As dificuldades e problemas no início do período pandêmico cessaram o funcionamento de praticamente todos os setores do país. Tratando-se do âmbito cultural, milhares de pessoas que dependem do trabalho no setor ficaram desamparados e bastante tempo sem poder exercer a profissão, já que teatros, shows, circos, concertos e outras formas de expressar a arte ficaram temporariamente fechados.
A deputada Benedita da Silva (PT) teve a iniciativa de criar o projeto de lei conhecido como: Lei Aldir Blanc – também denominada Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural ou Lei Aldir Blanc de apoio à cultura, Nº 14.017 de 29 de junho de 2020. A Lei permitiu a realização de trabalhos como o da cantora e professora mineira Leopoldina Azevedo. No fim de 2021, ela lançou o álbum Semente Crioula, gravado em 2018. O lançamento ocorreu com incentivos da Lei Cultural Aldir Blanc, que permitiu a realização de trabalhos no setor cultural no contexto da pandemia.
A arte bate no meu coração. Eu acho que é uma coisa que me faz enfrentar todos os problemas, porque se eu sinto ela, eu também sinto que existo”.
Leopoldina Azevedo
A arte como sinônimo de vida
Nascida em Campos Gerais, Leopoldina Azevedo, além do lançamento do álbum Semente Crioula, a partir da lei, lançou, também, vídeos com letras – lyric videos – no YouTube, das músicas Orvalho, Girassóis e O Que Eu Tenho Pra Te Dar. Já a música Morena Faceira virou clipe – o primeiro postado pela cantora em seu canal na plataforma.
Semente Crioula surgiu, segundo ela, a partir da busca de coisas novas, da mistura de mundos, da compreensão de vida e da ancestralidade que cada um leva consigo. A cantora conta que todo o processo inicial do álbum foi realizado por ela, desde as letras, canções e início das gravações. No entanto, ainda existia uma grande parte, com um alto valor, para que o projeto fosse finalizado. Ela, que já conhecia os processos de leis de incentivo à cultura, enviou, então, seu disco para aprovação de recursos por meio da Lei Aldir Blanc.
Foi muito bom ter sido contemplada porque eu consegui fazer a arte do disco, finalizar mixagem e fazer a divulgação de um lançamento online”.
Leopoldina Azevedo, cantora
Leopoldina conta que a lei foi um diferencial durante a pandemia de COVID-19, momento em que artistas foram limitados no trabalho e tiveram que se reinventar por muito tempo para o sustento próprio. Para ela, essas leis são uma base para o artista independente, já que por meio delas é possível a viabilização do projeto. Mas a cantora enfatiza, também, as dificuldades de fazer arte, principalmente, desde o início da pandemia. “Eu acho que bem antes a gente poderia ter sido mais amparado… Até a lei chegar aqui, foi difícil”.
Ela diz que, além do principal desafio – a necessidade de isolamento social e o auge de uma pandemia – houveram outros impasses para as pessoas que trabalham com arte em todo o país. Desemprego, ascensão das doenças mentais, embargos do atual governo para a desaprovação da lei emergencial, tornaram a situação ainda mais preocupante. Leopoldina enfatiza, também, que esses desafios foram fortes a todos os envolvidos no setor cultural. “Quando estamos ali na frente, não é só o artista que está mostrando o seu trabalho, existe uma cadeia de produção. Pessoas que trabalham em filmagem, os técnicos, divulgação, assessoria”, reforça a cantora.
Leopoldina conta que o pai foi uma das quase 700 mil vítimas da doença, em 2021, e se emociona ao lembrar que a música Girassóis foi escrita pensando nele. Com seus 20 anos de carreira, questionada a respeito da cultura na sociedade atual, a cantora reflete sobre o descaso do governo com a importância da música no cenário, principalmente, político. “A música traz convivência e diálogo, desperta para o novo e faz a gente conviver com o diverso. Por isso, ela é tão enfrentada em regimes autoritários”. Leopoldina luta diariamente pela defesa da cultura e na crença de novos incentivos para que políticas públicas que envolvam a arte cheguem cada vez mais até as pessoas.
Confira o clipe da música Morena Faceira de Leopoldina
Das raízes históricas às conexões contemporâneas
Riqueza cultural, para os mineiros, é ter o privilégio de dizer que a construção de hábitos, produções e referências do estado é alicerçada em uma trajetória de fortes heranças históricas, mas também de vinculações contemporâneas. O estado, com 854 municípios e cerca de 21 milhões e meio de pessoas, se reveste das influências africanas, italianas, portuguesas e indígenas, mas, para além disso, se apropria da manifestação artística e cultural moderna.
De Carlos Drummond de Andrade a Felipe Arco – poeta mineiro que viaja pelo Brasil espalhando seus versos em espaços da cidade -, de elementos arquitetônicos das cidades históricas como Ouro Preto e Tiradentes ao acervo do Museu de Inhotim – em Brumadinho -, das danças folclóricas e da Folia de Reis ao Funk de BH, de Ary Barroso a Djonga, bem como de Clara Nunes a Marina Sena. Minas Gerais sabe bem a riqueza que tem. “A potência da sua identidade cultural para o Brasil, a faz respeitada e admirada”, segundo José Márcio Barros, doutor em Comunicação e Cultura, coordenador do Observatório da Diversidade Cultural (ODC) e professor da PUC Minas.
Sobre a riqueza da cultura mineira para nós, brasileiros, José Márcio ainda completa: “os processos de formação da cultura mineira a partir da ocupação do território, dos fluxos migratórios e das trocas culturais, fizeram com que Minas Gerais configurasse uma cultura que simultaneamente é tradicional e contemporânea, uma cultura de raiz mas também de muitas antenas e conexões”.
De fato, o patrimônio cultural de Minas tem uma vitalidade preciosa, mas o que fazemos
nós, usufruidores destas experiências, para conseguir sua proteção? Um grupo de pesquisas
com mais de 20 pessoas, fundado em 2005, com o nome de Observatório da Diversidade
Cultural, soube bem como agir. Eles buscam, através de publicações em revistas, reunir estudos
e análises sobre não só como a pandemia afetou a cultura e a diversidade mineira, mas também
a de outros estados, capitais e cidades interioranas. Nesses periódicos, esses pesquisadores
apresentam como a Lei Aldir Blanc impactou o meio cultural desde sua criação.
O coordenador do ODC, descreve como foi a experiência do grupo em trazer a análise
da gestão cultural, baseada na LAB, para o território mineiro:
Aqui em Minas Gerais, os critérios utilizados pelo órgão gestor de cultura procurou atender às diferenças, e por vezes, desigualdades entre os diversos setores culturais, como também entre os diferentes territórios culturais. Foram mais de 25 editais voltados às especificidades e múltiplas capacidades de gestão cultural. Foi uma experiência muito interessante”.
José Márcio Barros, do Observatório da Diversidade Cultural
Clique aqui e confira a Versão 94 do Boletim Observatório da Diversidade Cultural, sobre a Lei Aldir Blanc, produzido em 2021
Muito além dos grandes centros: a Lei Aldir Blanc nos interiores de Minas Gerais
A diversidade cultural de Minas Gerais é contemplada de diversas formas. Assim como diz em seu próprio nome, Minas, das Gerais, é a tradução de toda a diversidade e riqueza do povo brasileiro em um único lugar. Minas são muitas em uma só e essa pluralidade cultural é um dos grandes diferenciais do estado. A Lei Aldir Blanc, nesse sentido, foi um dos instrumentos que possibilitou o fomento de iniciativas que reverberassem a grandeza dos artistas mineiros, tanto nos grandes centros quanto nas cidades interioranas.
Na cidade de Pavão, localizada no Vale do Mucuri, no nordeste mineiro, não foi diferente. O município foi um entre tantos do estado que foi contemplado com a lei. A cidade, que conta com pouco mais de 8 mil habitantes, promoveu uma série de ações por meio do Ponto de Cultura CEIA e da Secretaria Municipal de Educação, Esporte, Cultura e Lazer local. Os trabalhos desenvolvidos possibilitaram que artistas da cidade pudessem se manter ativos durante o período de pandemia de COVID-19.
O Centro Educacional para a Infância e Adolescência (CEIA) é uma instituição social que atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. A partir de 2011, o CEIA foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como um Ponto de Cultura e, desde então, atua com políticas locais de promoção e fortalecimento de atividades voltadas para a educação, a arte e a cultura. Em 2021, por meio de um edital específico para Pontos de Cultura, a instituição aderiu à Lei Aldir Blanc e desenvolveu uma série de ações locais.
Para Jandira Cangussú, coordenadora do Ponto de Cultura CEIA e responsável pela elaboração do projeto, a lei foi de grande importância para o fortalecimento da cultura local.
A Lei é importantíssima na dimensão de fomento, porque ela prevê que o recurso público chegue aos fazedores de cultura e, mais importante, chegue às políticas culturais de base comunitária. A política que trabalha a identidade, que trabalha a relação das pessoas com as suas histórias e suas formas de vida”.
Jandira Cangussú, coordenadora do Ponto de Cultura CEIA
Em Pavão, além de um programa de formação artística para crianças, o Ponto de Cultura CEIA também apoiou artistas locais do audiovisual na produção de documentários, promoveu o lançamento do livro “Cantos de Comunhão”, do mestre de cultura popular Durval Barbosa, de 101 anos, dentre outras ações de incentivo.
Apesar da relevância da lei em diversos aspectos, Jandira também pontuou que foi um
processo desafiador. “Elaborar sem encontrar, as pessoas estavam em isolamento, às vezes sem
telefone, umas moravam em fazendas, outras lutando com a pandemia em si, cuidando de seus
idosos. Sem contar as burocracias de uma lei nova. Como alcançar as maiores necessidades
naquele momento, que eram tantas, e dentro da legalidade?! A cidade pequena e o acesso a
internet nem sempre adequado para as reuniões virtuais, o tempo muito corrido… Tudo foi
desafiador na pandemia e a implementação da Lei Aldir Blanc não foi diferente.” pontuou
Jandira.
Mesmo com os desafios, a cidade foi muito beneficiada pela Lei Aldir Blanc. Além dos artistas, uma das classes mais atingidas durante a pandemia, que puderam trabalhar mesmo que em novos formatos, a comunidade também pôde desfrutar direta ou indiretamente das ações da Lei. O trabalho desenvolvido possibilitou que diferentes setores da cidade estivessem em diálogo e trabalhando, o que foi de grande importância para o desenvolvimento local e para a sobrevivência de pequenos empreendedores durante a pandemia. “Pensar um Ponto de Cultura é pensar que em cada cantinho do país, existe cultura. As pessoas ali estão fazendo arte, contando suas histórias e revivendo seu folclore, suas formas de vida, suas formas de ser. Para o interior isso é ainda mais importante, porque você cria possibilidades de interação de vivências com as pessoas da comunidade.” confirmou Jandira.
Como foi a implementação da lei em Belo Horizonte
A pandemia da COVID-19 e as medidas de isolamento social impactaram profundamente o campo cultural, o primeiro a ser prejudicado e um dos últimos a retomar em Belo Horizonte. A Lei Aldir Blanc, destinada ao setor cultural diante do estado de calamidade pública decretado pela União em função da pandemia, dispôs três frentes de apoio a esses trabalhadores.
A primeira categoria, chamada de Inciso I, foi disponibilizada pelo Governo Federal, com R$600,00 pagos por três meses consecutivos, após a realização de cadastramento junto ao governo. Já a segunda e terceira categorias ficaram sob a responsabilidade dos municípios. Belo Horizonte recebeu R$15,89 milhões previstos na lei para que fossem distribuídos entre os Incisos II e III.
Por meio de um cadastro feito na plataforma Mapa Cultural BH, 626 espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social puderam receber o apoio financeiro da lei pelo Inciso II. Em contrapartida, os mesmos desenvolveram atividades, atendendo prioritariamente alunos da rede pública.
Todos os artistas interessados em verbas relacionadas à aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos voltados à manutenção de agentes, espaços, iniciativas, cursos, produções, desenvolvimento de atividades de economia criativa e economia solidária, produções audiovisuais, manifestações culturais, bem como a realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais tiveram a oportunidade de receber auxílio ao se inscreverem em editais, chamadas públicas e prêmios, através do Inciso III. Mais de 1.350 agentes culturais foram beneficiados.
Histórico
Um comitê, criado em 13 de agosto de 2020 e formado por 23 integrantes, definiu as diretrizes, a estrutura de distribuição do orçamento e as regras de acesso. Em 25 de setembro de 2020 houve a regulamentação municipal e abertura/atualização de cadastros. Logo em seguida, no dia 16 de novembro de 2020, deu início ao repasse para beneficiários. R$ 15.664,00 foram distribuídos entre os Incisos II e III, onde R$ 6.720.000,00 foram repassados para o Inciso II e R$ 8.944.000,00 foram enviados para o Inciso III. Todos os artistas, espaços e empresas que foram habilitados foram contemplados.
Apesar do sucesso da lei em Belo Horizonte, que ajudou milhares de pessoas, o número de cadastros foi inferior ao esperado em ambos Incisos. De acordo com o balanço Lei Aldir Blanc, apresentado pela Secretaria de Cultura de Belo Horizonte, isso se deu pelo desconhecimento sobre a inserção da lei em BH, pela desinformação sobre as regras e possibilidades de acesso, por dificuldades no cadastramento (reunir documentação e manusear tecnologias digitais), pela perda de prazo e, em alguns casos, pelo desinteresse.
Quem foi Aldir Blanc?
Entenda a Lei Aldir Blanc
O nome da lei foi escolhido em homenagem ao músico e compositor Aldir Blanc, um dos artistas vítimas da COVID-19. Promulgada no plano federal, teve como objetivo principal atender ao setor cultural do país, pois foi o campo mais afetado com as restrições de isolamento na pandemia
Sendo anunciada na Câmara dos Deputados, o PL foi revisado pelo Senado Federal – que tem finalidade de fazer alterações caso o projeto seja iniciado na Câmara. Depois de todas as colocações dos parlamentares, foi enviada ao Presidente da República, Jair Bolsonaro. Após a avaliação da proposta, o presidente encaminhou aos senadores um veto parcial apenas em um dos artigos presentes na lei, que aprovada – o artigo acabou sendo retirado. No dia 29 de junho de 2020, a legislação entrou em vigor.
A ementa da regulamentação diz que “determina à União o repasse de três bilhões de reais aos estados, ao DF e aos municípios para aplicação em ações emergenciais de apoio ao setor cultural“. O valor total exigido foi dividido pela metade, sendo uma parte destinada aos estados e a outra aos municípios. Além disso, os valores foram disponibilizados para as Secretarias de Cultura de cada estado, do DF e dos municípios por meio da Plataforma + Brasil.
Como está previsto na liberação em questão, o dinheiro deve ser aplicado em ações emergenciais de apoio ao setor e a todos aqueles “que participam da cadeia produtiva dos segmentos artísticos e culturais, incluídos artistas, contadores de histórias, produtores, técnicos, curadores, oficineiros e professores de escolas de arte e capoeira”. Além disso, ela atende dois tipos básicos de beneficiários como: pessoas físicas que trabalham no âmbito artístico e cultural e entidades culturais que foram afetadas pela pandemia.
O futuro da Lei Aldir Blanc
Desde o início de 2022, a prorrogação da lei fez parte de debates no Congresso Nacional e nos noticiários. Um dos pontos mais importantes e polêmicos era até quando esse setor cultural continuaria recebendo a quantia destinada aos municípios, estados e o Distrito Federal. Neste contexto, surge a iniciativa da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e outros cinco deputados. A Lei Aldir Blanc 2, a qual institui a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura garante ao âmbito cultural receber 3 bilhões de reais anualmente durante cinco anos, ou seja, até 2027.
Mesmo que para muitos a pandemia tenha acabado, esse valor deveria estar sendo destinado ao setor, contudo o presidente Bolsonaro vetou a Lei Aldir Blanc 2 alegando que o projeto é “inconstitucional e contrário ao interesse público”. Após a derrubada do veto pelo Congresso, o presidente editou uma Medida Provisória (MP) para adiar o pagamento dos recursos. No entanto, no último dia 08 de novembro, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, atendeu o pedido do Partido Rede Sustentabilidade e suspendeu os efeitos da MP que adiava o pagamento de benefícios pro setor cultural. Agora, a decisão precisa ser analisada pelos outros ministros da Corte.
Reportagem produzida por Fabíola Damasceno, Giovana Cangussu, Letícia Alves, Marina Lemos, Michelly Barbosa e Paola Mariano para o trabalho interdisciplinar das disciplinas de Jornalismo Cultural e Produção em Jornalismo Digital, sob a supervisão das professoras Júnia Miranda e Verônica Soares da Costa.
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