o ex-apresentador do reality e jornalista Pedro Bial foi uma das inspirações para cursar Jornalismo. Ao lembrar da importância da cobertura sobre a queda do muro de Berlim para a época e se admirar com “essa coisa de ser poeta” nos textos de Bial, Pablo considera que, juntamente com José Hamilton Ribeiro e Silio Boccanera, que também fizeram cobertura de guerra, para ser jornalista de guerra é necessário desprendimento e coragem.
Para os estudantes que planejam viver da produção de conteúdo online na era da Inteligência Artificial (IA), Pablo é direto: “Desistam!
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber
Além da brincadeira, o jornalista youtuber é taxativo quando diz que a IA é uma ferramenta irreversível e que, assim como o Photoshop, reduz equipes. A chave para se diferenciar é o estilo e a autoralidade.
Pablo considera que “não tem como nenhum prompt buscar isso [originalidade] em nenhum lugar, porque isso não existe, não está em lugar nenhum”. Reforça também a necessidade de construir uma identidade: é o que “vai te diferenciar de quem faz no automático”, e buscar conhecimento fora da base profissional: “leiam coisas variadas, assistam coisas diferentes, tenham contato com pessoas diferentes… Isso é que vai te dar a vivência de mundo e a interpretação de mundo que vai te permitir ser criativo.”
O que vai fazer seu diferencial é o extra, né? O básico todo mundo faz, as provas todo mundo faz. O que você faz além das disciplinas?
Pablo Peixoto, jornalista e youtuber
Para Pablo, a criatividade é a capacidade de fazer novas conexões sobre coisas já existentes de uma maneira que nunca foi feita antes. É essa mentalidade que o mantém relevante, desprendido do roteiro – “eu odeio isso” – e fiel à veia artística.
Conteúdo produzido por Amanda Pimenta, Carolina Gouvêa, Charles Morais, Clara Margotti, Felipe Stenner, Lucas Leas e Síntia Varges que produziram o conteúdo na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard. A monitora Ana Luiza Rodrigues contribuiu com a diagramação digital.




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