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Bonés vermelhos do MST com símbolo do movimento

MST luta pela democratização de terras e produção sustentável de alimentos

Movimento levanta bandeiras da economia popular e solidária, defendendo produção agroecológica que respeita a natureza

A propriedade privada é um direito garantido no artigo 186 da Constituição Brasileira, mas deve apresentar funções sociais. O texto constitucional permite a intervenção do Estado na propriedade, visando o interesse público, se essas condições forem violadas. Devido à concentração de renda, desigualdade social e outros problemas relativos à distribuição de terras, a questão da ocupação urbana e rural no Brasil é um problema que as tentativas de implementação da reforma agrária não foram capazes de superar.

Há exatos 40 anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) surgiu nesse contexto de luta pela terra, com o intuito de ocupar latifúndios improdutivos, grilados e/ou fruto de crimes ambientais e trabalhistas. Hoje, o MST tem 400 mil famílias assentadas e 70 mil famílias acampadas, mas ainda luta para ter visibilidade e reconhecimento. Para além do estigma, a questão é: como o MST impacta a economia solidária e a agricultura familiar?

Blusas vermelhas dobradas com o símbolo do MST em uma estante
A venda de blusas e bonés no Armazém do campo contribui para a integração do campo e cidade. Foto: Mariana Brandão e Karenn Rodrigues

A criação do MST, em 1984, foi marcada por um cenário em que a terra era inacessível às classes menos favorecidas, problema que persiste. Por meio de acampamentos e assentamentos, o MST luta pela reforma agrária, como maneira de garantir a democratização das terras e a segurança alimentar. Segundo Priscila Araújo, coordenadora do MST em Minas Gerais e do Armazém do Campo, o movimento enxerga a necessidade de reconquistar a terra para quem nela trabalha.

Mestre em Ciências Sociais e doutor em Administração, o economista Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, conhecido como Teo, explica que grupos de extrema direita e parte do agronegócio se opõem às organizações sociais, promovendo a criminalização desses movimentos.

Essa criminalização envolve associar o MST à baderna, desordem e ao descumprimento da lei, com uma visão limitada da lei, sempre imaginando que o direito à propriedade vem acima de qualquer outro direito. E essa não é uma verdade na construção jurídica, que prevê a função social da propriedade. Então, a propriedade não é inalienável, ela precisa ter também um impacto positivo e social para a sociedade”

Armindo dos Santos de Sousa Teodósio

A jornalista Agatha Azevedo, que defendeu a dissertação “(Des)politização, agrotóxicos e saúde, atua na comunicação do MST”, conta que as ações do movimento são constitucionais e realizadas para reivindicar um direito: “Está dentro da Constituição Brasileira que, quando uma terra não é produtiva, ela deve ser desapropriada para fins de reforma agrária, e se hoje isso não é feito institucionalmente, a gente faz isso por pressão”.

Agatha Azevedo defende a mobilização da classe trabalhadora, “porque se não for de forma popular, não tem como a gente construir uma nova sociedade, onde a gente consiga dividir essa terra para quem realmente nela trabalhe e realmente vai plantar de maneira solidária, sem violência contra a mulher, sem agrotóxico, sem trabalho escravo, sem exploração, sem monocultura”.

Sistema Cooperativista

No final da década de 1980, surgem as primeiras Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs) e a partir de 1989 começam as primeiras discussões a respeito da implementação do Sistema Cooperativista dos Assentados.

O documento básico para discussão nos estados do Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) propõe que as bases do sistema seriam as cooperativas de produção agropecuária, as associações de assentados; em âmbito estadual estariam as cooperativas centrais de reforma agrária (CCAs) como a Concentra, e em âmbito nacional a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab).

O economista Teo explica que um dos conceitos do cooperativismo aplicado pelo MST é a distribuição justa das riquezas geradas pelo empreendimento. Outro conceito é a autogestão, que é a capacidade dos trabalhadores de governarem e gerenciarem os empreendimentos e participarem de forma ativa nas decisões, indo de encontro às formas convencionais empresariais e econômicas, em que uma elite gestora toma decisões e recebe salários mais elevados e determina para os trabalhadores o que eles devem fazer.

Armazém do Campo: inclusão produtiva

Estabelecimento verde com a faixa do Armazém do Campo
Sede do Armazém no Campo na Avenida Augusto de Lima – BH. Foto: MST

O Armazém do Campo é uma rede de lojas localizadas em todo o país que recebe produtos provenientes do MST. As 36 unidades espalhadas pelo território nacional fazem a integração do campo com a cidade. Segundo Paula Ribeiro Guimarães, coordenadora da Cooperativa Camponesa Central de Minas Gerais (Concentra), a importância dessa aproximação é disseminar o ideal do movimento, contribuindo com a transformação da sociedade. A coordenadora diz que para entender a reforma agrária é preciso conhecê-la e os produtos comercializados nos armazéns trazem essa luta. Algumas das cadeias produtivas do MST são: arroz, leite, café, cacau, mandioca e grãos. Além do abastecimento da própria rede cooperativista, esses alimentos estão presentes nas alimentações escolares, asilos e presídios.

Pacotes de arroz Terra Livre enfileirados na prateleira.
O MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. Foto: Mariana Brandão e Karenn Rodrigues

Teo explica que o MST é o maior produtor de produtos agroecológicos e orgânicos e, por meio da produção tradicional e distribuição em supermercados, esses produtos não chegariam a todas as parcelas populares.

Os alimentos chegam aos armazéns por meio da Concentra que, segundo Fábio Nunes, coordenador do setor de produção do MST, tem o objetivo estimular a cooperação agrícola nas áreas de assentamentos e acampamentos. Pequenas cooperativas não conseguem levar os alimentos em grande escala para lugares distantes de onde são produzidos, dessa maneira surgiu a ideia de criar uma grande cooperativa central, que realiza o armazenamento e distribuição dos produtos que chegam.

Um dos alimentos que chegam ao Armazém do Campo em Belo Horizonte é o café Guaií, produzido no território Quilombo Campo Grande, na cidade de Campo do Meio (MG). O local ocupado era uma usina de cana de açúcar que faliu, deixando os funcionários sem condições de trabalho e sem o acerto das dívidas. Dessa maneira, o terreno – abandonado e sem cumprir sua função social – foi ocupado pelas famílias que produzem esse grão. Após ser produzido, o produto vai para a cooperativa regional Camponeses Sul Mineiros, onde é empacotado e enviado à Concentra, que distribui para diversos estados e estabelecimentos, incluindo o Armazém do Campo, na capital mineira.

Pacotes de café guaií enfileirados na prateleira
O café Guaií traz uma história de resistência, assim como todos os produtos das cooperativas

“Uma fazenda que ‘tava’ improdutiva, que essa usina faliu e deu as costas para a terra e para o povo que ‘tava’ lá, a gente transformou isso num território imensamente produtivo, com milhares de pés de café, com uma produção enorme e diversificada de feijão, frutas, verduras”, explica Paula. Ela e Priscila declaram que o movimento “nada contra a corrente”, já que defende ideais socialistas em meio a uma sociedade capitalista. Ambas acreditam que o estigma associado vem do confronto direto com o agronegócio, que, por sua vez, detém a maior parte do capital brasileiro.

A gente propõe uma outra forma de produção, que não está vinculada ao pacote do veneno, a gente acredita na produção agroecológica sem exploração da mão de obra, que respeite a natureza”.

Priscila Araújo, coordenadora do MST em Minas Gerais

A cooperativa e os armazéns utilizam as “sobras” monetárias para se manterem, além de abastecer fundos de reservas, seguindo os preceitos da economia solidária. Realizam assembleias para deliberar onde será aplicada essa verba, que normalmente volta para os assentados ou é destinada a novos investimentos. Um dos exemplos da utilização desse valor foi uma ação realizada pelo Armazém do Campo em Belo Horizonte: a cada café Guaií vendido, R$1 seria destinado à reconstrução da Escola Popular Eduardo Galeano, destruída em uma tentativa de despejo durante a pandemia da Covid-19. Hoje, a reconstrução já está quase finalizada.

Construção com pessoas ao redor e bandeiras do MST
Parte do prédio da escola sendo reconstruído. Fotos: Edvan Feitosa (MST)

A luta constante pela terra

“A questão da terra no Brasil é um problema histórico longo, que vem desde a colonização e nenhum governo até hoje conseguiu resolver. A gente não teve uma reforma agrária no país, então a terra no Brasil é muito concentrada na mão de poucas pessoas”, explica a historiadora Marina Camisasca, que é doutora em História e Culturas Políticas e pesquisadora nas áreas de História Agrária, História do Brasil Republicano e História da Ditadura Militar.

Segundo Marina, a posse da terra é um problema no Brasil desde quando Portugal se apossou das terras, dividiu o território em sesmarias. “E aí algumas pessoas foram escolhidas para administrar essas porções de terras que eram consideradas todas da coroa. Depois da Independência, veio a Lei de Terras, em 1850, que estabeleceu que a terra só poderia ser propriedade a partir da compra. Então, as pessoas que não tivessem dinheiro, recursos para comprar, não teriam acesso à terra”, explica.

Com as propriedades concentradas nas mãos de poucos, houve revolta e organização de movimentos para reivindicação pela repartição desses territórios. Entre as décadas de 1950 e 1960, surgem as primeiras associações agrícolas e ligas camponesas. O debate toma a esfera pública durante o governo de João Goulart (1961 – 1964), quando a distribuição de terras no Brasil é vista como um problema. Nessa época, é aprovada a fiscalização rural e são criados sindicatos rurais, que durante o governo Vargas eram proibidos no campo. Dessa maneira, começa a se falar sobre reforma agrária, como lembra Marina.

A redistribuição de terras era uma discussão presente no Congresso Nacional, no intuito de alterar a então Constituição de 1946, que determinava que as terras só poderiam ser desapropriadas mediante pagamento. Entretanto, com a instauração da ditadura militar (1964), houve um retrocesso nessa pauta. As ligas camponesas são extintas, as lideranças perseguidas, assim como os líderes dos sindicatos rurais, fazendo com que a luta pelas terras se tornasse “subterrânea e escondida”, como definiu a pesquisadora.

Para tentar melhorar a distribuição de terras no Sul do país, onde havia poucas áreas disponíveis, o regime militar passa a enviar pessoas do Sul para outras áreas do Brasil, principalmente o Norte e o Mato Grosso, mas sem uma política de recepção para essa população. Dessa maneira, muitas pessoas retornaram ao Sul e se uniram, dando força para a criação de movimentos reivindicatórios, não só pelas terras, mas também o movimento operário urbano e das camadas oprimidas, que eram privadas de direitos.

Foi nessa onda de luta, reivindicações e efervescência política que surgiu o MST, em janeiro de 1984. Esse movimento camponês foi criado durante o 1° Encontro Nacional, em Cascavel, no Paraná, com três principais objetivos: lutar pela terra, pela reforma agrária e por mudanças sociais no país.

Foto em preto e branco de pessoas reunidas em frente a um cartaz escrito: sem a terra não há democracia
1º Encontro Nacional do MST. Foto: arquivo MST

O início do estigma

Na década de 1990, o MST viveu um momento de visibilidade, conforme Marina Camisasca, ao ser retratado na novela Rei do Gado, da TV Globo, o que proporcionou debate público acerca da atuação do movimento.

Para Marina, a violência no campo é um impulsionador da deturpação da imagem do MST. “Por causa dessa violência no campo, acabou causando essa imagem deturpada de que o MST é violento, que o MST mata. Mas na verdade o MST responde a violência a que ele é submetido, né? Muitas dessas famílias são submetidas à extrema violência, então, eles acabam tendo que responder de alguma forma, porque o Estado não chega para dar proteção”, justifica.

Segundo Teo, o agronegócio enxerga como ameaça os movimentos com atividades de sustentabilidade, com lutas por responsabilização da agricultura sobre os impactos das mudanças climáticas, pelo acesso à segurança alimentar, a democratização da riqueza da produção agrícola e à promoção efetiva de uma alimentação saudável. Para ele, os grandes agricultores desejam manter a plantação em grande escala, monocultura com grande concentração de renda, sem muitos vínculos com a segurança alimentar da população no Brasil.

Marina também explica que quem detém o maior poder monetário detém o poder e acabam expulsando as pessoas “indesejadas” das terras e explica o motivo de o pequeno produtor ser um empecilho para o agronegócio: “Porque eles querem ter a terra e quanto mais terra, melhor. Eles querem produzir em larga escala. O Agro é isso: a produção em larga escala, mecanizada, utilizando grandes extensões de terra e com o objetivo de exportação. (…) Então, para eles, o pequeno produtor, o posseiro, o meeiro, são pedras, porque eles estão ocupando a área que querem produzir”.

Vivência no MST

cinco homens enfileirados com blusas do MST
Evaldo Rodrigues é o primeiro da esquerda para a direita e Zé França, o quarto. Pai e filhos com companheiros do movimento. Foto: Arquivo pessoal

O aposentado José Rodrigues de França, 72 anos, é um participante emblemático na conquista do assentamento onde vive, hoje chamado de Oziel Alves Pereira. Nascido em Alpercata, em Minas Gerais, ele diz que antes mesmo do movimento surgir, já conhecia a reforma agrária pela Bíblia, lendo passagens como Levítico 25:23 e Isaías 5:8.

Em 1994, ele conheceu o movimento, por meio de uma reunião próximo a sua casa. Ele conta que, depois de ter participado de apenas duas reuniões, recebeu o “convite” para ir para uma ocupação, que hoje é o assentamento Oziel Alves Pereira, onde vive com seus filhos. José conta que aceitou ir no escuro, sem saber exatamente o que era a causa.

Já na luta pelo assentamento, participou de uma marcha da cidade de Governador Valadares até Belo Horizonte, que fez a pé, durante 16 dias. Ao chegar à capital, foi surpreendido com uma forte violência policial, que resultou em vários companheiros presos e feridos. Lutaram dois anos e dez meses até que, finalmente, a terra fosse assentada.

José, ou “Zé França”, como é conhecido, conta que, se não fosse pelo movimento, hoje ele não teria sua própria casa, e ainda seria um escravo de fazendeiro: “Quando eu morava em terra de fazendeiro, eu não ‘aguentava’ comprar uma bicicleta, eu não tinha uma casa pra morar… hoje eu tenho minha casa, meus filhos têm uma casa. Graças ao movimento, a Flávia virou médica”.

Apesar de todas as conquistas, ele admite que sofreu repressão da própria família quando decidiu ir para a ocupação: “Eles brigaram comigo porque eu vim ‘pra’ cá… Me xingaram de ‘ladrão de terra’, disseram que eu tinha saúde para trabalhar e não roubar terra de ninguém.”

Evaldo Rodrigues, 42, é um dos filhos de Zé França e também reside no assentamento. Em 12 anos, já foi tesoureiro, dirigente regional, conselheiro fiscal e hoje é segundo secretário da associação do assentamento, Coaap (Associação agrícola Alves Pereira). Com a ajuda do movimento, começou a cursar Ciências Agrárias na Paraíba, mas não seguiu no curso. Hoje, é técnico em agroecologia, e atua no MST.

Ocupação, acampamento ou invasão?

Passeata do MST. Várias pessoas reunidas com faixas e bandeiras do movimento.
Foto: Raquel Matos / MST

As ocupações de terra realizadas pelo movimento são consideradas pelos membros como uma forma de pressionar as autoridades na instauração da reforma agrária. Após o processo de fiscalização e o atestado de improdutividade do latifúndios, as famílias presentes recebem um documento que transforma os acampamentos em assentamentos, onde devem residir e explorar o lote, com o desenvolvimento de atividades produtivas. O documento garante os direitos e deveres dos assentados, como o recebimento de créditos para construções e a condição de não comercialização do local.

A prática das ocupações gera debates na sociedade e, por muitas vezes, são chamadas de invasões. O uso das duas palavras carrega ideologias presentes em ambas. Ao usar o termo invasão, o emissor passa a ideia de tomada violenta de um imóvel e traz a defesa de propriedade privada, em que o sem-terra está no local de punição.

Já a utilização da palavra ocupação, expõe a concepção de propriedade social da terra, uma ideia contrária à ilegalidade, pois é um instrumento de pressão para a conquista dos direitos.

MST e sustentabilidade

Não existe pessoa sadia se o solo está doente.

Evaldo França, técnico em agronomia do MST

O Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra tem enfrentado diversos desafios ao longo dos anos, especialmente no que diz respeito à integração de pequenos agricultores e assentados em um sistema produtivo sustentável e solidário.

O técnico aponta que um dos maiores desafios está em integrar pessoas em um sistema que respeite e valorize o trabalho coletivo. “O nosso maior desafio é integrar o pequeno agricultor em um sistema que não só vise a produção massiva, mas também o bem-estar da nossa fauna e flora”, explica França. Ele ressalta que muitos desses agricultores, antes acostumados a um modelo de produção que priorizava lucros e a exploração da terra, agora estão aprendendo a trabalhar de maneira sustentável e cooperativa.

Apesar dos desafios, ele conta que tem visto um avanço significativo na agricultura sustentável e que, para continuar progredindo, é necessário desconstruir a ideia convencional de produção que foi introduzida pelos grandes fazendeiros, mostrando que é possível trabalhar no campo sem agredir o meio ambiente.

O economista Teo explica a relação do agronegócio com a sustentabilidade: “São representantes do agronegócio que pensam ainda de forma muito primária e básica e pouco consciente. Imaginam sustentabilidade e direitos sociais como custos de produção e não como oportunidades de novas formas de desenvolvimento dos negócios”.

Economia do MST: popular e solidária

seis pessoas reunidas em frente a um caminhão com suprimentos. Elas carregam bandeiras do MST e da Palestina
MST envia suprimentos para a Palestina. Foto: @yurigringo

Evaldo diz que o movimento tem práticas humanas, que se solidariza. Ele relembra as ações que o MST fez em prol das vítimas do ataque de Israel na Palestina, doando toneladas de alimentos. Assim como agora, se mobilizaram pelo Rio Grande do Sul, fornecendo doações e promovendo cozinha solidária.

A gente conscientiza o assentado ou acampado a fazer essas práticas. Você não vive sozinho, você tem ao seu redor uma sociedade que precisa de você

Evaldo França, técnico em agronomia do MST

Zé França também cita a tragédia da barragem no Vale do Rio Doce (decorrente do rompimento da barragem em Mariana, em 2015). Conta que os moradores de regiões vizinhas ficaram sem água por mais de 60 dias. Em solidariedade, o assentamento Oziel Alves Pereira forneceu água de seu poço artesiano às vítimas, que levavam de bicicleta, carroça ou até mesmo a pé. Com isso, o valor da conta de água subiu muito, e os moradores do assentamento não tiveram direito de pedir indenização aos responsáveis pela tragédia, com a alegação de que a localização não era próxima o suficiente do rio.

Para o economista Teo, o MST tem uma relação umbilical, estreita e essencial com a concepção de economia popular e solidária ao ter em suas raízes as lutas para garantir o direito à propriedade, à inclusão econômica social produtiva e à inclusão nos direitos de relação com o meio ambiente e com a sustentabilidade. Esse sistema econômico se baseia no cooperativismo, no trabalho coletivo com distribuição equitativa justa, solidária e sustentável da produção e da riqueza gerada pela agricultura, não só para os pequenos produtores, mas para toda a sociedade.

“É óbvio que trabalhadores mal alimentados não conseguem ser trabalhadores produtivos e competitivos. Então, ao contribuir também de forma decisiva para o avanço da segurança alimentar e da cidadania alimentar no país – não só com a produção solidária e comercialização solidária, mas também com as cozinhas solidárias – o MST também tem um impacto econômico muito importante além dos impactos sociais, culturais, políticos e ambientais”. – explica o economista

O MST tem um papel importante na economia nacional, em virtude dos impactos positivos de inclusão econômica, melhorando a renda e a capacidade de permanência no campo, outras áreas de políticas públicas se tornam mais efetivas, como saúde e educação. José França conta que, se não fosse o movimento, sua filha Flávia não teria se formado em medicina em Cuba, e não teria a estabilidade de vida que tem hoje, com sua própria terra.

Atualmente, o MST vem atuando nas bolsas de valores, o que, para muitos, é uma contradição devido ao caráter socialista do discurso. Na opinião de Teo, é uma oportunidade de paulatinamente ir captando fundos financeiros orientados para empreendimentos que tenham efetivamente impactos sociais, econômicos, políticos e culturais positivos para a sociedade. “Mas reconheço que existem contradições e riscos”, já que, para ele, as bolsas de valores contemporâneas são dominadas por investidores que não têm preocupações com o impacto social na desigualdade, na pobreza e no meio ambiente, indo contra os fundamentos do MST.

Teo ainda cita o sociólogo Herbert José de Souza, dizendo que quem tem fome, tem pressa, justificando algumas ações que, segundo o economista, precisam ser executadas, mesmo que elas promovam essas situações de contradição. Dessa maneira, ele acredita que essa ação traz outra perspectiva: de poder ter lucro promovendo também segurança, justiça social e proteção ambiental. Além disso, enxerga a presença do MST na bolsa de valores como uma oportunidade da economia popular solidária começar a influenciar grandes investidores globais.

Agricultura familiar, base do MST

Sala de aula com bandeiras do MST espalhadas no chão e algumas frutas e legumes como melancia, banana e cenoura. Há também um cartaz de Paulo Freire
Uma das etapas do curso técnico em agronomia. Foto: arquivo pessoal

Dados da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Sead), apontam que a agricultura familiar é responsável por 70% do que se consome no país e 76,8% dos 5,073 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil foram caracterizados como pertencentes à agricultura familiar, segundo dados do Censo Agropecuário 2017-2018, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Esse tipo de agricultura se tornou um dos principais pilares da segurança alimentar, além de ser um importante componente econômico, gerando empregos e renda para pequenos produtores e regiões rurais. Ainda segundo esses dados, a produção da agricultura familiar gerou receita de 106,5 bilhões de reais (23% do total), enquanto a geração de receita da agricultura não familiar foi de 355,9 bilhões de reais (77% do total).

Esse tipo de plantação é realizada e incentivada dentro do movimento e algumas bandeiras são levantadas a partir disso. O MST se posiciona contra o agronegócio, questionando as políticas públicas que privilegiam os latifundiários. Além disso, a sustentabilidade e solidariedade são bases da agricultura familiar dentro desse grupo. O uso de agrotóxico é desestimulado, indo ao encontro das ações do movimento durante a pandemia e tragédias como as enchentes do Rio Grande do Sul.

Um dos principais programas do MST é o Comida de Verdade, que prega a soberania alimentar e coloca o alimento como memória, cultura e afeto e deve ser produzido com igualdade e justiça.

“Para a economia do Brasil, eles (os pequenos produtores) são fundamentais, porque vão produzir para a gente comer, né? O Agro está voltado para determinado produto, principalmente para aqueles de exportação, a soja e o milho. Agora, a questão das hortaliças, a produção em pequena escala para vender para o mercado interno para abastecimento é feita por esses pequenos produtores que são fundamentais e fazem a economia do Brasil rodar”, compara a pesquisadora Marina Camisasca.

Dados do Censo Agropecuário 2016-2017 ajudam a exemplificar a fala da pesquisadora. Uma lista foi elaborada com 65 produtos agrícolas e a participação da agricultura familiar foi de apenas 5,7%. Entretanto, quando se exclui desta lista a soja, o milho, o trigo e a cana-de-açúcar, que são culturas industriais cultivadas em médias e grandes áreas para a exportação, a participação da agricultura familiar alcançou 30% do total produzido. A agricultura familiar tem importância significativa na maioria dos produtos hortícolas como morango, com participação na produção de 81,2% e uva para vinho e suco (79,3%).

O princípio crucial da agricultura familiar é a sustentabilidade. O uso de sistemas agroflorestais, a rotação de culturas e o afastamento do uso de agrotóxico são práticas que contribuem para a preservação do solo, da água e da biodiversidade.

Apesar de sua grande importância, a agricultura familiar resiste em meio a grandes dificuldades. Para Paula Ribeiro, coordenadora da Concentra, um dos principais desafios da agricultura familiar é competir com o agronegócio, que possui um grande poder aquisitivo e grande influência no mercado, além da falta de acesso a máquinas agrícolas e assistência técnica.

Para garantir a sustentabilidade e a expansão da agricultura familiar no Brasil, são necessárias políticas públicas que apoiem os pequenos produtores, dando suporte, facilitando o acesso à tecnologia, além de promover a educação e a capacitação dos agricultores. Garantir isso é garantir a segurança e soberania alimentar do povo brasileiro.

Teo explica que historicamente o agronegócio tem se apropriado mais de subsídios, incentivos e políticas públicas do Estado e o investimento à agricultura familiar e nos pequenos agricultores é muito menor. Porém, a agricultura familiar tem realizado rebatimentos em geração de ganhos econômicos, fazendo com que os incentivos fiscais tenham muito mais coerência e consistência na medida que ajudam a combater problemas coletivos.

Ou seja, a agricultura familiar e os movimentos sociais que se baseiam nela, como o MST, utilizam o orçamento que recebem para investir em ações que reduzem os custos e aumentam as produções, além de investir em outras áreas, desonerando o orçamento público, como, por exemplo, a educação agrária e o ensino da vida no campo ofertado pelo MST, possibilita a continuação das famílias nas áreas rurais, aproveitando os recursos lá presentes.

Agro é pop: crises e violência

Em 2023, segundo a Comissão Pastoral da Terra, um confronto no campo acontece a cada 4 horas no Brasil. O principal motivo para os conflitos é o mais citado nesta reportagem: a terra. Somente em Minas Gerais, houve 43 conflitos relacionados a isso, atingindo 5.912 famílias.

“O meio rural no Brasil é extremamente violento, né? O Agro é assassino”,

Historiadora Marina Camisasca

As pessoas indígenas são as mais atingidas por esses conflitos, seguidos pelos sem-terra. Ainda segundo esse documento, 950.847 pessoas estão envolvidas em conflitos por terra, água e trabalho, entre assassinatos, tentativas de assassinatos, mortos em consequência dos conflitos, ameaçados de morte, torturados, presos e agredidos.

A violência no campo tem as vítimas e agressores bem demarcados. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2023 os principais grupos atingidos pelas ações e conflitos são os povos originários, sem-terra, assentados, posseiros (famílias que ocupam um pedaço de terra e passam a viver e trabalhar nesse chão) e meeiros (possuidor de metade dos bens do falecido, mas não em decorrência do falecimento, e sim, pelo regime de bens adotado na união).

O aumento do número de ações de ocupação e retomada de terras foi devido principalmente à mobilização dos sem-terra, responsáveis por 76% dessas ações no ano de 2023. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), os sem-terra protagonizaram 54% dessas ações e os indígenas 16%, segundo a CPT. O MST também foi o movimento social que mais promoveu manifestações. Em 2023, foram registradas 657 manifestações, das quais aproximadamente 77% foram protagonizadas por sem terra (322), povos indígenas (150) e quilombolas (36).

Reportagem produzida por Mariana Brandão e Karenn Rodrigues sob a supervisão da professora Fernanda Sanglard.

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