A invasão às sedes dos Três Poderes em Brasília foi o momento em que toda a retórica bolsonarista ganhou forma concreta. Os ataques coordenados tinham um objetivo claro: criar um clima de caos institucional para justificar a decretação de uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e possibilitar a retomada do poder por parte dos militares, com a anulação do resultado eleitoral. Pelas investigações que deram origem à Ação Penal 2668 no Supremo Tribunal Federal (STF), esse era o plano.
Para o sociólogo, professor da PUC Minas e estudioso do tema Robson Sávio, que também foi coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), o plano golpista estava estruturado: após a invasão, esperava-se que o presidente recém-empossado se visse obrigado a reagir com o uso das Forças Armadas. Essas, por sua vez, assumiriam o controle institucional, interviriam no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), anulariam o resultado das eleições e restituiriam o poder ao grupo derrotado nas urnas. “Era um plano muito claro. Uma tentativa de impor um governo pela força, pela ruptura do processo democrático.”
Histórico e diferenças
Diferentemente de 1964, relembra o cientista político e professor da PUC Minas Malco Camargos, quando o golpe teve apoio internacional e encontrou instituições frágeis, em 2023 vimos uma reação importante. O STF teve um papel central, assim como a sociedade civil e a imprensa. “Tivemos a sorte de viver um momento histórico em que a democracia estava mais madura”, analisa.
Para Robson, é fundamental reconhecer que se tratou de uma tentativa de golpe, ainda que fracassada. “Queriam depor o presidente eleito, fechar o Congresso, controlar o Judiciário. Não aceitaram o resultado das urnas. Isso é a negação da democracia. E só não foi consumado porque houve reação.”
A violência dos ataques de 8 de janeiro de 2023 resultou em danos profundos ao patrimônio público e cultural brasileiro, com invasões e depredações à sede dos Três Poderes. Obras de arte históricas, móveis e documentos oficiais foram destruídos ou danificados. Entre os exemplos mais emblemáticos de destruição está a obra As Mulatas, de Di Cavalcanti, rasgada a faca no Palácio do Planalto, além do relógio histórico do século XVII, presente de Luís XIV a Dom João VI, que foi derrubado e destruído. No Supremo Tribunal Federal, a escultura da deusa Têmis, símbolo da Justiça, foi vandalizada. Esses atos de destruição demonstram que o ataque não teve apenas cunho político, mas também representou um atentado direto à memória nacional e aos símbolos da República.
Mas o que é golpe de Estado?
No Direito brasileiro, o conceito de golpe de Estado é delineado pela nova Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, que alterou o Código Penal em 2021, durante o governo Bolsonaro. A tentativa de golpe está prevista no artigo 359-L, que trata dos atos que atentam contra a soberania popular e as instituições democráticas. Embora a fronteira entre golpe, revolução e protesto nem sempre seja clara, como aponta o professor Emilio Peluso Neder Meyer, constitucionalista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Golpe de estado é compreendido como a mudança de governo com violação das regras do jogo.
Wallison Brandão, professor e mestre em Ciências Sociais
O professor e mestre em Ciências Sociais, Wallison Brandão, estuda os golpes de Estado tradicionais na América Latina, baseados em força militar e doutrina de segurança nacional, além do “neogolpismo” contemporâneo, que usa ferramentas institucionais e jurídicas para subverter a democracia e impor mudanças políticas e econômicas.
Desde o século XVI, segundo o professor, o golpe de Estado é uma ação extraordinária que o governo toma para preservar o poder com interesses pouco republicanos. Entretanto, o modo de execução foi mudando com o passar dos anos. Napoleão Bonaparte foi pioneiro em aplicações do golpe militar como conhecemos hoje, em 18 de Brumário. Ele explica que esse tipo de ação de tomada do poder é um processo com suporte político, econômico, social, que a liderança que conduz trabalha de forma discreta, às vezes secreta, até que em um determinado momento há um assalto de poder.
Com o aumento da tecnologia, o golpe de Estado passou a ter também o objetivo de tomada dos principais equipamentos tecnológicos do Estado, como portos, aeroportos, rodovias, ferrovias e linhas de transmissão de energia. Além disso, o golpe viola a Constituição.
Golpe Militar
Segundo Wallison, o neogolpismo se diferencia do golpismo tradicional na instrumentalização da lei com a finalidade de derrubar um governo para fazer a troca da política vigente, principalmente a política econômica. O 8 de janeiro não teve o intuito de respeitar a Constituição, por isso, assemelha-se mais ao golpe de 1964, embora não seja possível classificar de forma tão taxativa. “Você age na surdina, secreto, toma de assalto o poder, prende, exilia ou mata os seus opositores. Isso é 1964. E era o intuito de 2023.”
1964
2023
Outros aspectos que aproximam esses dois eventos são a liderança de integrantes das corporações militares e a ascensão de uma liderança carismática, como é o caso do ex-presidente Bolsonaro. O desprezo pela legislação vigente, a construção de um inimigo interno e, de certa forma, o culto à violência também fazem parte. Wallison ainda relata que o 8 de janeiro mistura esses elementos, deixando nítido ter se tratado de uma tentativa de golpe de Estado.
Robson conta que a consequência de um golpe de Estado pode ser a implementação de regime ditatorial, e quando uma ditadura militar é instaurada, há perseguição a oponentes, fechamento do Congresso, cassação de mandatos, eleições indiretas, censura da imprensa, acadêmica e universitária. Ele acredita que isso é o que aconteceria caso o plano de tomar o poder em 2023 desse certo.
O perfil dos golpistas

A CPMI dos Atos de 8 de Janeiro revelou que os envolvidos não eram um grupo extremista homogêneo, mas pessoas comuns, em sua maioria de classe média baixa, sem histórico de violência. Os dados mostram que 60% eram homens entre 36 e 55 anos, 40% mulheres, com idade média de 46 anos, vindos principalmente do interior de São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Metade recebeu auxílio emergencial na pandemia, e menos de 20% tinham filiação partidária. A ocupação e escolaridade variavam, incluindo desde autônomos até profissionais com ensino superior.
Camilo Aggio, professor e pesquisador da UFMG, afirma que todos os presentes tinham a intenção de fazer o governo Bolsonaro continuar. “Talvez até um governo Bolsonaro anabolizado, com mais militarismo.”
Fenômeno político-ideológico
Vários agentes atuantes na ditadura militar se repetiram nos atos de 8 de janeiro e na ascensão da extrema direita bolsonarista, como contam Robson e Wallison. As Forças Armadas, segundo Wallison, passaram a agir como um poder moderador e combater agentes internos, saindo do contexto em que foram criadas. O relatório da CPMI alerta para a persistência de movimentos antidemocráticos que se apresentam como defensores da pátria, indicando um fenômeno político-ideológico que vai além do episódio isolado.
Apoio de instituições religiosas
Os movimentos religiosos também influenciaram ambos os golpes, com uma pequena diferença. Em 1964, a Igreja Católica promovia o terço pela família, e as marchas da Família com Deus pela Liberdade ganharam vulto. “As passeatas por Deus e pela pátria contaram até com um padre estadunidense que veio dos Estados Unidos liderar o movimento”, enfatiza Robson. Nos movimentos das novas direitas iniciados em 2018, os católicos perdem um pouco do protagonismo para os pentecostais e neopentecostais.
Já em 2023, há efetiva participação de integrantes das igrejas evangélicas neopentecostais nos atos de 8 de janeiro, que sequer representavam um movimento religioso nos anos 1960, vindo a se consolidar a partir do fim dos anos 1970.
Conforme dados do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Universidade de São Paulo (USP) 43% dos presentes na invasão do Congresso se declararam católicos e 29% evangélicos. Outros 10% disseram ser espíritas/kardecistas, 7% responderam outras religiões e 10% disseram não seguir qualquer religião.
Do latifúndio ao agro
Chamados de latifundiários em 1964, a parcela do agronegócio que concentra grandes propriedades, explora a terra e exporta produtos, segundo Wallison, não apoiou explícita e publicamente o golpe de 2023 pelo medo de sofrer sanções econômicas externas, principalmente dos EUA, que no período era governado por Joe Biden (Democrata), um político não favorável a esse possível golpe de Estado. Conforme o professor, os importadores tendem a apoiar mais a extrema direita e os movimentos golpistas, o que inclui empresas que ainda aparecem na lista suja do trabalho escravo do Ministério do Trabalho ou que desmatam os biomas brasileiros.
Robson Sávio também enfatiza que setores do mercado financeiro apoiaram os dois golpes. Pedro Luiz Kurunczi, empresário de engenharia, por exemplo, fretou quatro ônibus para levar manifestantes a Brasília. Já Joveci Xavier de Andrade e Adauto Lúcio de Mesquita, donos da rede Melhor Atacadista, forneceram água, comida e banheiros químicos para o acampamento em frente ao QG do Exército. Já o PL, partido de Bolsonaro, usou R$ 225 mil de recursos próprios para financiar uma auditoria fraudulenta contra as urnas eletrônicas.
Os acampamentos
Logo após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022, no dia 1º de novembro, começaram a surgir manifestações em diversas cidades do Brasil, instigadas por apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) que se recusavam a aceitar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Esses atos, inicialmente apresentados como protestos “pacíficos”, pediam intervenção militar, deslegitimando o resultado das urnas. Convocados em redes sociais e por grupos de mensagens como o autodenominado Movimento Nacional de Resistência Civil (MNRC), os manifestantes repetiam símbolos e práticas típicas do bolsonarismo, como o uso de cores verde e amarela, bandeiras do Brasil, hino nacional e cartazes contra o STF e o TSE.
Essas manifestações se intensificaram com protestos massivos em frente a quartéis e unidades militares. O objetivo era pressionar as Forças Armadas a agir como um suposto “poder moderador” e reverter o resultado eleitoral, uma interpretação distorcida do artigo 142 da Constituição. Apesar das pautas claramente antidemocráticas e golpistas, não houve repressão imediata por parte das forças de segurança. As investigações apontam para omissão.
Logo após os protestos iniciais, verdadeiros acampamentos começaram a ser montados. Os manifestantes passaram a se instalar de forma permanente na frente dessas unidades, com barracas, tendas, caminhões e até motorhomes, sobretudo em Brasília, onde o acampamento na Praça dos Cristais, em frente ao Quartel-General do Exército, se tornaria o principal símbolo do movimento golpista. Estruturas de apoio começaram a surgir rapidamente, com fornecimento gratuito de alimentação, banheiros químicos, chuveiros, painéis solares, internet wi-fi e até tendas religiosas e infantis. Essa ação foi possível graças aos financiamentos de diversos empresários, como Adauto Lucio de Mesquita.
A Justiça e o Ministério Público chegaram a emitir recomendações para o desmonte dos acampamentos, mas os comandos militares alegavam falta de competência para atuar. Na prática, o Exército colaborava com a permanência dos acampamentos, solicitando apoio logístico ao governo do Distrito Federal, como limpeza, policiamento e controle de ambulantes, mas sem mover ação de impacto para desmobilizá-los. Operações programadas foram canceladas de última hora, sem justificativas.
Mesmo após a diplomação de Lula, os acampamentos persistiram. Só após o 8 de janeiro o acampamento de Brasília foi finalmente desmontado. Outros acampamentos, como o de Belo Horizonte, também foram removidos apenas em janeiro, geralmente por iniciativa de governos locais, não das Forças Amadas.
Sintomas da midiatização reacionária
O papel da comunicação na articulação dos atos golpistas foi fundamental, conforme explica Wallison. Isso porque a extrema direita percebeu que pode ganhar dinheiro com a monetização de contas no Facebook, no Twitter ou no YouTube com conteúdos violentos ou radicais. Para além disso, as direitas se articulam bem nas redes e em grupos de mensagens, lançando mão inclusive de desinformação se for necessário.
Conforme estudo publicado por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC Minas, os atos que desencadearam o 8 de janeiro não partiram espontaneamente da sociedade civil ou de movimentos sociais, mas de grupos de interesse e da iniciativa privada que atuaram no financiamento. As ações golpistas também não tiveram o intuito de trazer para as esferas públicas a complexidade do debate sobre os problemas coletivos. Além disso, parte das justificativas para a ação se basearam em desinformação, em dados inverídicos ou sem qualquer comprovação, como o de que as urnas eletrônicas seriam manipuladas e de que o resultado eleitoral poderia ter sido forjado.
Desde agosto de 2022 a Palver, empresa de tecnologia especializada em análise de tendências sociais, colabora com o TSE e monitora mais de 15 mil grupos de whatsapp de maneira anônima. O sócio e diretor da empresa, Luis Fakhouri, aponta a dualidade da influência das redes sociais, uma vez que, antes da midiatização, os grandes jornais escolhiam como transmitir um pensamento e qual ideia seria promovida.
Luis relata que nos grupos de WhatsApp observados anonimamente pela Palver durante uma colaboração anti-fake news com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), havia circulação de mensagens de teor anticomunista vinculada a conteúdos religiosos. Ele cita como exemplo posts relacionando a China ao satã, e outros dizendo que Deus seria contra o comunismo.
As articulações para o possível golpe circulavam nos grupos de WhatsApp desde novembro de 2022, com mensagens de estímulo para estarem em frente aos quarteis, a fim de manter a pressão para que Lula não assumisse, pedindo a intervenção das Forças Armadas. Enquanto isso, outro grupo tentava incentivar uma greve geral para paralisar o país e criar situação, que tentava impedir a posse de Lula.
Depois do 8 de Janeiro, houve frustração da direita com as próprias Forças Armadas e, portanto, uma pausa na discussão de invasão de quarteis. Entretanto, as mensagens com conteúdos como fechar o STF circulam até hoje nos grupos. Para ele, os atores políticos vão tentar criar momentos em que a população compre esse discurso extremista, criando um nível de insatisfação com o governo, fazendo parecer que tudo está ruim, e que é necessário uma ação violenta. No contexto atual, ele não percebe esse tipo de mobilização, mas explica que a situação pode mudar muito rápido.
Luis observa que após a invasão, houve uma concentração de narrativa dizendo que não foi a direita bolsonarista que quebraram, mas sim, os infiltrados, discurso que se repete até hoje. Em um ato em Belo Horizonte em junho de 2025, Jair Messias Bolsonaro afirmou que “8 de janeiro só não foi golpe perfeito da esquerda porque eu estava fora.”
Festa da Selma
A Palver identificou códigos utilizados em grupos de mensagens extremistas para se comunicar de maneira criptografada, como o uso dos termos “festa da selma”. Bolsonaristas usaram o código para coordenar a invasão aos prédios do poder em Brasília em 8 de janeiro de 2023. O termo foi amplamente divulgado em redes sociais como o Twitter.
A ideia surgiu após a posse de Lula. Grupos bolsonaristas passaram a planejar uma grande ação para “tomar o poder”. As mensagens circulavam no WhatsApp, Telegram e em redes sociais, com convocações explícitas para invadir o Congresso, o STF, o Palácio do Planalto, prefeituras e sedes estaduais.
Conforme o estudo de pesquisadores da PUC Minas, esse tipo de ação costuma ser gerida por grupos sigilosos ou privados, que simulam movimentos espontâneos, além fazerem usos de códigos (como o exemplo ‘festa da Selma’), para se blindarem e não serem punidos pelas políticas de uso das próprias plataformas.
As mensagens instruíam os participantes a irem preparados para confronto, com máscaras e soro fisiológico, e recomendavam deixar crianças e idosos de fora. Algumas falavam até em “brincadeiras” como “tiro ao alvo” e “pega-pega”, metáforas para os ataques.
Influenciadores, religiosos e empresários organizaram caravanas e ônibus saindo de dezenas de cidades. A “festa” era descrita como um grande evento patriótico, com mensagens como “não fique de fora da maior festa da história”.
Produção: Mariana Brandão, Julia Melgaço, Wallison Leandro, Izabella Gomes e Danielly Camargos
Reportagem: Mariana Brandão, Julia Melgaço, Wallison Leandro, Izabella Gomes e Danielly Camargos
Edição: Professora e jornalista Fernanda Sanglard
Arte e edição de imagens: Mariana Brandão
Infografia: Mariana Brandão