Você sabia que uma pessoa homossexual poderia ser impedida de fazer uma doação de sangue antes de 2020? E isso mudou apenas depois de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A mudança recente de visibilidade das pautas defendidas por pessoas LGBTQIAPN+ no Brasil e no mundo chama a atenção para a luta por direitos dessa parcela da população. Até 1985, a homossexualidade era vista como doença pelo Conselho Federal de Medicina, e até 1990, pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Apenas em 2011 o STF aprovou a união estável homoafetiva, e em 2013, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução que obriga os cartórios a realizarem o casamento entre pessoas de mesmo sexo. No Brasil, não há lei sobre isso, e as uniões são protegidas apenas pela jurisprudência. No mês dedicado internacionalmente ao Orgulho LGBTQIAPN+ e no dia que se celebra os doadores de sangue (14/6), o Colab reflete sobre os preconceitos envolvendo a comunidade.
Para os especialistas, o preconceito, a desinformação e a conquista tardia de alguns direitos foram também responsáveis por impedir que pessoas que se relacionassem com outras do mesmo sexo doassem sangue até 2020. O analista da Assessoria de Captação e Cadastro da Fundação Hemominas, Thiago Figueira, conta que após a decisão do STF, em 2020, os critérios de doação de sangue foram revisados e atualizados para que todas as pessoas, que estejam em boas condições de saúde, sejam contempladas e possam realizar a doação.
“Hoje, a gente tem a universalização da doação de sangue para todas as pessoas. Antigamente, a gente tinha na legislação o impedimento para pessoas homossexuais do sexo masculino realizarem a doação de sangue, e em 2020 o STF mudou isso na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 5543. Então hoje a gente não tem mais aquela noção de grupo de risco, né? A gente tem o comportamento de risco, então é preciso que as pessoas, todas elas, independentemente de orientação sexual e de gênero, estejam atentas às questões das doenças que podem ser transmitidas pelo sangue”, esclarece Thiago.
A justificativa para a proibição desse grupo atuar como doador de sangue vinha de uma ideologia dos anos 1980 em que homens gays e bissexuais seriam um grupo de risco, devido à maior possibilidade de contrair o HIV. Entretanto, segundo o infectologista Leandro Curi, para ter HIV, basta ter tido relação desprotegida com alguém infectado que não esteja tratando. Ele ainda explica que a relação sexual entre duas pessoas com vagina apresentam menos risco de contaminação do que a penetração com pênis.
Mesmo após quatro anos do fim da proibição, a estudante Gabriela Moura conta sobre alguns desconfortos que viveu no momento da doação de sangue. Ela doa ao menos duas vezes ao ano, desde 2021. Na maioria das vezes não se sentiu incomodada, porém em sua última doação, ao negar o uso de anticoncepcionais por ser lésbica, foi questionada inúmeras vezes se realizada testes de ISTs, uma vez que, por se relacionar com mulheres, o risco era maior segundo o profissional que realizava a triagem. Apesar disso, Gabriela diz que gosta de ser doadora e incentiva as pessoas a doarem.
Ainda que tenha depoimento dessas situações, o representante da Hemominas esclarece que todas as pessoas podem doar, seguindo as orientações e restrições do site. Ele explica que pessoas trans podem doar e terão os nomes sociais respeitados, mas precisam passar pela triagem para saber se os hormônios utilizados podem barrar a doação.
A gente sempre lembra que é muito importante que todas as pessoas possam procurar saber como elas fazem para doar, quais são os cuidados que precisam tomar, independentemente da relação que elas têm, independentemente da orientação sexual. A gente quer, na verdade, é salvar vidas.
Thiago Figueira, analista da Assessoria de Captação e Cadastro da Fundação Hemominas
Da adoração ao preconceito
As sociedades gregas e romanas tinham as relações homoafetivas permitidas. Na cultura grega, por exemplo, o sexo entre pessoas do gênero masculino podia até mesmo ser visto como um rito de passagem para jovens que estavam em treinamento militar. No antropocentrismo, a relação homoafetiva não era condenada. Porém, desde o momento histórico em que Teodósio, último líder do Império Romano, realizou a implementação do cristianismo como religião oficial de Roma, existem os primeiros registros de condenação das relações homoafetivas.
Séculos depois, na década de 1980, a partir do descobrimento e primeiros diagnósticos de Aids/HIV, tal estigma se potencializou. Em 1983, o jornal Notícias Populares publicou o primeiro caso de Aids no Brasil e a identificação da transmissão por transfusão de sangue. Na época, o termo utilizado para nomear o HIV era “Doença dos 5H – Homosexuais, Hemofílicos, Haitianos, Heroinômanos (usuários de heroína injetável), Hookers (profissionais do sexo em inglês).”
“Quando se descobriu a Aids, a população LGBTI era considerada como uma população de alto risco. Por ser uma população que vivia em maior vulnerabilidade social. A partir desse momento, as relações homoafetivas passaram a ser consideradas como relações potenciais transmissoras, então começa a construção do estigma com relação à doação de sangue”, conta o jornalista, teólogo, historiador e atualmente coordenador titular da Aliança Nacional LGBTI+ no estado de Minas Gerais, Gregory Rodrigues.
A construção do estigma no que diz respeito à doação de sangue por parte da população LGBTQIAP+ acontece devido a essa generalização que trata determinados grupos como pertencentes ao comportamento de risco. Porém, a escolha de assumir o risco de ter uma relação sem o uso de método contraceptivo, por exemplo, é passível a qualquer pessoa, independentemente da orientação sexual, e ainda sim será comportamento de risco.
Thiago explica que “esse comportamento está mais atrelado à quantidade de parceiros que a pessoa tem, à questão da relação ser protegida ou desprotegida. Então é importante a gente observar essas questões, que isso pode trazer um impacto no sangue e, posteriormente, reverberar naquela bolsa doada e na pessoa que vai receber. (…) A pessoa precisa ter um parceiro sexual fixo nos últimos seis meses.” Essas condições são determinadas pelo Ministério da Saúde a todos os hemocentros e independem da orientação sexual.
O infectologista Leandro Curi comemora que essa resolução ‘preconceituosa’ tenha sido dissolvida: “Qualquer pessoa pode se contaminar por HIV, se tiver uma exposição que justifique essa infecção. Então é muito mais importante avaliar a exposição individual da pessoa do que a orientação sexual.”
Mas a desinformação ainda contribui para o preconceito em torno do assunto HIV/Aids. Não é de conhecimento de todos que pessoas diagnosticadas com o vírus HIV podem se tornar indetectáveis, ao aderir corretamente à Terapia Antirretroviral (TARV). Assim, o vírus se torna intransmissível sexualmente.
Gregory Rodrigues, descobriu que era soropositivo em 2011, mas após dois meses do diagnóstico, a carga viral já estava indetectável. Ele ainda conta que, mesmo se sentindo muito privilegiado, o pior quadro de preconceito que viveu, foi enquanto ainda era pastor de uma igreja inclusiva:
“O pior quadro de preconceito que eu vivi, foi um cenário que aconteceu comigo em São Luís do Maranhão. Na época, eu estava na igreja, eu era pastor de uma igreja inclusiva, que acolhe gays, lésbicas e tal. Na época, eu pastoreava em uma igreja e eu fui convidado para ir pregar lá em São Luís, no Maranhão, e na casa desse pastor, ele e o esposo dele sabiam, né? Que eu era soropositivo, que eu tinha que tomar as medicações, então eu falava com eles. E aí um dia, antes do jantar, me perguntaram: e o copo que você beber água, o talher que você comer, a gente pode usar ele de novo depois?”
Gregory Rodrigues, coordenador titular da Aliança Nacional LGBTI+ no estado de Minas Gerais
Diferença entre HIV e aids
Ainda há muito desconhecimento em relação ao que é o HIV e a Aids. Em primeiro lugar, o HIV (Human immunodeficiency virus), é o vírus que se manifesta no sistema imunológico e deixa o organismo sem defesa contra outras infecções, provocando a imunodeficiência humana. O principal alvo do vírus HIV é o linfócito T-CD4+, um tipo de célula de defesa responsável por organizar e comandar a resposta do sistema imunológico. Uma pessoa infectada pelo HIV tem o DNA dos seus linfócitos alterados, assim criando cópias do vírus.
Na medida em que se multiplica e destrói os linfócitos T-CD4+, o HIV vai incapacitando o sistema imunológico do infectado, permitindo que seja desenvolvido outras doenças. A partir disso, a pessoa pode desenvolver a Aids (Acquired Immune Deficiency Syndrome, em português, síndrome da deficiência imunológica adquirida). Assim, de maneira sucinta, o HIV é o vírus que pode provocar a doença Aids.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2022, cerca de 1 milhão de pessoas estavam vivendo com HIV/Aids. Dessas pessoas, 90% (900 mil) são diagnosticadas, 81% (731 mil) das diagnosticadas estavam em tratamento e 95% (695 mil) das pessoas em tratamento, estavam em supressão viral.
De um milhão de pessoas vivendo com aids e HIV, 66% são homens e 350 mil são mulheres. Dessas pessoas, 18,4% são representadas por homens que fazem sexo com homens maiores de 18 anos, sendo que, metade deste número têm até 24 anos.
Também em 2022, dos 43.403 mil novos casos de HIV, 54,3% foram diagnosticados em homens que se relacionam com homens e 63,6% dos casos são de pessoas de 20 a 39 anos.
O caminho do sangue
O processo para doação de sangue, segundo a Hemominas, é bem simples. Indivíduos entre 16 e 69 anos, menores de idade apresentando autorização de um responsável legal e pessoas acima de 60 anos comprovando que já doaram sangue anteriormente, que estejam saudáveis e bem alimentadas, estão aptas a serem doadoras. Porém, após a doação, ainda há uma longa trajetória para que o sangue seja utilizado.
Após a coleta da doação, amostras do sangue são coletadas para que os laboratórios analisem se o sangue pode ser doado e, após isso, bolsas são levadas para o setor de processamento do sangue. Agora, o processo chamado quarentena é iniciado. Testes são realizados para detectar a presença de sífilis, hepatites B e C, doença de Chagas, HIV I, HTLV I e II, além de testes imuno-hematológicos, que identificam o tipo de sangue e características específicas. Enquanto os resultados não estão prontos, o sangue é armazenado em local refrigerado. Somente as bolsas com resultados não reagentes/negativos para os testes são liberadas.
O infectologista Leandro Curi explica a importância da triagem que precede a doação de sangue. “A triagem é extremamente importante, tanto na anamnese médica quanto na testagem desse sangue, então não existe como mais doação de sangue contaminado. É um dos motivos tão equivocado para a gente pensar em realmente que bancos de sangue podem transmitir HIV.”
Há uma dúvida em relação à triagem. Se vão ser realizados os exames após a doação, porque há necessidade de responder às perguntas? Thiago explicou sobre a Janela Imunológica: “isso diz a respeito de como as doenças podem se desenvolver no organismo. Existe o prazo que a gente chama de janela imunológica, que é o período onde, às vezes, eu estou infectado por alguma coisa, mas o meu organismo ainda está muito recente e aí não tem exame, infelizmente, que a gente consiga detectar.”
Thiago ainda reforça a importância da sinceridade do doador: “A gente precisa muito de contar com a sinceridade do doador, justamente para que possamos trazer esclarecimento que ele precisa ou alguma informação, mas também, junto com os exames, poder garantir ao máximo possível que aquela bolsa doada vai possibilitar salvar a vida das pessoas.”
A doação de sangue no Brasil em dados
No Brasil, 1,6% da população é doadora de sangue, estando dentro dos parâmetros indicados pela OMS, que recomenda que 1 a 3% da população de cada país seja doadora. De acordo com o Ministério da Saúde, em dados de 2017, 62% dos doadores são do sexo masculino e 38% do sexo masculino.
O Ministério da Saúde também informa que, no mesmo ano, foram 3,4 milhões de bolsas de sangue coletadas, sendo 34% correspondente a pessoas que doaram para atender à necessidade de um paciente motivado pelo serviço, família ou amigos do receptor. Dessas doações, 326.754 foram realizadas em Minas Gerais.
Segundo a Assessoria de Captação e Cadastro da Fundação Hemominas, em pesquisa por amostragem realizada este ano, 63% dos doadores têm entre 26 e 49 anos. Os jovens com menos de 25 anos correspondem a cerca de 23% do público. E 54,3% se declaram homens. Em relação à cor, 46,4% se autodeclaram brancos, 41% pardos e 11,6% pretos. A cada 100 pessoas que comparecem para realizar a doação, cerca de 83% conseguem doar e 17% têm algum impedimento.
A condição de cada tipo sanguíneo nos bancos de sangue da Hemominas pode ser visualizada no site da entidade. Os dados são atualizados semanalmente. O infográfico a seguir mostra as fases do estoque de sangue e como está a situação nesta semana. Os saquinhos de sangue mais vazios demonstram os tipos sanguíneos mais críticos e que carecem de mais doações neste momento.
Escrito por Mariana Brandão e Júlia Melgaço orientado pela professora Fernanda Sanglard