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Homem branco usando uma camisa preta com um microfone na mão esquerda, em pé com um fundo com o nome da palestra do JFest
Matheus Leitão em palestra no JFest na PUC Minas / Créditos: Luis Siqueira

Matheus Leitão: Em nome da memória 

Em visita à PUC Minas, o jornalista contou sobre sua trajetória profissional, as lutas familiares e os desafios da carreira

Com jeito tímido e apressado de quem estava já em cima da hora, ele adentrou a unidade São Gabriel da PUC Minas com o olhar de quem estava ali para falar, mas temia que pudesse ser pesado demais o que tinha para dizer. Alto e altivo, o peso das memórias de família que carrega não foi suficiente para envergá-lo. Pelo contrário, parecem tê-lo fortalecido, ainda que tenham deixado marcas que permanecem. Com 46 anos, o jornalista Matheus Leitão veio à PUC justamente para falar de tais marcas.  

Era uma tarde de segunda-feira quando entrevistamos o Matheus no estúdio do Laboratório de Vídeo do São Gabriel. Quando chegou, primeiro passou na sala do Marco/Colab, conheceu o trabalho realizado e se surpreendeu com o fato de ainda ser produzido um jornal impresso, ainda mais com a longevidade do Marco, de mais de 50 anos. Naquele 13 de maio, Matheus veio à PUC Minas São Gabriel para falar no evento JFest, e repetiria a fala no dia seguinte, na unidade Coração Eucarístico. Na edição deste ano, o tema central do evento foi a memória dos 60 anos do golpe civil-militar de 1964, e ele topou gravar uma entrevista antes. 

Filho de Míriam Leitão e Marcelo Netto, ambos jornalistas, Matheus convive no meio desde que nasceu. Por isso, a primeira pergunta não poderia ser outra a não ser questionar se ele sempre enxergou o jornalismo como um caminho natural, ou se teve algum ponto de virada. Matheus respondeu que a princípio queria ser biólogo, mas, ao observar a rotina de sua mãe após chegar do trabalho, suas histórias, as coberturas de seu pai e vendo seu irmão mais velho, Vladimir Netto, também se tornando jornalista, não teve outra opção a não ser aceitar o chamado da profissão tão presente na família. O irmão mais novo, João Pedro Netto, por parte de pai, também seguiu na carreira.

Diferenciando-se do irmão mais velho, Matheus não assina profissionalmente o sobrenome do pai. Conta que quis homenagear a mãe e, por isso, optou por usar ‘Leitão’. Quando relembra de sua trajetória, nega que ser filho de renomados jornalistas possa ter facilitado algo no caminho. “Não nos ajuda em nada, só dificultava para mim e para meu irmão. Tínhamos que trabalhar mais.” 

O elo com a mãe e o pai, tatuado no braço e representado por uma máquina de escrever, materializou-se profissionalmente em diversas circunstâncias, mas em 2013 foi de modo especial. Matheus e Miriam foram finalistas no Prêmio Esso, que era um dos mais importantes e tradicionais prêmios de jornalismo do país, descontinuado em 2016, após 60 anos ininterruptos. Concorrendo à categoria “Meio Ambiente” e “Melhor Contribuição à Imprensa”, mãe e filho, respectivamente, conquistaram algo inédito. Foi a primeira vez que mãe e filho venceram juntos na mesma edição do Esso. Ele já havia sido finalista cinco vezes e ganhado o prêmio em 2003, com uma série de reportagens sobre a Guerrilha do Araguaia, enquanto Míriam – uma das mais premiadas jornalistas do país – ainda não tinha somado tal honraria à lista. No ano em que os dois foram finalistas juntos, receberam o prêmio também juntos, e ele dedicou o prêmio a ela.

Assim como seu pai, também foi integrante do movimento estudantil. Mas, diferentemente dos tempos de ditadura, em que o movimento era mais politizado e atuante politicamente, ele recorda que no Centro Universitário de Brasília, onde cursou jornalismo, suas atribuições eram voltadas a manter contato com outras universidades e entidades estudantis, a fim de organizar movimentos, atos e eventos. 

Início de carreira

Começou a carreira trabalhando como repórter policial no Correio Braziliense, no ano 2000. E, desde então, passou por veículos como a Revista Época, Folha de S. Paulo, portais iG e G1. Atualmente é colunista na revista Veja. Cobriu diversas editorias, mas seus principais trabalhos cobriram direitos humanos e política, sempre focado naquilo que o marca antes mesmo de nascer: A ditadura militar.

Para Matheus, era quase natural perseguir e investigar o tema. Durante sua trajetória, foram inúmeras publicações sobre os anos de chumbo. Entre as passagens e os conteúdos marcantes estão a atuação como uma espécie de “setorista” de assuntos envolvendo a ditadura militar no Correio Braziliense. Em 2003, junto de Eumano Silva e Thiago Vitale Jaime, também jornalistas, publicaram conteúdos inéditos sobre os documentos da Operação Mesopotâmia, sobre a tentativa de localizar e deter indivíduos considerados “subversivos” para a ditadura militar, na região onde hoje ficam os estados do Maranhão, Tocantins e Pará. Posteriormente, em 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade anunciou a localização dos restos mortais do militante e então desaparecido político Epaminondas, Matheus foi referenciado pela contribuição com os trabalhos devido à reportagem feita 11 anos antes. Também em 2014, a série “Os arquivos ocultos da ditadura”, publicada em 2013 no jornal Folha D. São Paulo em parceria com o também jornalista Rubens Valente, rendeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog. 

Matheus Leitão fala no JFest especial sobre os 60 anos do golpe militar / Créditos: Rodrigo Calcagno

Em Nome dos Pais

Mas a grande obra da carreira de Matheus Leitão é o livro que conecta a ditadura militar, a história de sua família e de sua própria vida: Em Nome dos Pais. O enredo da obra, que depois virou peça de teatro, documentário e filme, é a história de Míriam Leitão e Marcelo Netto, presos e torturados durante a ditadura militar. Mas também é a história de Matheus, que durante os 17 anos de apuração para produzir o livro, realizou uma busca incansável pelos algozes de seus pais, e ficou frente a frente com eles. Os desafios de contar uma história sobre a ditadura em um país tão pouco afeito a lembrar de seus períodos mais nefastos consiste na dificuldade documental. Ao contar a trajetória de seus pais, Matheus não só resgata o legado de sua família, mas de todos aqueles filhos, pais, mães, avós, tios e tias, que, por causa do regime autoritário, nunca tiveram respostas sobre seus entes queridos. Em Nome dos Pais é sobretudo em nome da memória. 

Ele explica que começou a investigar crimes do regime autoritário por conta da indignação em relação a todos que lutaram contra a ditadura e não viram o Estado responder sobre os crimes imprescritíveis cometidos na época. O livro Em Nome dos Pais traz a resposta que ele sempre buscou: quem eram os algozes que torturaram seus pais.

Produção: LabSG/Cristina Lacerda

O jornalista diz que o estopim para investigar mais sobre a narrativa foi uma reportagem que fez sobre uma mulher que havia sido torturada grávida durante a ditadura militar. A semelhança do caso com a história da própria mãe, que também passou pela mesma situação grávida de seu irmão, Vladimir, causou uma angústia em Matheus, que a partir daquele momento não poderia mais ignorar seu chamado, começando assim a busca pela memória de sua família. A reportagem sobre a mulher foi intitulada de “Torturado antes de nascer”, o mesmo nome foi dado ao capítulo 12 de seu livro, em que conta a versão de sua mãe e seu irmão. 

Mesmo após o inícios das investigações, Matheus conta que a maioria das coisas que descobria ficavam guardadas, pois o conflito entre o pessoal e a ética da profissão jornalística  sempre o atormentava. Foi somente em 2011, quando ingressou na Universidade de Berkeley, nos EUA, para estudar no núcleo de jornalismo investigativo, que Matheus teve contato com Lowell Bergman, notório jornalista investigativo americano e que comandava o núcleo na universidade. Ele apresentou a Matheus o conceito de self-journalism (ou self-media), que pode ser entendido como um jornalismo produzido em primeira pessoa, misturando o fato e a informação com a descrição do processo empírico do jornalista. Matheus conta que Bergman o incentivou bastante a produzir um livro sobre toda a investigação da história de seus pais e, a partir disso, quando voltou dos EUA, já estava decidido a produzir a obra.

O processo foi longo. Matheus já investigava a vida dos pais desde 2004. Mas entre 2012 e 2017, ano de lançamento do livro, atuou com o intuito de reunir tudo que havia apurado em uma única obra. A produção foi feita de maneira minuciosa, cada entrevista, documento e pessoa ouvida, toda a construção da linha narrativa do livro, havia cuidado com cada palavra escrita. Para Matheus, escrever sobre os torturadores de seus pais era algo que ele não poderia errar.

Durante essa execução da escrita, Matheus conta que o legado dos jornalista com que trabalhou no decorrer de sua carreira o ajudaram muito, a alta exigência de figuras como Ricardo Noblat, Melchiades Filho, Eumano Silva e Ana Dubeux foram cruciais: “Isso obviamente que reflete a minha preocupação também, sobre escrever um livro que mexe com questões tão pessoais minhas, próximas, mas também é um resultado desse trabalho que esses chefes de jornalismo fizeram comigo, eles tiraram tudo de mim, eles tiraram tudo de mim, tudo, tudo, tudo. É impressionante. Eu vivia para isso, para fazer jornalismo.”

A longa jornada de Matheus valeu a pena. O livro Em Nome dos Pais se tornou um sucesso editorial, com mais de cem mil exemplares vendidos até o momento e adaptações para outros formatos. Mas o mais importante para Matheus talvez tenha sido a forma como se conectou ainda mais com a história de sua família, com sua história, para de certa forma, fechar uma ferida que havia sido aberta há décadas, desde aquele três de dezembro de 1972, a data em que seus pais foram presos.

Matheus Leitão com seus livro Em Nome dos Pais / Créditos: Luis Siqueira

Porém, nem tudo são flores. Durante suas investigações, Matheus havia percebido que os filhos e netos dos torturadores da ditadura militar, se encontravam nos dias atuais ligados ideologicamente com a ascensão da extrema-direita no Brasil e devotos a um certo líder, que posteriormente se tornaria presidente do país, Jair Bolsonaro. Matheus previu os novos ares autoritários que estavam chegando, mas com o lançamento do livro um anos antes das eleições que mudariam o rumo do país e também pela sua própria atuação como jornalista política, ele se tornou um alvo de perseguição.

Após as eleições de 2018, sofreu diversos ataques feitos pelo então presidente, que afetaram diretamente sua vida pessoal. “Sou de uma linha cristã protestante e me afastei após os próprios membros da Igreja falarem que eu era comunista”, conta. Vivenciou uma separação conjugal também por questões políticas. Matheus  viveu momentos de tensão no governo Bolsonaro, o que considera ter sido muito desgastante tanto na vida profissional quanto na vida pessoal.

Ele (o ex-presidente) me colocava como um inimigo

Matheus Leitão – jornalista

Os ataques contra Matheus e sua família continuaram durante a gestão Bolsonaro, o que marcava uma tendência de perseguição a profissionais de imprensa no país. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que realiza monitoramento anual, registrou um crescimento exponencial no número de casos de ataques durante os quatro anos de governo, com aumento de 54% em 2019 (primeiro ano de gestão Bolsonaro) e chegando ao ápice em 2021, com 430 casos, maior pico registrado pela Fenaj desde que a série histórica começou, em 1990.

Essa tendência foi endossada pelas próprias figuras da política institucional brasileira, o que encorajou seus apoiadores a fazerem o mesmo. Ao falar sobre esse período sensível para os jornalistas no Brasil, apesar das ameaças e ataques sofrido publicamente e nas redes, Matheus reconhece que se encontra em uma posição de privilégio, por ser um jornalista notório que atua na capital federal. Ele alerta que os profissionais que mais necessitam de respaldo das autoridades são os que atuam nas regiões do interior do país. 

Desinformação

Produção: LabSG/Cristina Lacerda

Para combater as fake news no país, o jornalista defende a regulação das redes sociais para impedir o avanço da desinformação. Ele critica a decisão do Congresso brasileiro de engavetar o PL 2.630, que propunha medidas de normatização da internet e das redes, e alerta para os perigos das fake news na próximas eleições: “A gente tem que lutar para que haja uma regulamentação das redes sociais no Brasil. Essa situação, ela é dramática, não só do ponto de vista pessoal, mas do ponto de vista da democracia brasileira, porque nós estamos falando de eleições. Elas, as fake news, são capazes de mudar o curso de uma eleição.”

Por fim, Matheus diz temer o que pode vir a acontecer no cenário político brasileiro, assim como o fez quando falou sobre a chegada da extrema-direita no poder: “Ainda fico achando que o pior ainda está por vir, que eu acho que a próxima eleição [2026] vai ser a pior eleição de todas, vai ser pior que a de 2018. Mas essa é só uma impressão minha, é um sentimento que tem ficado em mim com tudo que eu tenho visto na cobertura de Brasília que eu faço diariamente com a minha coluna”.

Esta entrevista foi produzida por Davison Henrique e João Augusto, com acompanhamento e edição da jornalista e professora Fernanda Sanglard

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