Segundo o presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Bernardo Gurbanov, há aproximadamente 10 anos o setor editorial brasileiro vem passando por uma crise que é resultado de vários fenômenos. Mas o principal fator é a estratégia das grandes empresas de derrubar os preços para eliminar a concorrência.
Nesse processo, o lucro é sacrificado ao máximo possível. E é claro que a conta dessa manobra chega. Foi o que aconteceu com grandes livrarias do Brasil, como Saraiva e Cultura, que tiveram que pedir recuperação judicial para tentar balancear as contas.
A quebra dessas empresas afetou todo setor. De acordo com Gurbanov, em 2019, o mercado editorial sentiu uma tímida recuperação, mas, com a pandemia, entrou em alerta novamente.
“Nos primeiros meses, o impacto foi quase paralisante. As vendas caíram cerca de 80% e era difícil vislumbrar alternativas de adaptação”, diz. Mas, com o passar dos meses, assim como em outros setores da economia, livrarias e editoras começaram a procurar formas de se reerguer.
No mercado digital, livreiros adaptaram as formas de vender seus produtos. “O setor passou a incrementar sua participação no e-commerce. Os que tinham, fortaleceram. E os que não tinham, investiram para poder ter, pois era a saída imediata”, diz Gurbanov.
Ajuda a pequenos empreendimentos e livrarias
Impulsionado pelas vendas online, o setor vem gradualmente se recuperando. De acordo com ANL, setembro de 2020 fechou com crescimento de 10,6% no faturamento em relação com mesmo mês do ano anterior.
Etiene Martins, proprietária de uma livraria especializada em literatura negra no centro de Belo Horizonte, diz que o início da pandemia foi um período complicado e que foi necessário recorrer às redes sociais. Mas ela se surpreendeu com o resultado, atraiu novos clientes e ampliou as vendas. Ela conta que além de fazer parceria com um entregador local para atender toda BH, ela ampliou seu público ao começar a vender para o Brasil inteiro pela internet.
A estudante Bruna Andrade, 22 anos, diz que, com o passar dos meses da pandemia, seu gasto com livros realmente aumentou. “Quando estava tendo aula presencial, eu tinha que gastar com lanches e transporte. Agora, em casa, com o tempo e dinheiro livre, acabo encontrando outros meios de gastar e, geralmente, são livros”.
Vendas online e a concorrência com os grandes do e-commerce
Para Bernardo Gurbanov, o mercado editorial está caminhando para um modelo híbrido de negócio, que consiste em atuar tanto em lojas físicas quanto no ambiente digital. Na avaliação dele, o fenômeno, que já estava acontecendo, foi impulsionado pela pandemia.
O meio digital oferece para as livrarias a vantagem de não ter fronteiras geográficas, nem exigir a manutenção de grande acervo físico, o que possibilita que empresas expandam seus horizontes de negociação. Mas, se por um lado, o pequeno e médio proprietário podem oferecer seus produtos para um público mais abrangente, por outro, é inserido em um ambiente de concorrência não apenas com negócios do seu setor, mas também com gigantes nativas do meio digital, como a multinacional Amazon e a nacional Submarino.
Essas empresas geralmente oferecem produtos (livros incluídos) com preços baixos, promoções competitivas e condições facilitadas de entrega. Para a estudante Bruna Andrade, que mora na região Norte de Belo Horizonte, a principal razão para comprar nesses sites está relacionada à entrega. ”Não vale a pena comprar alguma coisa se o frete é duas vezes o valor do produto”, comenta ela.
Na opinião de Gurbanov, para manter esses preços e condições, as empresas trabalham com práticas no limite da legalidade. “É uma condição de concorrência absolutamente desigual e que, na minha opinião, em certos casos, caracteriza abuso de poder econômico”, explica o presidente da ANL.
Para Gurbanov, que também é dono de uma livraria especializada em livros em espanhol, a saída é procurar entregar um serviço especial. Foi o que fez Etiene Martins ao se especializar em literatura negra. Ela diz que a estratégia é procurar conhecer mais a fundo as obras, para melhor apresentá-las aos clientes e também trabalhar com obras que outras empresas não têm no catálogo.
“O público está tomando consciência da deslealdade dessas empresas e se recusando a comprar nelas. Ou compra apenas quando não há outra opção” – Etiene Martins.
Por também trabalhar com um segmento de nicho, Etiene conta que seu público não vê a livraria apenas como um espaço de compra e venda, e que eles buscam fugir das grandes empresas de e-commerce, dando preferência a empreendimentos que provoquem impacto social, como é o caso da livraria dela, que privilegia autores negros e é voltada para a população negra.
Esse é o caso da estudante Luíza Dias, 21 anos, que procura priorizar pequenas livrarias e as compras direto das editoras independentes, optando por grandes sites de e-commerce apenas em ocasiões como promoções ou quando o valor para investir em livros não é muito alto.
“Entendo que, geralmente, custa mais caro não comprar em sites virtuais e, em um país como o Brasil, em que o custo do livro é elevado, isso acaba pesando mais na escolha. Mas, a longo prazo, isso prejudica os pequenos negócios e editoras independentes”, avalia a estudante.
Luiza tem perfis em redes sociais focados em falar sobre livros, e conta que é um “trabalho de formiguinha” conscientizar o público sobre como o “barato hoje pode sair muito caro amanhã”. Luíza diz que faz sua parte divulgando promoções de editoras e livrarias pequenas e compartilhando publicações de quem pode falar com propriedade sobre o assunto.
“Algumas editoras e pequenas livrarias têm informações concretas sobre o movimento predatório dos grandes e-commerces. Ler e se informar a respeito pode fazer com que as pessoas tenham mais consciência. Mas, é claro, é preciso haver interesse por parte do consumidor para alterar seu perfil de consumo que, devido a grandes promoções e facilidades, tornou-se condicionado”.
Luíza Dias
Eventos literários suspensos
A pandemia trouxe outro desafio para o mercado editorial: a necessidade de suspensão ou cancelamento de eventos literários. Devido às medidas de segurança, a maioria dos eventos literários do país não ocorreram ou precisaram ser adaptados ao modelo virtual.
A Bienal do Livro de São Paulo, por exemplo, que atrai público de aproximadamente 600 mil pessoas em cada edição, só acontecerá novamente em 2022. Alguns foram organizados de forma online, como a Flipop, promovida pela editora Seguinte (selo jovem da Companhia das Letras). A já tradicional Feira do Livro da USP também está online este ano, com descontos de até 50% até o dia 15 de novembro.
Mas, para Gurbanov, no aspecto econômico, o modelo online não substitui os eventos presenciais. Ele ressalta principalmente a importância das feiras de livros.
“Muita gente que frequenta feiras de livros não tem o hábito de ir em livrarias. Em muitas cidades, nas quais anualmente, ocorrem as feiras literárias, as pessoas esperam por estes eventos, guardam dinheiro”, afirma Gurbanov.
Segundo dados do IBGE, apenas 17,7% da cidades brasileiras têm livrarias, então, para as empresas, participar dessas feiras é quase como ter uma filial itinerante nessas cidades.
A livreira Etiene conta que sua empresa surgiu a partir de feiras de livros. Antes de abrir a livraria em um local fixo, ela trabalhava na Prefeitura de Sabará e completava sua renda vendendo livros em feiras e festivais. Com o aumento da demanda ela largou seu emprego para começar seu próprio negócio. Mas, mesmo com a loja física, os eventos itinerantes continuavam fazendo parte da renda da livraria antes da pandemia.
Popularização de produções literárias independentes
Um fator que vem ganhando destaque no mercado editorial nos últimos anos é o crescimento de autores e editoras produzindo de forma independente. No caso das editoras, elas buscam trazer linha editorial e projeto gráfico que se diferenciem do modelo de produção em massa das editoras convencionais.
A Editora Wish, fundada em 2013, tem como proposta lançar clássicos raros no país, geralmente através de financiamento coletivo. Só este ano a editora já conseguiu publicar quatro livros e tem a previsão de mais um até o fim do ano. Nem a pandemia afetou diretamente as vendas, já que o modelo de negócio da empresa sempre se pautou em vendas pela internet. Mas mesmo assim, em abril, a editora se adiantou a possíveis crises e lançou um projeto de assinaturas digitais garantindo assim o salário dos funcionários.
A estudante Luíza Dias é grande entusiasta de editoras independentes. Segundo ela, além de produtos com mais qualidade, as pequenas editoras oferecem um tratamento diferenciado ao consumidor e geralmente estão abertas a ouvir os clientes.
“Eu vejo muitas pessoas reclamando (e eu estou inclusa!) de editoras convencionais. [As reclamações variam] desde a qualidade do papel às traduções. Penso que, como editoras independentes buscam se destacar no mercado, há maior cuidado com o produto, para que agrade o maior número de leitores, resultando no crescimento dessas editoras”, aposta.
Ela também fala da importância de comprar diretamente com essas editoras, pois, além do fator econômico, auxilia os editores a entenderem o perfil dos leitores que eles atraem e serve como termômetro para próximos lançamentos.
Valquíria Vlad, uma das editoras da Wish, diz que as vendas são preferencialmente pelo próprio site da editora e que raramente distribui livros em outros canais de vendas de e-commerce, pois, segundo ela, o retorno financeiro é menor. Mas, por outro lado, além de pagarem adiantado, há um fluxo maior de cliente em grandes sites, o que pode atrair novos leitores.
Os dois lados da independência
Os autores independentes costumam trabalhar sozinhos cumprindo todas as etapas do processo, desde escrever até publicar o livro, sendo ele em formato físico ou digital. Maria Freitas, que publica de forma independente desde 2017, conta que muitas vezes produz tudo sozinha e que, apesar de ser muito trabalho, isso lhe dá mais autonomia. “Você tem toda liberdade para tomar a decisão que quiser, mas vai ter todo o trabalho para sustentar essas decisões”, ela ressalta.
Maria explica que um dos fatores que auxiliam na popularização de histórias independentes é a proximidade entre autor e leitor. Leitora de produções independentes, Bruna Andrade vê essa proximidade como uma faca de dois gumes, pois, apesar de ter maior facilidade para entrar em contato com o autor, os produtores das obras também têm facilidade de entrar em contato com o leitor.
“Já aconteceu diversas vezes comigo de dar uma nota baixa pra um livro e vir o autor me perguntar o motivo. Eu acho isso bem constrangedor”, conta. Mas apesar disso, Bruna acha gratificante apoiar autores independentes e ter acesso a histórias que a represente.
Essa busca por narrativas que representam um público específico é um dos principais caminhos para atrair leitores. Esse é um tópico recorrente nas campanhas de divulgação das obras. As campanhas demonstram que o autor da obra faz parte de uma minoria social específica, e, que, portanto, o enredo será representativo de determinada minoria.
Segundo Maria, para muitos grupos minoritário, publicar de forma independente é a única forma de ter suas histórias contadas. Por isso, ela diz ser importante criar uma rede de apoio entre autores, independentes ou não, para que haja fortalecimento desse setor, possibilitando assim que mais vozes marginalizadas ganhem espaço.
Para quem está pensando em começar de forma independente, Maria deixa uma dica:
“Acredite no que você está fazendo. Na importância das suas histórias. Na força que elas têm. Tem muita gente nesse mercado, muita crítica, muito trabalho a ser feito. Você precisa ter uma base firme. E essa base, pelo menos para mim, é a fé que eu tenho nas minhas histórias. No fim das contas, o que sustenta todo artista é a arte em si”.
Maria Freitas, autora.
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