Assim como em todo o Brasil, o futebol de várzea em BH representa muito mais do que lazer e entretenimento para seus atletas e espectadores. Por trás dos “terrões”, quadras, campos irregulares e gols improvisados, existe toda uma cultura e tradição que toma conta das comunidades. Além das quatro linhas, a várzea abre espaço para talentos, oportuniza o crescimento de empreendedores e transforma a vida de diversas pessoas.
Alguns clubes fazem parte do legado da várzea de BH e região metropolitana. É o caso do Pérola Negra, equipe da cidade de Mário Campos; Tupinense, representante do bairro Tupi, na capital; e Estrela Mirim, de Mateus Leme. Além disso, o futebol feminino também vem ganhando espaço nos campos amadores da cidade. Um exemplo é o Prointer, clube com mais títulos na história da modalidade.
A trajetória do futebol amador em Belo Horizonte
Com uma história centenária, o futebol de várzea faz parte da vida de inúmeros moradores da capital mineira. Nas comunidades e favelas, a existência de um campo de futebol é praticamente obrigatória. A várzea belo-horizontina iniciou sua história nas primeiras décadas do século XX, quando o esporte já era praticado nos bairros suburbanos, onde vivia a maior parte da classe trabalhadora do município. Naquela época, o futebol em Belo Horizonte era dividido. De um lado, ficavam os times da elite, que eram fundados dentro do limite da Avenida do Contorno, e, do outro, ficavam as equipes que surgiam nas áreas periféricas da cidade.
Os primeiros campeonatos suburbanos foram criados em meados de 1910, e eram formados pelos clubes da periferia que não tinham condições financeiras de se inscreverem nos torneios oficiais. Naquele período, as competições federadas eram organizadas pela Liga Mineira de Desportos Terrestres (LMDT), atual Federação Mineira de Futebol (FMF). De lá para cá, o futebol de várzea foi ganhando espaço e se tornou parte da cultura periférica de Belo Horizonte. Hoje em dia, incontáveis campeonatos e torneios amadores são realizados na capital. Entre esses eventos, a Copa Itatiaia, o Campeonato Mineiro Amador, a Copa Centenário e o extinto Torneio Corujão, são os campeonatos de maior apreço por parte dos participantes.
Confira abaixo a localização dos campos de futebol amador em BH
Conheça as principais competições do futebol de várzea de BH
Criada entre os anos de 1961 e 1962, a Copa Itatiaia é o torneio mais importante do futebol amador do estado. Transmitido pela Rádio Itatiaia, o evento é realizado durante o período de férias dos jogadores profissionais no país, entre dezembro e janeiro. O campeonato visa cobrir a programação desse período sem partidas do profissional, com os jogos do futebol varzeano. Em 2024, o torneio terá início no dia 15 de dezembro.
O Campeonato Mineiro Amador, organizado pela FMF, surgiu em 2019. O torneio reúne clubes de todo o estado, e os jogos não acontecem exclusivamente na capital. Realizado pelo Setor de Futebol Amador da Capital (SFAC) e pelo Setor de Futebol Amador do Interior (SFAI), o evento busca incentivar a prática esportiva e fortalecer o futebol de várzea nas comunidades.
Fundada pela Secretaria de Esporte e Lazer (SMEL) de Belo Horizonte, a Copa Centenário teve a sua primeira edição em 1997, para comemorar os 100 anos da cidade. A competição integra várias modalidades, e organiza, desde torneio Sub-20 de Futebol Feminino, até torneio Master 50 de Futebol Masculino. De acordo com os organizadores, a competição tem o intuito de “fortalecer a tradição e a história dessa manifestação esportivo-cultural na cidade”.
O extinto Torneio Corujão, organizado pela Globo Minas, foi disputado pela primeira vez em 2004, e pela última, em 2019. O campeonato foi inspirado a partir de um projeto, criado pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese), chamado Campos de Luz. O programa tinha o objetivo de iluminar os campos de futebol amador da Região Metropolitana de BH. O nome do torneio surgiu com base nesse contexto, visto que as partidas eram realizadas no período noturno.
Além dos torneios mais importantes, vários outros campeonatos movimentam os finais de semana dos boleiros de BH. É o exemplo da Liga Não Filiados, que foi criada com o objetivo de organizar os jogos de clubes não federados. A associação gerencia diversas partidas amistosas e competições espalhadas pela capital. A liga possui quase 300 times e mais de cinco mil atletas cadastrados. Os jogos realizados pela Não Filiados atraem tanto os atletas que buscam destaque no cenário futebolístico, quanto os jogadores que estão ali apenas pela paixão ao defender a camisa do seu time de bairro.
A realidade das competições e dos clubes
Embora muitas vezes seja vista apenas como uma versão amadora do futebol, a várzea possui uma relevância financeira que ultrapassa os limites das quatro linhas, fazendo diferença nas comunidades onde se encontra enraizada.
As premiações dos campeonatos de várzea não chegam perto das quantias oferecidas em competições profissionais, mas representam uma motivação importante para as equipes. Em geral, esses valores podem variar entre prêmios em dinheiro, troféus e até uniformes novos, servindo tanto como incentivo para os jogadores, quanto como uma forma de aliviar temporariamente a situação financeira dos clubes.
Competições de mais renome, como a Copa Itatiaia, são consideradas uma espécie de Copa do Mundo, já que costumam ter uma visibilidade maior. Na última final da competição, em janeiro de 2024, por exemplo, a Arena Independência recebeu cerca de 13 mil torcedores para acompanhar a vitória do Estrela Mirim sobre o Tupinense. Uma curiosidade é que o gol do título foi marcado por Juninho Neymar, irmão do atacante Bruno Henrique, do Flamengo.
Apesar do espírito de paixão e tradição, a dificuldade financeira é uma realidade constante para os clubes de várzea. A maioria desses times vive no “vermelho”, operando com recursos limitados e dependendo, em grande parte, do apoio comunitário e de patrocínios esporádicos de pequenos comerciantes.
Segundo o dirigente do Tupinense, Vanderson Pedro de Souza, conhecido como Porkim da Limpeza, atualmente, a sobrevivência do futebol amador depende muito da colaboração da população. De acordo com o gestor, os clubes não conseguem se manter financeiramente com os valores das premiações e patrocínios.
Porkim também destacou a falta de incentivo do governo à várzea. “Acho uma grande covardia porque a comunidade faz o papel social que o governo deveria fazer. Isso é preocupante. Muitos times da idade do Tupinense (59 anos) já acabaram por causa disso”.
Vanderson ainda falou sobre a relação com a comunidade e o esforço feito nos bastidores:
A gente entra em um campeonato que você gasta R$70 mil, R$80 mil, para ganhar R$20 [mil]. Então, a gente faz isso para a comunidade mesmo. Eu podia estar lá na beira do campo como diretor, mas eu prefiro estar aqui, no meio da comunidade, porque eu sei que eu vou chorar com eles. Isso aí não tem preço”
Porkim da Limpeza (foto)
O Tupinense é uma equipe do bairro Tupi, formada em 1965 pelos moradores da região norte de BH que eram apaixonados por futebol. De lá para cá, a equipe foi crescendo e chegou à conquista diversos títulos, como Copa Arizona, campeonato de âmbito nacional, e Copa Centenário. Em 2024, o time chegou à final da Copa Itatiaia, torneio em que o clube levantou a taça na edição 2019/2020.
“No início, chamava Associação Atlética Tupy, depois, virou Associação Atlética Tupinense. Ele vem sobrevivendo todos esses anos com vitórias, derrotas, alegrias, tristezas, mas sempre trocando a geração que vai tocando o Tupinense”, falou Porkim.
Conversamos também com Mauro Lima, dono do Pérola Negra, que abriu o jogo sobre as contabilidades da sua equipe. Segundo ele, em dezembro de 2023, o clube arrecadou R$6.841,09 entre patrocinadores, apoiadores e premiações de campeonatos. Porém, a equipe de Mário Campos gastou mais que o dobro do valor arrecadado. As despesas foram avaliadas em R$13.711,97.
A importância da várzea para os dirigentes, comerciantes e torcedores
Organizar uma equipe, arcar com uniformes, custos de transporte e até taxas de inscrição em campeonatos pode ser um desafio para esses clubes, que não possuem as mesmas condições financeiras dos grandes times profissionais. Mesmo assim, a persistência e a paixão pelo esporte mantêm essas agremiações vivas, com competições acirradas e envolvimento intenso da comunidade.
Por trás das dificuldades enfrentadas pelas equipes, e sem receber nada em troca, os dirigentes, presidentes e diretores se dedicam arduamente para manter de pé o sonho dos clubes. É o caso do Mauro Lima, gestor do Pérola Negra. O responsável pelo time de Mário Campos, além de administrar o time, precisa conciliar os problemas esportivos com o trabalho e a família. Segundo Mauro, conciliar esses três pilares que fazem parte da vida é a parte mais difícil. Ele destaca também a opinião da esposa, que apresenta algumas desavenças quanto à sua função.
“Às vezes precisamos acompanhar o time nos campeonatos e isso coincide com o dia de sair com a família, então, dá para entender o lado da minha esposa. Já precisei até de acompanhamento psicológico por causa dessa situação”, destacou o gestor.
Além de conduzir o Pérola Negra, Mauro também é caminhoneiro. De acordo com ele, em certas ocasiões, enquanto está no trabalho, transportando minério, precisa ficar atento ao telefone para não deixar de lado as burocracias esportivas. Mesmo com todas as dificuldades, o dirigente se mostra à disposição para trabalhar pelo Pérola Negra, equipe onde também foi jogador:
Com toda dificuldade, problemas pessoais e familiares com relação à minha dedicação ao futebol, eu gosto. Tenho vivido muitos momentos bons. Sou grato demais por amar o futebol amador de forma incondicional”
Mauro Lima (foto)
O futebol amador também movimenta a vida dos moradores das comunidades, que vão aos jogos para apoiar o time do coração, encontrar amigos e descontrair. Durante os jogos, o consumo de cerveja, churrasco e as brincadeiras são cenas que fazem parte do espetáculo.
Francisco, torcedor do Reunidos, equipe da região Noroeste de BH, destacou a importância da várzea para os moradores: “O futebol amador é muito importante para a comunidade. Vimos a comunidade toda parada para os jogos. Depois das partidas, churrasquinho para todo mundo, a resenha. Isso que é importante para o futebol”.
Além dos gramados, os dias de jogos trazem movimentação econômica para os locais onde são realizados. Muitos ambulantes, pequenos comerciantes e até mesmo food trucks aproveitam a concentração de pessoas ao redor dos campos para vender produtos e alimentos, contribuindo para a economia local. A presença de torcedores, familiares e moradores da região representa uma oportunidade de renda para esses empreendedores. Os comerciantes veem, nas partidas, uma chance de vender desde bebidas, salgados e doces, até artigos de torcida, como bandeiras e camisetas. Para muitos, essas vendas são essenciais para complementar a renda e cobrir despesas do dia a dia, fazendo com que o futebol de várzea tenha um impacto direto na vida de várias famílias.
Entrevistamos Márcio que, além de jogador, é vendedor de camisas de time e artigos esportivos. Comerciante durante toda a vida, ele aproveita os eventos da várzea para apresentar os produtos aos jogadores e torcedores. “Quando eu vou jogar, eu levo [os produtos] para o vestiário, tem a resenha, aí eu mostro para o pessoal. Como sou amante do futebol amador, quando eu não estou jogando, aproveito para assistir aos jogos e fazer minhas vendas“.
Com o avanço de políticas públicas e incentivos ao esporte, a várzea também atrai investidores e pequenos patrocinadores que buscam associar suas marcas a essa paixão nacional. Hoje em dia, as duas competições de várzea mais famosas de Belo Horizonte, Copa Itatiaia e Campeonato Mineiro de Futebol Amador, são patrocinadas por grandes casas de apostas. A Copa Itatiaia é patrocinada pela KTO, enquanto o Campeonato Mineiro de Futebol Amador é patrocinado pela Bet7K.
Fuga do crime e trampolim para o futebol profissional
Praticado em todo o país, o futebol de várzea vai muito além de uma prática recreativa. Desde os campos de terra ou areia, até os gramados, o esporte tem se mostrado uma ferramenta poderosa no combate ao aliciamento de jovens da periferia, que enxergam no crime e na violência uma fuga das dificuldades enfrentadas no cotidiano.
Nas áreas onde o crime se faz presente, o esporte surge como uma alternativa atraente para manter os jovens ocupados e distantes das atividades ilícitas. Para muitos, o futebol se torna não só uma forma de lazer, mas um espaço de aprendizagem e de construção de valores como respeito, disciplina e trabalho em equipe.
De acordo com os pesquisadores Igor Roson, Suzana Bastos, Eduardo de Almeida e Sandro Ferreira, no artigo “Esporte e prevenção criminal: uma análise dos municípios brasileiros para 2002 e 2010”, o esporte pode manter os jovens ocupados, fornecer mentores positivos, atender à necessidade de excitação e assumir riscos, reduzir o tédio, o estresse e o tempo ocioso, principalmente dos jovens. Afastar os jovens destas atividades sociais negativas é uma política de combate ao crime juvenil.
Além de ser um espaço de socialização, o futebol de várzea ajuda a fortalecer os laços dentro da própria comunidade. Quando os moradores se reúnem em torno de uma partida ou de um time, o sentimento de pertencimento cresce, ajudando também o desenvolvimento econômico da região.
Dentre os diversos exemplos existentes em Minas Gerais, destaca-se o trabalho realizado pelo Estrela Mirim, time do município de Mateus Leme, região metropolitana de Belo Horizonte. O clube nasceu em 1998, com um grupo de garotos que brincavam no campo do Guarani. Da brincadeira com a bola de futebol pelo “terrão”, a equipe chegou a uma estrutura com categorias sub-11, sub-13, sub-15 e sub-17, além do time amador. A equipe, hoje, reúne 150 garotos que sonham em um dia chegar a um clube profissional.
“Temos mandado meninos para o time do Real Noroeste, Betim, entre outras equipes. Chegamos a enviar garotos até para o Araxá. Nós somos uma equipe humilde, mas que preza em dar o melhor para o atleta, e temos colhido bons frutos”, destacou Nelcy Elias Pereira, diretor técnico do Estrela Mirim.
Também conversamos com Maicon, autor do gol do título do Santa Lúcia na Copa Centenário de 2024, que garantiu a equipe na próxima Copa Itatiaia. O jogador falou sobre a importância dos eventos de futebol amador na vida dos atletas: “A Copa Itatiaia abre portas para um futuro sucesso. A visibilidade é muito grande”.
Tendo a oportunidade de sonhar, esses jogadores podem ter destaque em meio aos campeonatos amadores e, possivelmente, serem escolhidos para integrar um clube profissional, como é o caso dos jogadores Bruno Henrique, do Flamengo, e Breno Lopes, do Palmeiras. O astro do time carioca começou sua jornada no Inconfidência Esporte Clube, time de Belo Horizonte, onde teve atuações de grande destaque, ao mesmo tempo que trabalhava para conseguir se manter financeiramente enquanto buscava o sonho de se tornar profissional. Anos depois, o sonho tornou-se realidade, Bruno Henrique foi uma peça importante em todos os times onde atuou, principalmente em seu atual clube, o Flamengo, onde conquistou 11 títulos, entre eles, dois Campeonatos Brasileiros, uma Copa do Brasil, duas Supercopas do Brasil, uma Recopa Sul-Americana e duas Copas Libertadores da América. Durante a conquista do título continental de 2019, o jovem oriundo da várzea alcançou outro patamar, foi eleito o “Rei da América”, título que vem junto com o troféu de mesmo nome, confiado apenas ao melhor jogador do continente na temporada.
Breno Lopes também teve uma história parecida. O jovem do bairro São Bernardo, em Belo Horizonte, teve a primeira chance na carreira na base do Cruzeiro, mas nunca chegou aos profissionais. Foi dispensado no juvenil e precisou recorrer ao futebol de várzea na capital para seguir em atividade. Cinco anos depois, viveu o auge de sua carreira: na final da Copa Libertadores de 2020, a partida entre os rivais, Palmeiras e Santos, estava empatada, apenas um gol separava um dos times do sonhado título. Foi então que Breno Lopes, aos 53 minutos do 2º tempo, marcou de cabeça um gol que ficaria marcado na história, tanto do time alviverde paulista, que conquistou o então bicampeonato, quanto de todo o continente. Ali, o jovem vindo da várzea escreveu seu nome na história do futebol Sul-Americano.
O futebol de várzea não é apenas uma vitrine para atletas que almejam chegar ao profissional; ele também oferece uma oportunidade para ex-jogadores continuarem praticando o esporte que amam, agora afastados dos holofotes do futebol profissional.
Conheça atletas que, após pendurarem as chuteiras no cenário profissional, mantêm sua paixão viva nos campos amadores:
As mulheres na várzea de Belo Horizonte
O preconceito contra as mulheres no futebol é um problema histórico e cultural que reflete a desigualdade de gênero presente na sociedade. Por muito tempo, o futebol foi visto como uma atividade exclusivamente masculina. Em alguns países, incluindo o Brasil, houve até proibições formais para as mulheres praticarem o esporte. Entre 1941 e 1979, por exemplo, um decreto-lei brasileiro proibiu a prática do futebol feminino, o que atrasou significativamente o desenvolvimento do esporte para as mulheres. A modalidade começou a ser praticada profissionalmente no país entre as décadas de 1980 e 1990, e contou com jogadoras pioneiras, como Sissi do Amor, para inspirar atletas como Marta e Cristiane anos depois.
Além dos problemas de investimento financeiro e estruturais, as mulheres ainda passam por importunação no ambiente de trabalho. Segundo uma pesquisa feita pela jornalista esportiva Camila Alves, cerca 52,1% das jogadoras já sofreram algum tipo de assédio, seja por parte de técnicos, torcedores, comissão técnica ou de membros da diretoria.
Profissionais de imprensa relacionadas ao esporte também passam por situações constrangedoras até em grandes centros do futebol nacional. Um exemplo foi o caso da repórter Alinne Fanelli, da BandNews FM, emissora de rádio da capital paulista. Durante uma coletiva de imprensa depois da vitória do Palmeiras sobre o Cuiabá, a profissional questionou o técnico Abel Ferreira sobre a situação física do lateral Mayke, que sofreu uma lesão durante a partida. Segundo o treinador português, ele devia satisfação apenas a três mulheres: sua mãe, Leila Pereira (presidente do clube) e sua esposa.
Todos esses problemas citados aconteceram no futebol profissional. Na várzea, o espaço para o futebol feminino vem sendo conquistado há um bom tempo e as principais competições do amador mineiro já contam com a modalidade, mas o ambiente não está livre dos preconceitos de gênero.
Em BH, o primeiro torneio de futebol feminino foi realizado em 1981, mais de 70 anos após a primeira competição amadora de futebol masculino. O campeonato aconteceu por iniciativa do Centro Social e Urbano do Eldorado (CSU), de Contagem, e teve nove clubes participantes. A competição surgiu em um contexto de abertura política do Brasil e de um aumento de movimentos feministas no país, que reivindicam maior autonomia para as mulheres.
De acordo com o historiador Raphael Rajão, em seu artigo “A Várzea e a Metrópole: Futebol amador, transformação urbana e política local em Belo Horizonte (1947-1989)”, o torneio contou com a participação do Benfica; Panterloco, do bairro Concórdia; Ferroviária, da Pedreira Prado Lopes; Camisa 12, ligado à torcida organizada do Cruzeiro; Vila Olímpica, vinculado ao clube social do Atlético Mineiro; e outras três agremiações. O Camisa 12 foi a primeira equipe a vencer uma competição de futebol feminino na região metropolitana de Belo Horizonte.
Jaqueline Margarete Silva, de 62 anos, uma das pioneiras do futebol feminino na várzea de BH, contou sobre as dificuldades enfrentadas por ser jogadora da modalidade naquela época:
Jogava escondido do meu pai, escondido da minha mãe. Minha mãe chamava a gente de ‘macho-fêmea’. Meu pai falava que futebol era coisa de homem. O preconceito já vinha de dentro de casa”.
Jaqueline (à direita)
Além do preconceito por jogarem futebol, ela também relatou que as mulheres eram sexualmente assediadas. “Assédio sexual também, de muita gente. Na época eu era muito bonita, tinha muitas meninas bonitas. Mas eu fazia ‘vista grossa’, fazia ouvido seletivo, não escutei, sobrevivi”, disse Jaqueline. Campeã mineira nos anos de 1983 e 1984 atuando pelo Atlético-MG, a ex-atleta demonstra orgulho por ser uma das responsáveis por iniciar a prática do futebol feminino na capital:
Eu e algumas amigas nos consideramos patrimônio. Nós que desbravamos, demos o pontapé inicial. A gente queria reconhecimento”.
Jaqueline vê uma evolução do futebol feminino. Para ela, a modalidade vem sendo mais valorizada. Atualmente, além da existência de competições profissionais, vários campeonatos amadores são disputados em Belo Horizonte. A Copa Centenário, realizada desde 1999, o Campeonato SFAC Feminino, fundado em 2007, o Torneio Integração e o Campeonato Mineiro Amador Feminino são alguns exemplos.
Em 2022, 2023 e 2024, a TV Globo Minas realizou a cobertura da Taça das Favelas, em sua modalidade feminina e masculina. Além de boletins durante alguns dias da semana, houve uma programação especial dentro do programa Rolê das Gerais. A “cereja do bolo” ficou por conta da exibição ao vivo da final feminina, que aconteceu no Estádio Independência.
Essas competições funcionam como vitrine para as mulheres que pretendem chegar ao profissional. Marta, meio-campista da seleção brasileira e eleita melhor jogadora do mundo seis vezes pela FIFA, por exemplo, atuou pela equipe do Santa Cruz por volta de 2002.
Apesar do avanço, as mulheres ainda sofrem com preconceito e desigualdade. “Vejo que as novas gerações ainda passam pelas mesmas dificuldades. O preconceito ainda existe. Certo que é bem menos que antes, mas existe. As condições melhoraram um pouco. Hoje os campos são melhores, os clubes profissionais são obrigados a ter o departamento de futebol feminino, com isso as meninas já crescem tendo o desejo de ser uma atleta profissional”, ressaltou Solange do Pilar Silva que, assim como Jaqueline, foi jogadora nos anos 1980.
Ouvi muitos gritos de que mulher tinha que ir para o fogão, cuidar de filhos e da casa”.
Solange (à direita)
Nos clubes de várzea, os times masculinos já enfrentam dificuldades financeiras e falta de apoio. Essa situação torna ainda mais desafiadora a formação de equipes femininas, devido à ausência de incentivos e às limitações econômicas enfrentadas pelas agremiações. “Os clubes de várzea não têm condições financeiras de manter uma equipe feminina, eles sempre vão optar por outras categorias”, destacou Solange.
Ouvimos também a Thatá Santos, atleta do futebol amador na capital mineira. Ela abriu o jogo sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que atuam na várzea de BH:
Somos desvalorizadas em tudo. Não tem um campo que podemos falar: ‘esse campo aqui é para o feminino treinar’. Precisamos de mais patrocínio para o feminino. Caso não tenha o patrocínio, o mais importante de tudo é o respeito. O bom é que temos umas às outras, se não fosse isso, não teria nem futebol de várzea feminino”.
Um exemplo de superação é o ProInter Futebol Clube, localizado na Barragem Santa Lúcia. A agremiação foi fundada no dia 3 de abril de 1975 na modalidade do futebol masculino. Já a equipe feminina foi formada em 1994, com base no interesse das namoradas dos atletas em praticar o esporte. Em 2002, elas disputaram a primeira competição e venceram o Torneio Rola Bola. Até o ano de 2023, o ProInter conquistou outros 17 títulos e é o maior vencedor entre as equipes femininas de Minas Gerais. Em 2019, o clube representou o time profissional do Atlético-MG no Campeonato Mineiro.
Segundo José Evaristo Sobrinho, dirigente do ProInter, a equipe feminina disputou o Campeonato Mineiro de 2002 a 2019 que, até então, era formado apenas por times amadores. Em 2024, o clube conquistou, pela primeira vez na história, vaga para a final da Taça das Favelas, que será realizada no dia 21 de dezembro.
O futebol feminino de várzea em Belo Horizonte é um símbolo de resistência e conquista, enfrentando preconceitos históricos e desigualdades estruturais. Desde as pioneiras, como Jaqueline e Solange, até atletas atuais como a Thatá, cada geração tem desbravado novos caminhos. Entre os desafios, a falta de recursos e apoio é evidente, mas a força coletiva das jogadoras e o amor pelo esporte mantém o movimento vivo. Exemplos como o ProInter mostram que, com resiliência, é possível transformar sonhos em realidade e abrir portas para futuras gerações de mulheres no esporte.
Reportagem desenvolvida por Arthur Nunes, Arthur Ribeiro, Cauã Lucas Ferreira, Luiz André Barcelos, Samuel Chaves e Vitor Cordeiro para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da prof.ª Verônica Soares da Costa.