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Ô trem bão e arretado: o  Nordeste cria vida em BH

Imagine a combinação irresistível de um bom caldo de canjica doce, o som contagiante do forró “Pé de Serra” e as cores vibrantes das bandeirinhas de festa junina. Agora, imagine essa cena acontecendo no coração de Minas Gerais. Você já se perguntou como uma celebração tão tipicamente nordestina se tornou uma tradição tão amada pelos mineiros?

Minas Gerais “adotou” a cultura do Nordeste? Ou há algo mais nessa história?

A resposta é tão surpreendente quanto inesperada, como a história de dois personagens fora das linhas do território brasileiro.

Em 2015, em Angola, Fernanda Medeiros e Diogo Medeiros cruzaram seus caminhos. Diogo, um cantor de forró pernambucano em início de carreira, e Fernanda, uma mineira que já residia no país há seis anos, após se apaixonarem, casarem, terem filhos e escolherem Belo Horizonte como palco da união de duas culturas, criaram o Canto de Mainha.

O restaurante, especializado em culinária nordestina (mas com um toque bem mineiro!), foi carinhosamente nomeado em homenagem às mães e ao aconchego que a palavra “canto” representa no Nordeste do Brasil.

A história do casal se confunde com a presença nordestina em BH: o Nordeste veio para Minas e, a partir dessa união, criou-se algo novo que não é “nem de lá nem de cá”, como dizem alguns mineiros. Isso não se limita apenas à festa junina e à culinária.

Uma das características do povo mineiro é a hospitalidade. Esse atributo explica a receptividade dos mineiros com migrantes de outros estados. Em 2022, o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou como se organiza o fluxo migratório na capital. Atualmente, BH conta com uma população de aproximadamente 2.4 milhões de pessoas, o percentual de migrantes nordestinos é de quase 2% de habitantes do município, o que equivale a 66,6% de toda a porcentagem de migrantes totais de Belo Horizonte; a cada três migrantes que habitam a cidade, dois vêm da região Nordeste.

Arte por autores

Além da afinidade cultural, outros aspectos podem ser apontados como causas para esse fenômeno. Fatores ligados a emprego e renda também podem ter papel decisivo sobre esse fluxo migratório.

Segundo o IBGE, ter o trabalho como principal fonte de renda domiciliar é uma característica 10% mais forte na região Sudeste em comparação com o Nordeste. Quanto aos aspectos salariais, a renda domiciliar per capita na capital mineira supera a média nordestina, com valores de R$1.505 e R$1.011, respectivamente.

Arte por autores

Com o fluxo migratório do Nordeste para BH, a tendência é que, ao passar dos anos, as tradições e costumes passem por um processo de adaptação. Com a fusão de culturas, o novo surge e é manifesto na dança, festas típicas e na gastronomia, por exemplo.

A viagem que mudou tudo 

Durante uma viagem em família para Aracaju (SE), em julho de 2012, a mineira Cleide Duarte experimentou a macaxeira de forno. O prato típico, que encantou o paladar da então comerciante, foi o pontapé para a idealização de um restaurante especializado em comida nordestina.

O Dona Fulô, que atualmente atende moradores de Belo Horizonte e da Região Metropolitana, foi inaugurado em novembro de 2013, há pouco mais de um ano após a visita de sua criadora à capital de Sergipe. Durante esse período, mesmo dividindo a atenção e o tempo com as vendas na papelaria da família, Cleide criou sua própria receita de macaxeira ao forno, que é o carro chefe da casa.

A primeira unidade do restaurante, instalado em Betim, na Grande BH, iniciou as atividades em um espaço para 64 pessoas. Pouco mais de um mês após a inauguração, foi necessário comprar mais dez jogos de mesa e estender o atendimento para a calçada do estabelecimento. Apesar do sucesso do Dona Fulô, Cleide notou que, no início, os clientes tinham resistência em experimentar os pratos tipicamente nordestinos. “A casa estava cheia de pessoas comendo filé com fritas e essa não era a minha proposta”, relembra.

Para reverter a situação, o restaurante começou a oferecer um menu degustação para que as pessoas pudessem conhecer e desmistificar a impressão que possuíam dos pratos. A iniciativa deu tão certo que, atualmente, o que o restaurante menos vende é o filé com fritas.

Croquete de Jerimum, Risole de Carne de Sol, Dadinho de Tapioca e Casquinha de Siri são as entradas mais pedidas do Dona Fulô | Foto: arquivo pessoal

Durante a pandemia, em 2021, uma nova unidade do Dona Fulô foi inaugurada. Localizada na região Centro-sul de Belo Horizonte, a casa tem a mesma essência da primeira. Ao entrar no restaurante, os clientes se deparam com ambientes coloridos, repletos de itens de decoração e músicas nordestinas. Colaboradores vestidos com os trajes de Lampião e Maria Bonita, também dão o tom da atmosfera que atinge o seu ápice com a mistura de sabores dos pratos e drinks.

Uma das criações mais ousadas e originais de Cleide é a caipirinha de coentro. Conhecido pelo cheiro e gosto marcante, o tempero tipicamente usado na culinária nordestina se harmoniza com doses de cachaça. “As pessoas estranharam no início, mas vi que minha criação deu certo quando um chefe de cozinha que eu admiro muito veio no Dona Fulô e disse que esse era o drink mais gostoso que ele tinha experimentado na vida”, relata.

Em outra viagem, há mais 6.600 km de Belo Horizonte, os proprietários do restaurante Canto de Mainha, Fernanda e Diogo, se encontraram e descobriram algo em comum: o amor pelo Nordeste. A junção dos dois não poderia resultar em algo que não fosse a união das culturas dos estados, combinando o que é do Nordeste com um toque mineiro. Eles conseguiram dar vida a esse sentimento através da gastronomia.

Tanto os estados do Nordeste quanto Minas Gerais possuem a gastronomia como um ponto forte, e isso foi uma questão essencial na hora de idealizar o Canto de Mainha, especialmente ao elaborar o cardápio. No começo, o casal, que havia recém-adquirido o local, manteve alguns pratos tradicionais mineiros para não assustar a clientela e foi adaptando o cardápio aos poucos.

Cuzcuz do Canto de Mainha é um dos pratos mais pedidos | Foto: arquivo pessoal

A culinária mineira deriva muito das tradições caipiras, tendo a cebola e o alho como base dos pratos. Em contraponto, a culinária nordestina usa mais frutos do mar e raízes. O tempero forte também é uma característica marcante, com o uso do dendê, típico de Salvador, Bahia, e principalmente o coentro. Fernanda diz que quase todos os pratos da casa levam coentro, mas em uma quantidade menor do que é consumido no Nordeste, pois muitos mineiros não são tão adeptos.

Para adaptar os pratos ao paladar mineiro, o casal fez algumas mudanças: substituíram o arrumadinho de charque pela carne de sol, reduziram a quantidade de coentro e trocaram o feijão-verde pelo feijão-fradinho, que é mais acessível na região. A moqueca é outro prato que ganhou destaque no cardápio, combinando perfeitamente os sabores das duas culturas.

A culinária pernambucana, por sua vez, também marcante, influenciou fortemente o cardápio do Canto de Mainha, trazendo pratos como o bolo de rolo e o cartola, que são sucessos entre os clientes.

O “Canto de Mainha” não é apenas um restaurante, mas uma união entre culturas, sabores e tradições. Diogo e Fernanda conseguiram criar um espaço onde a gastronomia é o ponto de encontro e celebração das suas histórias e paixões.

Festa Junina em BH com toque nordestino

Quando falamos em manifestações culturais nordestinas, as festas juninas imediatamente vêm à cabeça. A região Nordeste é um polo de concentração dos principais arraiás do Brasil, como os de Caruaru, em Pernambuco, Campina Grande, na Paraíba, e Mossoró, no Rio Grande do Norte, internacionalmente conhecidos. As festas juninas, arraiás ou festas de São João, o “Santo Festeiro”, comemorado no dia 24 de junho, são momentos de grande celebração Brasil afora.

Em Belo Horizonte, não é diferente. O tradicional “Arraiá de Belô” chega à 45ª edição em 2024. Segundo a Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte, a Belotur, o festejo é o mais representativo da Região Sul e Sudeste do Brasil, pela valorização e respeito à cultura e tradições que envolvem o período.

O Arraial de Belo Horizonte já foi considerado pelo Ministério do Turismo e pela Embratur como um dos cinco maiores destinos turísticos do período, ao lado de Bragança (PA), Campina Grande (PB), Corumbá (MS) e São Luís (MA).

O grupo de quadrilha “Casa do Chapéu”, do bairro Caetano Furquim, na região Leste de Belo Horizonte, é uma das quadrilhas que se apresenta no “Arraiá de Belô”. O grupo que, em 2005, foi campeão da regional Leste, surgiu em 2002, a partir de uma tradição familiar que sempre esteve ligada às festas juninas. Atualmente, a quadrilha faz parte do grupo de acesso do Arraiá.

Além dos preparativos para apresentação, o grupo tem o objetivo de fornecer assistência a jovens e pessoas em vulnerabilidade social.

Eu abri isso aqui e estou construindo mais para ajudar os jovens, adolescentes e as pessoas carentes. Tem gente que não tem condições de comprar um sapato, um chapéu. A gente tá aqui dá oportunidade a pessoas da periferia de participar de um grupo. Tem muitos grupos que fecham as portas para essas pessoas”

Adriene Barbosa, presidente da Casa do Chapéu

Neste ano, as expectativas do grupo para o Arraiá de Belô são altas, segundo Pedro Henrique Barbosa de Jesus, o marcador da Casa do Chapéu, responsável por conduzir a dança. “Eu acho que este ano vai ser maior ainda, é um reflexo maior. A gente vai sair de uma praça da Estação que está em reforma, onde na arquibancada cabem 5 mil (pessoas), e a gente vai para o Mineirinho, com capacidade para 30 mil pessoas”.

Casa do Chapéu no Arraiá de Belô 2023 | Foto: César Tropia

Embora as tradições nordestinas nas festas juninas influenciem todo o Brasil, Belo Horizonte, e Minas Gerais, como um todo, já são consolidadas neste cenário. A originalidade da quadrilha mineira é, inclusive, critério de avaliação do júri para o Arraiá de Belô.

Em 2018, o tema da Casa do Chapéu no Arraiá de Belô foi Lampião e Maria Bonita, duas figuras tipicamente nordestinas — o que não foi bem visto pelos jurados. “Nesse ano, no olhar criterioso dos juízes, eles falaram que a gente não podia entrar ‘muito nordestino’ porque cada estado tem a sua cultura”.

Segundo o marcador: “não é um preconceito, mas parte da ideia de que Minas Gerais tem que ter o seu estilo de dança, Caruaru tem que ter o seu estilo de dança. Isso está no regulamento: tem que ter passos tipicamente junino-mineiro”. Pedro Henrique conta que acredita que a união entre as duas culturas traz bons resultados. “Eu concordo e discordo (com o regulamento), nós estamos no Brasil, um local que é tudo misturado. Se a gente traz uma cultura e mistura com a nossa, eu acho que fica legal”.

Neste ano, o Arraiá ocorre nos dias 20, 21, 27 e 28 de julho e foca em três grandes eixos: a apresentação das tradicionais quadrilhas da cidade, shows musicais, com artistas locais e nacionais, e atividades gastronômicas.

Fusão junina

O “trem bão” das tradições mineiras se mistura com o “arretado” da cultura nordestina, criando uma festa vibrante e única. Mauro Henrique de Oliveira Melo possui 35 anos de experiência em quadrilhas juninas. Além de dançarino no grupo Forró de Minas, que se apresenta no Arraiá de Belô, também é artesão e proprietário do Ateliê M&M Artes e Criações, que confecciona roupas juninas para todo o Brasil.

Neste ano, Mauro é responsável pelas vestimentas de três quadrilhas do Arraiá de Belô, incluindo a sua. Ele também vestirá quadrilhas do Maranhão e de Sergipe, no Nordeste, Sete Lagoas, Lagoa Santa e Bocaiúva, em Minas, e no Distrito Federal.

Me sinto muito honrado e eu acredito que, da mesma forma que nós mineiros temos um olhar voltado para a cultura nordestina, no que se refere ao São João, eles também começaram, há um certo tempo, a ter um olhar para Minas Gerais”

Mauro Henrique, artesão e proprietário do Ateliê M&M Artes e Criações

Mauro Henrique também acredita nos benefícios culturais da união entre as quadrilhas juninas mineiras e nordestinas. “Cada ano que passa, Minas tem se consolidado no cenário junino. Hoje, eu me sinto um mineiro privilegiado em vestir noivas, que são referências no São João a nível Brasil. Eu acredito que essa fusão vai trazer muitos bons resultados, tanto para o Nordeste, quanto para Minas Gerais”.

Embora as quadrilhas mineiras e nordestinas compartilhem a mesma essência — e, em alguns casos, até o mesmo artesão —, há diferenças notáveis. Mauro Henrique — que, inclusive, já viajou para estados nordestinos para se apresentar — explica essas singularidades: “O que é mais marcante de diferença nas quadrilhas juninas mineiras e do Nordeste, é a ausência do marcador. No Nordeste, hoje, a gente sabe que são poucas as quadrilhas que tem a presença afirmada do marcador dando os comandos. A quadrilha nordestina é muito dançada em cima da música, enquanto Minas Gerais precisa que o marcador esteja presente para dar os comandos.”

As diferenças também são perceptíveis nos figurinos, danças e nas figuras que compõem as quadrilhas. Segundo Mauro Henrique: “a quadrilha junina mineira é dançada em roda, já a nordestina, é dançada em blocos, em módulos. Então, tem passos tradicionais: ‘caminho da roça’, ‘ponte’, ‘rato’, ‘onça’, ‘carrossel’, que são predominantemente mineiros. Quando a gente vai para o Nordeste, a gente já não vê muito isso. Eles têm muita presença dos passos aéreos”, detalha.

Em relação ao figurino, o artesão explica quais são as principais influências do Nordeste nos trajes juninos mineiros. “A cultura nordestina, hoje, influenciou dentro da nossa construção de figurino, em relação ao uso das cores vibrantes e a volumização. A gente conseguiu colocar essa aplicabilidade no figurino junino mineiro e vem dando muito certo.” Embora reconheça a importância da influência nordestina, Mauro defende que a identidade visual mineira se destaca em todos os lugares devido, principalmente, ao uso do artesanato manual e do babado. Esta é a preocupação do artesão: manter a mineiridade no cenário junino.

Quanto aos personagens, os grupos de quadrilha mineiros, em sua maioria, se restringem a quatro figuras: noivo, noiva, viúva e padre. Já os grupos de quadrilha nordestinos contam com a presença de mais duas figuras: a rainha e o rei. O rei é o par da rainha, considerada a mais bela dama vestida para o casamento dos noivos.

“Se não fosse o forró, o que seria de mim?”

A frase, que compõe a letra da canção “Vida Boa Danada”, escrita e interpretada pela banda Trio Dona Zefa, representa o que Luiz Henrique, professor de uma das maiores escolas de forró do mundo, o Pé Descalço, chama de “o clã do forró”.

A expressão não poderia representar melhor a paixão de um grupo por uma dança e um ritmo em comum. Para Luiz, a relação com a dança vem desde o berço. Cercado por maestros e festas animadas em família, ainda jovem, ele começou a dar aulas de fitdance, ou “axé”, como alguns chamavam. Apenas aos 19 anos, entrou em contato com a dança a dois, corpo a corpo, e entendeu que o que move a paixão do clã é algo simples: “Nós, do forró, temos sede do contato, do abraço”.

Como uma das capitais com maior número de casas e escolas de forró do Brasil, não é surpreendente que Belo Horizonte tenha se tornado o epicentro desse estilo de dança. O forró, que remete instantaneamente aos grandes sucessos da música nordestina — Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Alceu Valença — e à cultura do “dois pra lá, dois pra cá”, ganhou vida, rosto e comércio em Minas Gerais. 

Foi daí que surgiram duas vertentes: o “forró do Nordeste” e o “forró do Sudeste”. Segundo Luiz, a mistura de culturas distantes resultou em algo único. “No Nordeste, encontramos um forró mais cultural. Aqui, no Sudeste, é mais comercial, com movimentos e passos mais ensaiados. Mas isso é essencial, a dança precisa mudar para continuar viva”, explica Luiz.

Um novo estilo de dança, novos passos ensaiados e um público apaixonado representam a fórmula para o nascimento de um dos motores do forró do Sudeste: o Pé Descalço. Com 20 unidades em atividade, a escola já possui filiais na Rússia, em São Petersburgo, e em Londres, na Inglaterra. No Brasil, a escola conta com 9 unidades apenas em Belo Horizonte.

Em 9 de dezembro de 2021, o forró foi declarado, em votação unânime, como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mas uma das maiores tradições do país já possui festivais fora da fronteira. Atualmente, existem festivais de forró no Japão, como o Nosso Forró Nagoya Festival, inaugurado em 2015.

Patrimônio imaterial ganha as ruas de Belo Horizonte

O Ponto Nordeste é um movimento de rua que tem como objetivo valorizar e promover a música nordestina em Belo Horizonte. Com shows todas as quartas-feiras a partir das 19h, o movimento ocorre embaixo do viaduto Santa Tereza, na região Leste de Belo Horizonte. Um dos principais pontos culturais da cidade, o local abraça as manifestações artísticas voltadas para a rua.

Fazendo referência ao próprio nome, o movimento é um ponto que marca a intersecção das culturas originadas no Nordeste em Beagá. Porém, para iniciar suas atividades, o processo não foi tão fácil, já que, por ser um movimento de rua e gratuito, surgiram diversos empecilhos para sua consolidação.

Diógenes Vinicius, DJ e um dos fundadores do Ponto Nordeste, enfrentou dificuldades para construir o movimento, sobretudo em relação a questões logísticas. Ele conta que ainda hoje carrega dois carrinhos para transportar os equipamentos necessários: “Não tem apoio de cunho político, nem ajuda de grandes empresas. Aqui é tudo pelo amor mesmo”.

Mesmo com os empecilhos em sua trajetória, o Ponto Nordeste se mantém resiliente em seu objetivo de construir uma comunidade que abraça a cultura na cidade. Todo esse sentimento começa a partir de um denominador comum: o forró. Diógenes explica que seu primeiro envolvimento com o forró se deu com as quadrilhas de Belo Horizonte, onde conheceu a mãe do seu filho. Foi por meio dela que Vinicíus conheceu o forró. A partir desse momento, ele nunca mais deixou o forró de lado. É com esse sentimento de afeto e gratidão pela música que ele e outros membros do Ponto Nordeste abrem o espaço do movimento para cantores de forró se apresentarem, não só como uma forma de entretenimento, mas também para conectar as raízes musicais com o público.

Forró Ponto Nordeste acontece todas às quartas no centro de BH | Foto: Virgínia Muniz

O forró é um gênero musical tradicional e difundido por todo o país. Em Minas Gerais, sobretudo em Belo Horizonte, o que predomina é a vertente “Pé de Serra” do forró. Essa é a manifestação considerada “raíz” do gênero, tocada com o trio instrumental de acordeon, zabumba e triângulo. O Pé de Serra recebeu essa nomenclatura pela sua origem no pé da Serra do Araripe, município de Exu, em Pernambuco. O lugar é onde Luiz Gonzaga cresceu junto de seu pai, ambos precursores do gênero, na década de 1990, quando começou a se popularizar o forró eletrônico. O Pé de Serra é a vertente que preserva a origem, em referência a como Gonzaga chamava o lugar que havia crescido.

Em Belo Horizonte, o forró ganha uma nova cara com a revitalização do gênero a partir da segunda metade da década de 1990, quando grupos como o “Falamansa”, “Calcinha Preta”, “Mel com Terra”, entre outros, trouxeram a música de volta para o público jovem e, assim, movimentando uma cena universitária. Desde então, a influência tem crescido na cidade que se tornou um epicentro do forró nacional, por atrair artistas consolidados do gênero, mas com seus produtos locais, como é o caso do “Trio Gandaiêra”, que apresenta no Ponto Nordeste.

Criado em 2000, o “Trio Gandaiêra” surgiu a partir da junção de amigos de faculdade que tinham interesse e gostavam de forró. Desde então, Danilo Alves, Ric Barreto e Daniel Gouvêa têm promovido a conexão Belo Horizonte e Nordeste através da música, com o forró “Pé de Serra”: “É um movimento muito forte que a gente faz parte, a cultura nordestina, pela música, ela está bem presente com o forró e isso é muito bom para a cultura em geral, porque é brasileiro, não é importado”, conta o cantor Daniel Gouvêa.

Essa relação de amor pelo forró é coroada diante de outra grande paixão nacional: o carnaval. O primeiro bloco carnavalesco de forró do Brasil é mineiro, da capital. O “Pisa na Fulô”, que foi às ruas pela primeira vez em 2015, foi criado por um grupo de músicos quando começaram a se dedicar ao estudo das variações do estilo.

Max Herbert, sanfoneiro do bloco, faz parte do projeto desde o início. Ele conta que as expectativas de público para o lançamento eram baixas, mas que as 3 mil pessoas presentes transmitiram uma energia inexplicável — o que levou a um segundo ano de apresentação marcado por seu próprio trio elétrico e o triplo do público inaugural.

O músico também atua com outros projetos de forró atualmente: o trio homônimo do bloco, o grupo Forró da Onça e a banda Os Disponíveis.

A paixão do artista floresceu após um período em Natal (RN), que motivou o músico a aprender a tocar o acordeon — nome popular da sanfona. Sobre sua experiência em Minas, ele reflete: “Belo Horizonte é muito privilegiada porque as pessoas gostam de forró e se apaixonam pela dança. A demanda é muito grande na cidade, por isso participo de vários eventos”.

As apresentações, segundo Max, acompanham esta alta demanda por meio da variedade de porte dos eventos e dos respectivos cachês. Ele afirma ainda que existe um fenômeno que une o forró a estilos locais.

O próprio Max apresenta releituras musicais aplicando o “molho” do forró à obra original. São músicas mineiras, pop rock nacional, Clube da Esquina, Tim Maia e até Xuxa.

“Minas Gerais já desenvolveu uma linguagem herdeira do Nordeste e do forró nordestino. São muitas releituras, inovações. O forró em Minas tem vida própria e isso é muito bonito”, diz. Para Max, hoje é um super-gênero que engloba vários ritmos e se desenvolve continuamente.

Sobre ser um artista focado neste estilo típico do Nordeste estando fora da região, ele conta que há um processo de antropofagia da música nordestina.“É uma forma de honrar a tradição dessa herança cultural brasileira”, explica.

No mês de junho, esse trabalho ganha ainda mais espaço. “Agenda de sanfoneiro em época de festa junina é uma complicação. Para não ter conflito entre os grupos, fecho a data conforme as apresentações que são marcadas primeiro”, conta o músico.

Tudo é Nordeste? 

A palavra “xenofobia” tem origem na junção de duas palavras de origem grega, “xeno”, que significa “‘estrangeiro”, ou “de fora” e “fobia”, que se refere a “medo”. Dessa forma, a xenofobia se refere ao ódio ao estrangeiro, ao imigrante ou migrante. No Brasil, ela se enquadra na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, com punição de reclusão de um a três anos e multa para aquele que “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Contudo, a punição por lei ainda se faz insuficiente para combater a xenofobia no Brasil, sobretudo contra a população nordestina. Segundo levantamento da Central de Denúncias da Safernet, ONG que defende os direitos humanos na web, realizado em 2022 , houve um aumento de 874% no número de denúncias em relação a 2021, chegando a 10.686 casos.

Quando se faz referência a algo de origem da região Nordeste, seja indivíduo, local, objeto ou qualquer outra característica, não é raro utilizar generalizações como “nordestino”, “cultura nordestina”, “lá do Nordeste” e muitos outros. as, afinal, é tudo Nordeste?

Não só em Belo Horizonte, mas no estado e na região Sudeste como um todo, perpetua-se a visão estereotipada da figura do “nordestino”. Zeca Lemos, jornalista e mestrando em comunicação pela PUC Minas, é migrante de Fortaleza (CE) e conta de uma situação vivida em BH onde em conversa com um motorista de aplicativo disse de onde era, o motorista respondeu: “Ah, Ceará, Pernambuco, é tudo Nordeste, não?”. Esse caso é o reflexo da estigmatização, de enxergar a região Nordeste como sendo uma coisa só, de que todos os estados são a mesma coisa.

Zeca Lemos é natural de Fortaleza e faz mestrado em Belo Horizonte | Foto: arquivo pessoal

Uma relação que contribuiu e ainda contribui para a perpetuação dos estigmas mediante a população e região nordestina é a mídia. Considerando os veículos de comunicação de referência, ou hegemônicos, todos se concentram na região Sudeste, e no decorrer das décadas, quando se pensa no histórico de representações, elas foram construídas em características associadas a dificuldades, questões de seca e pobreza. Para Zeca, esse preconceito edificado pela mídia também afeta na própria forma como a população se enxerga: “Acredito que o nordestino é afetado pela mídia de uma certa maneira, quando ele não percebe a sua região como protagonista devido a esse colonialismo midiático, isso afeta seus gostos, costumes e até a sua percepção de mundo”.

Diógenes Vinicius, do Ponto Nordeste, já sentiu na pele os efeitos da xenofobia. Por se tratar de um evento de rua, que acontece debaixo do viaduto Santa Tereza, região central da cidade, Diógenes conta em um momento da entrevista sobre as dificuldades que existiram para consolidar o movimento, citando até tentativas da Polícia de acabar com a organização, ainda mais por ser um evento que prega o princípio da rua e é aberto para todos os públicos.

Em entrevista para o portal “Guia dos Estudante”, Sebastian Fuentes, professor de geografia na educação básica, critica o uso do termo “nordestino” e variações — por expressar uma generalização redutora da diversidade da região. Apesar de reconhecer a validade dessa problematização, esta reportagem optou por utilizar a expressão “cultura nordestina” na maneira em que as fontes ouvidas disseram, nessa perspectiva, usadas como uma forma de autoafirmação e ressignificação do termo.

Reportagem produzida por Davison Henrique, Flávia Madureira, Giovanna Minarrini, Isabella Gouveia e Virgínia Muniz, sob supervisão do professora Nara Lya Cabral Scabin, para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digital.
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