“Quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade”. A frase, de autoria brasileira Carolina Maria de Jesus, reflete a dura realidade de quem luta por um lugar para chamar de ‘seu’, que faz parte da vida das 1.200 famílias que residem na Comunidade Dandara, no bairro Céu Azul, Pampulha.
No local, reside Luciana da Cruz (32), mulher, negra e ativista social. A comunidade Dandara, lar de Luciana, seu esposo Gleidso Neves (37) e seus filhos Analice (12), Lorena (9) e Tallison (5), foi fundada no dia 9 de abril de 2009 por 150 famílias. Elas ocupam uma área de pouco mais de 262 mil metros quadrados, de um terreno urbano antes abandonado. O nome “Dandara”: homenageia a guerreira negra do período colonial do Brasil, esposa de Zumbi dos Palmares.
Embora, na maioria dos casos, as ocupações se localizem em áreas afastadas dos grandes centros urbanos ou estejam confinadas à margem de rodovias, elas existem e seguem abrigando pessoas e transformando a paisagem. Conforme dados publicados em junho de 2016 pelo grupo de pesquisa da Escola de Arquitetura da UFMG, o Praxis (Práticas Sociais no Espaço Urbano), existem 24 ocupações urbanas em Belo Horizonte e Região Metropolitana, que abrigam cerca de 14 mil famílias e aproximadamente 55 mil pessoas.
Luciana conta que nasceu em uma das comunidades do Aglomerado da Serra e que, aos quatro anos, foi morar na ocupação que atualmente se tornou o bairro Novo Aarão Reis. Ao relatar sua trajetória, Luciana reflete sobre o contexto social em que sempre esteve inserida e se expressa: “A gente nasce sempre de um lado da história, a gente nunca vai experimentar o outro lado, não é?”.
Por mais complexa que venha ser a afirmação de Luciana, encontra amparo em estudos como os do instituto World Wealth & Income Database. De acordo com a pesquisa, a renda dos 50% mais pobres no mundo aumentou 1% entre 2001 e 2015, a mesma proporção dos 10% mais ricos. Entretanto, 60,7% dos rendimentos produzidos no Brasil foram parar nas mãos dos mais ricos. Segundo o relatório, “a desigualdade entre os 90% inferiores declinou à custa da crescente concentração no topo”.
A resistência
Para Luciana Cruz, a vida em uma ocupação é possível somente pelo senso de comunidade, pela resistência e por uma luta diária contra a invisibilidade. “Eu sou mulher, eu sou negra, eu sou maioria. A elite é que está dizendo que isso é minoria, mas não é. O que falta pra gente ser uma maioria, que não é invisível, são as outras pessoas que são maioria como eu enxergar a realidade das coisas”, afirma.
De resistência, os moradores da Comunidade Dandara entendem, e muito. São inúmeras ações e manifestações realizadas pela comunidade em parceria com outros grupos que lutam pelo direito à cidade e à moradia digna, como a Comissão Pastoral da Terra e o movimento das Brigadas Populares. Nesses sete anos de existência, os moradores da comunidade organizaram cinco grandes marchas, deslocando-se pelos 15 km entre a ocupação e o centro da cidade, onde chegaram a ocupar a Praça Sete de Setembro, em 2010, e a Prefeitura de Belo Horizonte, em 2013.
A luta por direitos e pela dignidade das famílias que residem em áreas de ocupação, assim como a árdua batalha travada com o Estado por políticas habitacionais que atendam à demanda da população, refletem no modo como os cidadãos se veem e como eles enxergam as autoridades legais. “É muito complicado você ser morador de ocupação e a sua vida inteira ser um pedaço de papel”, afirma Luciana.
Conforme o inciso 23 do artigo 5º da Constituição brasileira, “a propriedade atenderá a sua função social”. Com base nessa premissa e com o apoio de arquitetos e urbanistas voluntários, em parceria com o Escritório de Integração e o Serviço de Assistência Judiciária da PUC Minas, moradores e lideranças da ocupação Dandara fizeram da comunidade “a primeira ocupação organizada, a partir de diretrizes de uso e ocupação do solo”, como aponta o relatório do Praxis 2016.
Para resistir, a comunidade Dandara se mobilizou por meio de diversas frentes e por intermédio de diferentes atores sociais, encontrando nas manifestações artísticas parceiros e aliados. Em 2011, a banda Graveola e o Lixo Polifônico escolheram a comunidade para o lançamento do seu disco “Eu preciso de um liquidificador”, em apoio às causas da ocupação e para promover a sua visibilidade.
Em 2013, a comunidade e a luta de seus habitantes foram transformadas em um documentário de 65 minutos, dirigido pelo argentino Carlos Pronzato: “Dandara: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”. Já em 2014, o fotógrafo mineiro Cyro Almeida registrou a realidade da vida e dos personagens da ocupação Dandara em uma exposição no Palácio das Artes.
“Meu contato com Dandara se deu por acaso e se estendeu por afeto. O drama existente na vida de seus moradores, que construíam casas sob o risco de despejo, revelou uma necessidade que, antes, eu desconhecia ou ignorava: a reforma urbana”, conta Cyro Almeida.
Os desafios
Faltam casas, sobram terrenos. De acordo com pesquisa divulgada pela Fundação João Pinheiro, Minas foi o segundo estado brasileiro com o maior déficit habitacional do país em 2014, quando carecia de 529 mil unidades habitacionais. Entre os municípios mineiros, Belo Horizonte ocupa o topo da lista, necessitando de 78.340 moradias. Segundo a última pesquisa censitária do IBGE (Censo 2010), a situação se agrava devido à falta de moradias, que afeta principalmente os mais pobres. Do total, 90,9% das pessoas que não possuem casa própria recebem entre 0 e 3 salários mínimos.
Mas engana-se quem pensa que a posse da terra soluciona todos os problemas dos que residem em áreas de ocupação. No caso da comunidade Dandara, os moradores, por hora, não precisam se preocupar com pedidos de reintegração de posse. Em 2013 a Justiça mineira decidiu a favor dos moradores da ocupação e negou o recurso da Construtora Modelo, acusada de praticar especulação imobiliária, abandono da terra e inadimplência com os impostos.
Afastado o risco do despejo, quem vive na Dandara sofre com problemas estruturais, como falta de coleta de lixo, de esgoto e acesso à saúde e transporte público. Em 2016, a Copasa iniciou as obras de distribuição de água e rede de esgoto no local, mas elas ainda não foram concluídas. De acordo com os moradores, a Cemig aguarda o término das obras da Copasa para dar início ao processo de distribuição de energia e iluminação pública.
No local, carros e caminhões que entregam mercadorias para os moradores transitam com facilidade pelas ruas amplas e largas da ocupação. No entanto, os ônibus do transporte público não rodam dentro da comunidade e não há coleta de lixo. Os resíduos são coletados por meio de pontos posicionados em locais estratégicos. “Aqui passa todo tipo de veículo grande, pequeno, alto e baixo, só não transita caminhão de lixo, ônibus e ambulância do Samu”, diz Luciana.
Além da falta de acesso a recursos básicos, que prejudica a vida e o desenvolvimento da comunidade e de seus moradores, a violência policial é outro fantasma que assombra Dandara. “Me parece que os policiais são treinados para acabar com a gente; eles têm que sair, têm que matar negros, têm que matar pobres”, aponta Luciana. Ela se diz espantada com a violência policial na comunidade, que acomete principalmente os jovens.
De acordo com o Atlas da Violência 2017, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, homens, jovens, negros de baixa escolaridade e renda são os que mais morrem no país. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Dados do relatório da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, divulgado em junho de 2016, apontam que cerca de 23 mil jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados por ano no Brasil. Em outras palavras, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país.
“Em um ambiente onde a omissão do poder público suscita o aparecimento de grupos organizados de traficantes, bem como de milícias, os índices de violência contra a juventude negra atingem o paroxismo. De outro lado, o crescimento da violência policial contra esses jovens também é uma chocante realidade. Situações envolvendo a morte de jovens negros, sobretudo aquelas cujas justificativas da ação policial se apoiam nos chamados autos de resistência”, afirma o relatório da CPI.
Embora dura, a realidade dessas comunidades vai se moldando pela resistência de pessoas como Luciana e sua família, além de outras mulheres, homens, jovens e crianças que resistem e veem a comunidade Dandara se fortalecer por meio da luta, da união, da força de seus moradores e do apoio de diversas pessoas que se sensibilizam com a causa.
Atualmente, Luciana cursa Pedagogia e participa de três projetos dentro e fora da comunidade Dandara: o Instituto Fidel Castro (IFC), que tem, como objetivo, apoiar comunidades em busca de saúde, educação e promover solidariedade; o Projeto DoarEduca, uma iniciativa autônoma e voluntária de professores e parceiros que oferecem aulas gratuitas para quem deseja se preparar para o Enem; e o projeto Arquitetura na Periferia, que capacita e oferece assessoria técnica a grupos de mulheres de baixa renda para a melhoria de suas moradias.
A história de Luciana prossegue, como segue a resistência da comunidade Dandara e de sua gente guerreira que faz jus ao nome de batismo de sua terra. E, como um reflexo das desigualdades, o conceito de lar se distancia daqueles que mais necessitam de acolhimento e abrigo, e apresenta as dicotomias entre o Estado e o Povo, entre as leis de acesso à moradia e a utopia de torná-las possíveis.
Reportagem de Alessandra Gonçalves, Calebe Souza, Genevaldo Neves, Igor Aleksander, Luiz Felipe Coutinho e Ranier Alves, originalmente publicada na Revista Metáfora.
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