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Fotografia de trecho do filme, em que Joana, branca, de cabelos castanhos e ondulados e Kevin, negra, de cabelos trançados estão conversando em um parque.

Joana Oliveira: “As relações de amizade são como milagres que acontecem”

Em entrevista ao Colab, Joana Oliveira fala sobre seu novo filme.

Joana Oliveira, penúltima entrevistada da série de entrevistas com cineastas mineiros feita pelo Colab em 2022, fala sobre Kevin, seu filme lançado em novembro deste ano e que em breve chegará às plataformas de streaming. Ao retratar o reencontro com  sua amiga, Kevin, após anos de distância física, Joana aborda no filme realidade e ficção. A seguir, a cineasta fala sobre os bastidores do filme e da amizade.

A entrevista foi editada para fins de clareza e concisão.

Você falou em outras entrevistas sobre a mistura entre ficção e realidade de Kevin. Como isso foi estabelecido durante as gravações? Você já tinha um objetivo concreto sobre o resultado final?

A ideia do filme, na verdade, nasceu como uma ficção, ela não nasceu como documentário. A minha vontade era trazer minha amiga para o meu casamento, mas isso não ia acontecer porque a Kevin morava na Alemanha e tinha acabado de ter uma filha. No início de 2013, eu fiquei pensando: “e se eu inventasse uma ficção?”, “e se eu inventasse uma ficção em que a Kevin viesse pro Brasil para o meu casamento e a gente atuasse essa própria ficção?”. Eu comecei a escrever um roteiro para a vinda dela para o Brasil. Eu sabia que isso não ia dar tempo de acontecer para meu casamento, mas, para mim, foi muito importante para lidar com o que eu queria falar com esse filme, com essa vinda da Kevin para cá.

Eu senti que era isso, um filme sobre a minha amizade que vinha de trazer essa longa data pro Brasil, ela nunca tinha vindo ao Brasil, e também para entender o que ela imaginava que era meu país. A gente era muito amiga, éramos amigas mais à distância do que presencialmente, muita coisa a gente contava uma para a outra, mas ficava no imaginário. Aí eu imaginei a vinda dela para o Brasil. Como seria esse encontro dela com Belo Horizonte, com a minha família, com a questão racial no Brasil. Como seria a perspectiva de uma africana que mora na Europa.

Bom, o filme foi virando outra coisa, não consegui financiamento para essa primeira história de ficção e fui mudando o filme para um documentário, mas eu queria ainda fazer a chave da ficção. A chave de ter quarta parede, a chave de que as cenas já existissem com intenções muito bem desenhadas. Eu sou roteirista, eu trabalho muito com roteiro, então eu realmente vinha da estrutura para ir para a filmagem.

Quando a gente conseguiu o financiamento para o filme, passaram-se muitos anos, a Kevin já tinha três filhos e morava em Uganda. Ela tinha passado vinte anos na Alemanha e tinha voltado para Uganda, então, eu mudei o filme de local, conversei com a prefeitura, com a lei municipal de incentivo à cultura para saber se eu poderia fazer essa troca, e justifiquei que não tinha condição de trazer a Kevin para o Brasil com três crianças pequenas, e consegui manter para o filme as intenções iniciais dele, o que era a grande premissa: um reencontro de duas amigas que sempre tinham se relacionado, em um país de uma das duas, como se essa amizade se restabelecesse na vida adulta dentro da cultura da outra.

A gente vai, então, para a Uganda – eu e uma equipe – entendendo que eu ia ter que refazer esse roteiro de filme. Eu escrevi outro roteiro, tentando manter as intenções e imaginar como seria Uganda, mas era um roteiro com lugares e situações imaginárias, porque eu ainda não sabia exatamente como era a casa da Kevin, as relações da Kevin. A gente chegou lá e tinha pouco dinheiro para filmar, então, fomos duas vezes: na primeira vez eu fui já fui com a equipe, ficamos três semanas e a primeira semana foi só para matar a saudade da Kevin e para eu reestruturar esse roteiro imaginário em um roteiro daquilo que a gente encontrou com a realidade da Kevin. E aí a gente reestruturou, mas mantendo essa vontade de ter uma relação muito íntima entre as duas, mas que ela fosse relatada como uma ficção. Como se tivesse uma quarta parede, como se o espectador estivesse vendo que é uma relação muito íntima e quase secreta entre as duas, mas que o espectador está ali meio como um voyeur dessa relação.

Vocês se conheceram na Alemanha, mas essa foi a primeira vez em que vocês se reencontraram desde então?
Cartaz de Kevin.

Não, eu morei na Alemanha em 1999, por uns cinco meses, porque eu fui trabalhar como babá para uma família e fazia escola de alemão na mesma escola da Kevin. O curso dela era em inglês, mas ela tinha como disciplina obrigatória aprender alemão. Na época ela não falava bem como ela fala hoje, depois de ter morado tantos anos no país.

Conheci a Kevin na primeira aula que tivemos juntas, a gente se deu super bem e ela falou “vou te apresentar para todo mundo da minha turma” e daí eu já estava andando com ela para cima e para baixo, ia em todas as festas da faculdade dela e aí ficamos muito amigas. Eu terminei indo morar escondida no dormitório dela, larguei a família que eu morava e o emprego, onde cuidava da Carla, e fui morar com ela para terminar o curso, escondida no dormitório. 

Voltei para o Brasil e fiz PUC, eu odiava publicidade e por isso tinha trancado por um ano, para ir para a Alemanha. Mas resolvi terminar o curso e tentar ir mais para a área do audiovisual, que era o que eu gostava dentro da publicidade, e descobri durante esse período na Alemanha que queria fazer cinema. 

Depois de formada, trabalhei muito com televisão, comecei a trabalhar em alguns curta-metragens aqui em Belo Horizonte, no início dos anos 2000. Em 2002 eu passei para estudar cinema na escola de Cuba, fomos até eu e Marquinhos Pimentel, a gente fez a prova juntos, somos da mesma geração da escola. Ele fez direção de documentário e eu fiz direção de ficção. Depois que eu terminei, eu ganhei um intercâmbio da escola de Cuba para estudar na Alemanha. Então eu fui estudar em uma escola perto de Berlim, que é longe de onde a Kevin morava. Eu fiz o intercâmbio no norte, voltei e fiquei mais uma semana com ela, em 2005, quando a gente se reencontrou. 

Quando eu tive a ideia do filme, entre o final de 2012 e o início de 2013, eu já não via a Kevin desde 2005, já tinham sete  anos e meio, quase oito. E foi muito doido porque, a partir do momento em que eu decidi fazer o filme que eu escrevi os projetos, eu comecei a movimentar uma energia para revê-la. No ano seguinte, em 2014, eu já tinha a produtora para o filme, Luana Melgaço, uma produtora de Belo Horizonte que é sócia da Clarissa Campolina.

Um problema do financiamento é que as pessoas não acreditavam que a Kevin era uma grande personagem, não tinha nada para provar. Quando a Luana se associou ao filme ela falou “você vai ter que ir lá para Alemanha, porque está faltando algum teaser”. O teaser é quando a gente filma alguma coisa que pode nos ajudar na aprovação de um projeto, na visualização desse projeto para alguma comissão selecionadora.

Fui para a Alemanha, eu e Luana dividimos a passagem de 10 vezes, pedi uma câmera emprestada e fui encontrar com a Kevin. Fiquei lá na cidade em que ela morava por mais quatro dias, filmando ela, conversas minhas e dela. E aí foi ótimo, deu super certo, ela e a câmera se amam, ela é muito espontânea, ela é demais.

Então eu voltei, reescrevi o projeto do filme já como um filme híbrido, de documentário e ficção, e ganhamos esse financiamento da prefeitura. Eu acho que tem muito a ver com a possibilidade de ter esse material formado com ela, em que mostrava que realmente tudo isso que eu tinha escrito no texto, que ela é uma personagem cativante, espontânea, que tem uma verdade dela, que realmente é hipnotizante com as coisas que ela fala, como ela fala e como ela se expressa. Essa mãe solteira mas que ao mesmo tempo é uma mulher muito completa e forte. Esse material audiovisual ajudou muito ao filme ser financiado, a gente ganhou esse primeiro financiamento, que deu uma luz na primeira parte em Uganda. 

Então eu encontrei com ela em 1999, em 2005, em 2014 quando eu fui para a Alemanha e depois já em 2017 quando fomos filmar na Uganda. A gente filmou a primeira parte do filme, eu e Luana inscrevemos o projeto na Ancine como um documentário híbrido, ganhamos mais financiamento e voltamos em 2019, para filmar o resto do filme.

No filme, então, existem cenas tanto de 2017 quanto de 2019?

Bem vinda ao mundo de ser enganada! [Quando assistimos um filme,] a gente fala “ai tudo bem, pode me enganar, eu só quero ser feliz!”

Estou curiosa: como foi a reação da Kevin ao filme? Vocês se reencontraram depois do lançamento?

Sim, ela veio para o Brasil.

A Kevin assistiu ao filme na Uganda, mas sempre muito preocupada com as coisas que a gente tinha que fazer. Tivemos que fazer algumas dublagens à distância, até para fazer as coisas dos offs, então ela dublou em um estúdio de lá e eu dublei daqui, ela viu algumas coisas e revia. Mas ela viu tantas partes do filme soltas, que quando ela viu o filme inteiro eu acho que ela ainda tinha ideias diferentes.

E aí aconteceu uma coisa muito legal, porque o filme estreou em 2021 durante a pandemia, teve a primeira exibição em Tiradentes, que foi online, depois várias sessões em Tiradentes, em São Paulo também, na Mostra SESC, e começaram a ter algumas exibições presenciais. Tiveram exibições do filme no festival de documentário de Montreal, no Canadá, em que eu fui. Foi a primeira vez que eu fui fisicamente ver o filme. Mas era assim: uma sala em que as pessoas estavam todas de máscaras, muito separadas umas das outras, com contagem de pessoas para entrar, estava muito restrito.

Aí o filme passou em alguns países: Chile, Espanha, ainda com essas restrições, e ele foi convidado para ser o filme de abertura de um grande festival de cinema de mulheres. É um festival bem grande e, sendo o filme de abertura, é aquele filme que passa em um cinema gigante, com um monte de convidados, um cinema de 800 pessoas, coisa que a gente quase não tem mais aqui. Fomos uma parte da equipe para esse grande lançamento do filme na Alemanha e Kevin foi, da Uganda para a Alemanha, então foi a grande sessão presencial em que fomos todos. A primeira vez que eu e a Kevin viu o filme completo, com os créditos completos, tudo fechado. Na verdade ela disse que já tinha visto, mas não da forma que assistiu lá, também porque existe muita emoção de fazer uma exibição com o público, de uma coisa tão íntima que é a sua vida.

Eu lembro que assistimos ao filme todo de mãos dadas. Nessa hora eu acho que ela ficou com um pouco de vergonha, depois a gente conversou bastante sobre isso e ela falou que tinha visto o filme, mas toma outra proporção quando acontece esse encontro com o público, toma uma proporção muito grande. E, depois, tinha esse monte de público vindo falar com a gente, perguntar como estavam os personagens e de repente veio o pensamento de “nossa todo mundo conhece meus filhos”, é muito doido mesmo.

Depois teve o lançamento do filme comercial aqui no Brasil, a pré-estreia no Belas Artes, no dia 1º de novembro de 2022, e ela quis vir. Ai eu falei “uai, Kevin, você não falou que estava morrendo de vergonha?” e ela disse: “que isso, Joana, já passou! A gente só vive uma vez”. Foi super legal, a sessão no Belas Artes estava lotada, o encontro com o público, no final teve aquela coisa de todo mundo levantar, bater palma e vir conversar, foi muito legal mesmo.

E aí, no final das contas eu realizei meu sonho que era trazer minha amiga para o Brasil, então se fechou um ciclo perfeitamente.

Acredito que, entre muitas coisas, Kevin fala, também, sobre raízes. Como Brasil e Uganda influenciam na história que é contada no filme e na relação entre vocês duas?

Eu acho que eles influenciam na medida em que a gente se aproxima na Alemanha porque estávamos as duas em condição de estrangeiras, acredito que essa é a primeira coisa. Mas não qualquer estrangeira: estrangeiras vindas de países considerados de terceiro mundo, mas países que são também muito alegres, que têm uma conexão com diversão, risos, e eu acho que isso nos conectou. A Alemanha é um país muito mais frio, é diferente de uma relação de um latino-americano e de um africano. Não vamos colocar a América Latina e a África em grandes baldes lineares porque não somos. Acho que é isso, que o brasileiro tem vontade de sair, conversar, é falante, os ugandenses também são assim, então a Kevin e eu nos conectamos.

Quando eu vou para Uganda, então, tem um pouco dessa coisa de eu ter me tornado “a outra”, ali eu sou a estrangeira. E eu acho muito legal quando tem a cena em que estão sentados no sofá o avô alemão das crianças, a Kevin, eu e as crianças, tem a referência da união desses três países diferentes, que está ali naquela sala, naquela mistura, com as crianças brincando. Ali então é um resumo do que é o filme, porque o filme só é possível porque começou na Alemanha. Eu acho que às vezes a gente tem tudo para se dar bem com uma pessoa, mas não desenvolve uma amizade.

As relações de amizade são quase como uns milagres que acontecem.

Joana Oliveira
Você poderia indicar outro filme para quem gostou de “Kevin”?

A Cidade onde Envelheço, da Marília Rocha, que é um filme mineiro também.

Para finalizar: como seria um dia de gravação ideal para você?

Nossa, que pergunta estranha! Eu acho que os dias ideais para filmar dependem dos projetos, por exemplo: hoje, que é um dia chuvoso em Belo Horizonte, que seria péssimo para fazer uma externa, dependendo do projeto de filme que eu estou fazendo, é exatamente do que eu preciso. Então, o dia ou as condições perfeitas não existem sem você considerar as condições do projeto de filme que você está fazendo.

Acho que para mim, a condição perfeita é a condição em que toda a equipe, personagens, todo mundo está descansado, bem alimentado e bem humorado, porque pode vir qualquer coisa que a gente ‘mata no peito’ porque conhecimento para isso a gente tem. 

Contribuição: Carolina Chaves

Helena Fernandes Tomaz

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