Em 2023, segundo pesquisa realizada pela Pesquisa Nacional A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD), apenas 69,9% da população tinha coleta de esgoto no Brasil. Assim, três a cada 10 domicílios/famílias do país ainda não estavam devidamente conectados à rede de esgoto de seus respectivos municípios. Um número tão grande de desassistidos representa uma ameaça sanitária ao país, uma vez que cenários assim são ideias para o desenvolvimento de epidemias e infecções generalizadas. Esse número também aponta uma conjuntura desigual em que muitos ainda não têm acesso a um direito básico.
Em 5 de janeiro de 2007 foi instituída no Brasil a Política Federal do Saneamento Básico, por meio da Lei n° 11.445. Conhecida como Marco Legal do Saneamento Básico, esse arcabouço tem como objetivo integrar todas as esferas (federal, estadual e municipal) para que o acesso à água potável e à coleta de esgoto seja universalizada.
Um arcabouço legal é um conjunto de leis, normas, decretos e portarias que formam a base legal para algum determinado assunto, área ou atividade. O arcabouço define os diretos e deveres das pessoas e instituições, servindo como um sistema de referências para juristas e legisladores.
Tendo em vista esse cenário alarmante do Brasil, em 2020, o Marco Legal foi atualizado pela Lei n° 14.026. Os principais pontos são:
- Universalização dos Serviços: a meta é que 90% dos brasileiros tenham coleta e tratamento de esgoto e 99% tenham acesso à água potável até 2033;
- Competição e licitação: permite a participação de empresas privadas na concorrência para licitações e contratações de prestação desse tipo de serviço;
- Regulação pela ANA: atribui à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico a edição de normas e de referência sobre o serviço de saneamento.
Desde 2010, a ONU já reconhece o acesso à água tratada e ao saneamento básico como direitos fundamentais ao bem-estar humano. Em 28 de julho daquele ano, a Assembleia Geral aprovou a Resolução 64/292, que reconhece o direito à água potável e ao saneamento como um direito humano essencial. Nessa perspectiva, a ONU reafirma que os Estados têm o dever de proporcionar esse recurso para todos e os convoca a direcionar recursos para o desenvolvimento tecnológico para a garantia desse acesso para todos os cidadãos.
Reconhece o direito à água limpa e segura e o saneamento como direito humano essencial para o aproveitamento da vida e de todos os outros direitos humanos” – Trecho da Resolução 64/292
Como funciona o saneamento básico
O saneamento básico é um conjunto de serviços que têm como objetivo promover saúde pública e proteger o meio-ambiente através do manejo da água e do esgoto. Envolve quatro áreas principais:

O saneamento é um ciclo que proporciona acesso da população à água limpa e depois coleta a água que foi usada para o meio ambiente de forma segura e não poluente. É importante garantir um sistema eficiente para preservar a natureza (evitando o comprometimento de rios, lagos e oceanos) e, principalmente, promover a saúde pública e a qualidade de vida da população com a redução da incidência das doenças transmitidas pela água.
De acordo com Apolo Heringer Lisboa, médico ambientalista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sem o saneamento de água cria-se uma situação insalubre: “É fundamental que a água seja limpa. Na natureza existe a autodepuração, existe um equilíbrio ecológico e quando a água sem tratamento é consumida por animais e humanos, em geral, começa com doença gastrointestinal”.
Saneamento previne doenças gastrointestinais
Giardíase
A giardíase é uma doença intestinal causada por um protozoário chamado Giargia lamblia. É uma das parasitoses mais comuns do mundo. A transmissão acontece pela ingestão dos cistos da Giargia, que são a forma resistente do protozoário. Essa transmissão ocorre pela ingestão de alimentos e água contaminados. Daí a importância de um tratamento adequado e eficiente. Além disso, a contaminação também pode acontecer pelo contato direto com uma pessoa infectada.
Os casos de giardíase podem ser assintomáticos, mas, quando aparecem, os mais comuns são: diarreia aquosa (que pode ser aguda ou persistente), cólicas abdominais e gases, náuseas e enjoo, perda de peso, falta de apetite e fadiga.
O diagnóstico é feito através de exames parasitológicos nas fezes e, o tratamento, com medicamento antiparasitários e hidratação.
Amebíase
A amebíase também é uma doença intestinal causada por um protozoário chamado Entamoeba histolyca que se aloja no intestino humano e pode causar casos graves de diarreia.
A transmissão é basicamente a mesma da giardíase. Ocorre pela ingestão de cistos resistentes do parasita que estão em água e alimentos contaminados por fezes humanas. Assim, a contaminação também pode acontecer por falta de higiene. Os principais sintomas de alguém que está contaminado são: diarreia, cólicas intestinais, febre e desinteria.
Uma especifidade da amebíase é que ela pode se desenvolver de forma extraintestinal, que é quando o parasita sai do intestino pela corrente sanguínea e atinge (na maioria das vezes) o fígado.
Para diagnosticar a amebíase também é necessário a realização de exames patológicos de fezes. Ultrassom e tomografia são necessários quando há suspeita de abscesso no fígado. O tratamento também é feito com medicamentos antiparasitários e a melhor forma de prevenção é garantir o saneamento básico.
Febre tifóide
A febre tifóide é uma doença infecciosa grave causada pela bactéria Salmonella Typhi. Essa doença afeta principalmente o intestino e a corrente sanguínea, e, caso não seja tratada adequadamente, também compromete a atuação de outros órgãos.
Assim como as parasitoses citadas anteriormente (giardíase e amebíase), a febre tifóide é transmitida de forma fecal-oral, ou seja, o indivíduo é contaminado por alimentos e/ou água contaminados. Por isso, esse tipo de infecção é comum em lugares sem saneamento básico adequado.
A bactéria, depois de se alojar no intestino, invade a corrente sanguínea, causando febre alta e prolongada – daí o nome da doença. A bactéria também pode atingir fígado, medula e baço. Em casos mais graves, a febre tifóide pode causar úlceras internas e hemorragias.
Os principais sintomas da doença são: febre alta (entre 38° e 40°C), dor abdominal, desregulação intestinal (diarreias ou prisão de ventre), mal-estar, fraqueza, dor de cabeça e, em alguns casos, manchas rosadas na pele. Em situações mais extremas, os sintomas podem chegar à confusão mental e perfurações intestinais.

Como se trata de uma infecção bacteriana, o diagnóstico pode ser feito com exames de sangue, além de exame de fezes. Outra forma de se detectar a doença é observar o histórico clínico do paciente. Caso a pessoa viva ou tenha viajado para lugares sem saneamento básico ou esteja acontecendo um surto da doença na comunidade em que ela vive, as chances de contaminação são aumentadas.
O tratamento é um pouco diferente das parasitoses já citadas. Como a febre tifóide é causada pela bactéria Salmonella Typhi, o tratamento é feito com antibiótico.
Cólera
Conforme explica o médico Apolo Lisboa, além dessas doenças já citadas, a cólera é o melhor exemplo de doença por veiculação hídrica. Ele conta que doença chegou ao Brasil através do Peru, com um navio vindo da Índia, onde a cólera é endêmica. “A cólera é uma doença muito violenta, a pessoa perde litros de água em um dia e entra em desidratação grave, podendo causar doenças renais e até morte”.
A cólera é causada pela bactéria Vibrio cholerae. Sua transmissão – assim como as demais doenças citadas – é feita de forma fecal-oral. Uma característica marcante dessa doença é o tipo de diarreia líquida grave, que pode provocar desidratação severa.

A cólera já é conhecida há séculos, mas começou a provocar pandemias no início do século XIX. Até hoje, sete pandemias de cólera já foram reconhecidas pela OMS, sendo a última identificada inicialmente nos anos 1960 no sudeste asiático. No Brasil, essa pandemia chegou mais tarde, nos anos 1990. Entre 1991 e 2001, foram registrados mais de 160 mil casos com aproximadamente duas mil mortes no país. Esses dados, que são do Repositório Institucional da UFSC também apontam que a região do Brasil mais afetada foi a Nordeste.
O diagnóstico pode ser feito tanto com exames de fezes, quanto através da hemocultura, que é o exame de sangue. O tratamento mais importante é a hidratação. Quanto à prevenção, se no lugar há um saneamento básico eficiente, é pouco provável que haja um surto de cólera. Também existe vacina contra a cólera, mas, assim como a vacina contra a febre tifóide, não está no calendário básico de vacinação do SUS. As vacinas contra a cólera normalmente têm proteção de três anos e são indicadas para as pessoas que vão viajar para lugares em que a cólera é endêmica.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, os três países que mais têm casos de cólera na atualidade estão no continente africano: Sudão, Sudão do Sul e República Democrática do Congo. No Brasil, a vacina não é aplicada de forma rotineira porque essa doença não circula no país de forma significativa desde os anos 2000.
Também segundo a OMS, são registradas, anualmente, mais de 20 mil mortes por cólera no mundo. A doença é considerada um indicador de desigualdade social, pois está diretamente ligada à falta de acesso à água limpa e saneamento básico. No Brasil, só houve casos isolados de cólera depois que a situação epidemiológica foi estabilizada no início dos anos 2000. A existência de casos autóctones não é registrada desde 2003.
O caso autóctone de uma doença é aquele em que a pessoa infectada adquiriu a infecção no local em que ela reside, sem que ela tenha viajado para uma região conhecida por ter uma situação endêmica avançada da doença. Em contrapartida, esse tipo de infecção (quando a pessoa adquire uma doença fora da área de diagnóstico é chamado de “alóctones”). O surgimento de casos autóctones indica que a doença está se estabelecendo no ambiente e se espalhando na comunidade local.
O saneamento como investimento inteligente
Um relatório da Un-Water/OMS de 2014 demonstrou que para cada um dólar investido em saneamento básico, aproximadamente 4,3 dólares são economizados em custos de saúde. Isso acontece porque com acesso a água tratada, menos doenças de veiculação hídrica são transmitidas e, assim, são necessários menos recursos destinados à saúde pública.
A Un-Water é um mecanismo de coordenação das Nações Unidas. Foi criada em 2003 pela Assembleia Geral da ONU e seu papel é unir todas as agências da ONU que lidam água e saneamento para alinhar políticas, relatórios e ações.
Tratar surtos de doenças infecciosas é mais caro que fornecer água limpa e uma boa estrutura arquitetônica/hídrica para uma cidade. Além disso, com uma população saudável, há um desenvolvimento da economia indireta – que é o dinheiro que se deixa de gastar e/ou se ganha de forma não imediata.




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