O hábito da leitura gera conexão entre leitor e obra pela identificação gerada com a literatura. Esta relação pode ser tão profunda que a literatura também é usada como uma forma de terapia, a chamada Biblioterapia. Apesar de agregar diversas matizes, “pesquisadores sempre concordaram que se trata de uma alternativa de cura que se utiliza da leitura para contribuir no restabelecimento de pessoas que passam por dificuldades físicas ou psicológicas”, conforme explicam Alexandre Oliveira de Meira Gusmão e Elaine Gleice Jerônimo de Souza em artigo publicado no Investigación bibliotecológica.
O psicólogo, professor e tradutor Bruno Alvarenga Souza, doutor em Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) , comenta o tema a partir da perspectiva da comunidade de profissionais da saúde mental: “A maioria demonstraria apreço pela literatura ou, ao menos, reconheceria sua importância como forma de conhecimento do mundo, algo capaz de iluminar os problemas humanos de um modo diverso daqueles da ciência, da filosofia e da religião”.
Porém, ele analisa que a tendência dos profissionais é indicar livros que, para eles, ilustram o caso clínico ou se alinham à sua teoria de estudo favorita, o que pode não ser a melhor alternativa. “Isso ignora todo o potencial da arte, que é a de dizer algo sobre o Real, sobre o mundo e o homem, que não pode ser dito de outro modo. De modo geral, os profissionais da saúde mental não têm utilizado a literatura como ferramenta clínica complementar, mas como um espelho de decoração para suas teorias e práticas próprias. Há exceções, claro, mas tendo a acreditar que elas se dão apesar do exercício da profissão de psicólogo, psicanalista e psiquiatra, e não a partir dele”.
No tratamento, a escolha do livro é feita de acordo com o gosto do paciente, para que se conecte com a obra a partir de suas questões e, a partir do desenrolar de algo que se identifique, o leitor é levado a uma catarse. Bruno Alvarenga explica: “Aristóteles chamava essa resposta emocional de catarse, pensando no efeito que as tragédias encenadas no teatro causavam no público grego. Ao se identificar com os personagens e com as situações representadas em um livro, filme ou peça de teatro, o espectador ou leitor experimenta emoções como medo, pena, paixão etc. de forma intensa, quase como se também as vivenciasse por si mesmo. Através dessa vivência emocional, o consumidor de arte passa por um processo de liberação e alívio dessas emoções, resultando em uma forma de purificação, ou melhor, purgação psicológica”, explica.
Além deste efeito, o leitor pode se apropriar da percepção de algum autor a partir de seu estilo. Alvarenga comenta que, para ele, “a principal contribuição da literatura, do cinema, da pintura etc. para o ser humano é dotá-lo de ferramentas e preceitos éticos e estéticos que o permitam transformar sua própria vida em obra de arte”.
A literatura na terapia
Bruno Alvarenga apresenta uma maneira de utilizar a literatura na terapia, sem reduzi-la a um “mero instrumento lúdico”: empregá-la como uma ferramenta para promover o que Michel Foucault chama de estética de si. “Foucault discute que o ser humano tem a capacidade de transformar sua própria vida em uma obra de arte, não apenas de forma passiva, ao reagir às circunstâncias do mundo, mas de maneira ativa, por meio da construção deliberada da própria subjetividade”. Ainda segundo ele, a literatura, nesse contexto, pode atuar como um meio de reflexão, permitindo que o indivíduo adote uma posição crítica e criativa em relação a si mesmo e ao seu entorno.
Ao invés de ser usada apenas para promover identificação com personagens ou emoções, a literatura poderia ser proposta como um espelho criativo, no qual o paciente reflete sobre o modo como vive e constrói sua vida. Explica Alvarenga: “O foco não estaria em interpretar obras literárias de maneira clínica ou em aplicar teorias psicológicas a elas, mas, sim, em incentivar o paciente a tomar o que a literatura oferece – seus dilemas, escolhas estéticas e éticas, e formas de expressão – e utilizá-los para moldar sua própria maneira de viver, segundo seus próprios valores e desejos”.
Assim, segundo o psicólogo, ao trazer a literatura para a terapia, o profissional não estaria dizendo ao paciente “este personagem é como você”, mas, sim, incentivando o paciente a construir sua própria narrativa de vida. Alvarenga explica que o objetivo seria fomentar uma postura de autorreflexão criativa, onde a leitura se torna um ponto de partida para um trabalho contínuo de autoformação, guiado pela estética de si. “Desta forma, a literatura deixaria de ser apenas uma ilustração de problemas psicológicos e passaria a ser um recurso para a transformação ativa da vida, sem ser aprisionada em interpretações rígidas e sem perder sua potência criativa e emancipatória”.
Mas qual o papel da literatura?
O presidente da Academia Mineira de Letras, Jacyntho Lins Brandão explica que a literatura não se destina a uma função como dever, apesar de exercer diversos papeis. “A literatura não precisa ensinar, falar de política ou defender tese, ela é do campo da ficção e não está isolada do mundo, mas não está induzindo um determinado entendimento”. Segundo ele, as produções são feitas em um espaço e tempo, refletem elementos reais e se relacionam a eles, mas não é incubida de algum encargo.
“O específico da literatura é trabalhar a dimensão estética [a palavra aqui é aplicada englobando todos os sentidos, não só o visual] e por isso também está no campo das artes. Trabalha com a dimensão poética, na medida em que o leitor que vai dar sentido àquilo, ele não tá dado”, explica o presidente.
A forma que estrutura o texto também é parte essencial do conteúdo literário, sendo, inclusive, um dos fatores que aproxima o leitor, a partir do interesse que tem e da exposição que é feita. Jacyntho Brandão exemplifica que a rima e o ritmo no poema são características essenciais: mesmo estando na dimensão sonora, fazem parte da literatura e isso também estabelece a relação da literatura com as outras artes, como o teatro e a música: “Essa dimensão estética é o contato que eu tenho com as obras literárias e como eu vou fruir com aquilo”, explica. Deste contato, surge o efeito catártico mencionado anteriormente pelo psicólogo Bruno Alvarenga.
Literatura e ressocialização de detentas
A professora aposentada da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas Maura Eustáquia de Oliveira, compartilha a experiência que tem trabalhando como voluntária no projeto de extensão da PUC Minas junto à Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC). Experiente em jornalismo investigativo, comunicação e literatura, Maura Eustáquia utiliza a literatura como apoio no tratamento das recuperandas de Belo Horizonte. “O objetivo é mostrar-lhes como a literatura antecipa a vida, a realidade, como ela pode nos servir como referência de vida, ou um caminho alternativo de expressão e/ou superação de fatos da vida real”.
Segundo ela, a proposta inicial era de desenvolver um programa de redação e interpretação de textos para ajudar as recuperandas da APAC desejosas de fazer o Enem. “No contato direto com elas, vimos que isto teria baixa utilidade, são poucas as interessadas e em condição de fazer o Enem, e fomos com elas em busca do novo caminho”, relata a voluntária. Maura Eustáquia explica que, além do ensino sobre narrativas e tipos textuais, as recuperandas são apresentadas a materiais literários que refletem o mundo sonhado, como contos, poesias, romances com “finais felizes”, com análise de preconceitos e valores morais, estéticos contidos nas narrativas.
Os textos são escolhidos a partir do interesse manifestado por elas nos encontros, comumente abordando violência doméstica, abuso sexual, relações de mães e filhos, marginalidade e também coisas bonitas como a natureza, sentimentos positivos e superação de problemas. “As reações são incríveis. Elas vão mais fundo nas interpretações do que muitos alunos da faculdade, pela maior experiência de vida, pelo prazer de ‘entrar’ no pensamento e possíveis intenções do autor. Surpreendem-me às vezes. Em geral, ficam empolgadas quando os textos rebatem em suas vidas”, compartilha Maura.
Ela menciona, ainda, que, com a prática da leitura, elas também são convidadas a escrever histórias, ao contrário das que analisam, paralelas, ou que aproveitam incidentes das próprias vidas. Quem não quer escrever pode elaborar e contar oralmente suas histórias. “Elas gostam de ler e têm razão prática para fazê-lo: cada livro lido e interpretado pode resultar em dias de remissão de suas penas. E elas gostam mesmo dos trabalhos que fazemos com os textos”.
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