Sisleide do Amor Lima, ex-meia atacante, canhota e, hoje, treinadora, foi uma das pioneiras do futebol feminino brasileiro. Mais conhecida como Sissi do Amor, fez parte da geração de jogadoras profissionais das décadas de 1980 e 1990.
Cresceu em Esplanada, no Nordeste da Bahia, e começou a jogar futebol enquanto ainda era proibido no Brasil, sendo inspiração para atletas como Marta e Cristiane anos depois.
Em meio a dificuldades e preconceitos, mas com o apoio da família, a camisa dez lutou por espaço nos times de meninos: “Não fui bem recebida. Disseram-me que o futebol era para homens, não para mulheres”.
Aos quinze anos, foi jogar pelo Bahia, em Salvador. Ela cresceu no esporte, conseguiu uma vaga na primeira equipe nacional e posteriormente jogou futebol pelo time Radar, além de futsal pelo Corinthians e São Paulo.
Nesta entrevista*, ela fala de sua trajetória, da presença de mulheres no esporte, e de como não teve muitas oportunidades em solo brasileiro.
Como foi sua infância na Bahia ?
Meu pai jogava futebol nos finais de semana e meu irmão jogava no quintal lá de casa. Eu sempre fui aquela que ouvia : “essa menina tinha que ter nascido homem”. Tudo o que ‘não era permitido pra menina’ eu fazia e, com isso todo, dia chegava reclamação na minha casa.
Eu era atrevida, arrancava as cabeças de bonecas, fazia de bola e chutava. Eu ficava animada jogando bola no meio do meu pai e irmão e chutava os vasos de planta da minha mãe.
Meu pai me deu a minha primeira bola aos 7 anos e me lembro que ele dizia ‘como é que pode essa menina ter tanta habilidade’.
Quais foram suas maiores conquistas no futebol ?
Participei dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, de duas Copas do Mundo, e, em 1999, conquistei a Chuteira de Ouro. Como artilheira do torneio, marquei 7 gols, sendo que um disputou o título de gol mais bonito da competição.
Tenho três títulos sul-americanos, um terceiro lugar no Mundial e dois quartos lugares nos Jogos Olímpicos. Em 2017, fui considerada a quinta maior jogadora do século pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS).
Apesar de ganhar o prêmio Chuteira de Ouro da Copa do Mundo Feminina de 1999, não tive muitas oportunidades no Brasil.
Quais são os obstáculos que você vivenciou durante sua carreira ?
Eu não tenho medo de falar o que sofri naquela época, mas não se podia falar antes, porque você perdia oportunidades. Nós, jogadoras, sofremos bastante violência verbal. Lembro de ter escutado vários homens me dizendo que eu não poderia ser jogadora. Mas eu queria era jogar, então, deixei tudo de lado pra jogar o esporte que eu amo e representar o meu país.
Não tenho arrependimento nenhum e estou feliz com o que conquistei. Mas um dos meus maiores desafios foi não ter convivência com minha família, principalmente quando me mudei para os Estados Unidos. Precisei de tempo para me adaptar.
De que maneira o sexismo e a homofobia eram enfrentados pelas jogadoras ?
As jogadoras não recebiam salários, mas a maioria dos times fornecia alimentação, alojamento, transporte e roupas. Havia consequências se você demonstrasse quem você era. Os treinadores diziam para ‘nos mantermos no armário’ e, se você fosse gay, talvez não fosse chamada mais, por causa disso.
Eu nunca pude falar abertamente sobre minha orientação sexual e sobre quem eu era. Mas, hoje a [atacante estadunidense] Rapinoe luta por esta causa e eu a admiro.
Sissi do Amor
Vale comentar que, durante minha carreira, não fui entrevistada por jornalistas mulheres, sempre fui entrevistada por homens. No Mundial em 99, por exemplo, não me lembro de ter uma mulher nos jornais ou na televisão.
Houve melhora na visibilidade do futebol feminino no Brasil ?
Eu fiquei feliz pelas meninas [jogadoras da seleção brasileira] terem tido essa oportunidade de estar na TV aberta [na Copa do Mundo de Futebol Feminino em 2019]. Mas foi no mesmo momento em que tínhamos a Copa América e só transmitiram os jogos nacionais da seleção feminina.
Acho que na questão de visibilidade, estamos melhor, mas nos EUA, por exemplo, acompanho os jogos da liga nacional na TV, isso ainda não tem no Brasil.
Confesso que fiquei emocionada na Copa do Mundo da França. Acho que temos que quebrar tabus como ‘mulher não pode treinar futebol’ e que ‘homens têm mais capacidade e melhor desempenho’.
Algo que notei é que se há uma Copa do Mundo no Brasil, o país para. Já na França, no ano passado, senti falta de publicidade e comunicação em termos esportivos.
Na Copa feminina de 1999, a divulgação, o clima, o andar nas ruas, foram experiências diferentes. A Copa de 2019 também não foi o que eu vi nas copas na China e na Suécia, que foram mais bem exploradas pela mídia.
O que eu senti como jogadora não é o mesmo que eu senti como torcedora em 2019, na França.
Ainda existe cobrança estética para as jogadoras ?
A questão da cobrança estética mudou. Eu senti na pele, fui discriminada por ter cabelo raspado e decidi permanecer com ele, em homenagem a um menino que tinha morrido com câncer.
Eu nunca me importei com imagem e uma das minhas qualidades é a persistência. Mas eu sofri muito preconceito no Brasil quando raspei a cabeça e não pude jogar nos torneios paulistas, porque a federação exigia que as mulheres tivessem cabelos compridos.
De que maneira você se fortaleceu durante sua trajetória ?
Minha família me apoiou muito. Eu vim de um lar que a gente pensava um no outro. Eu saí de casa quando tinha 14 anos, mas tive uma base que me fortaleceu pra vida. Nunca corri pra casa pra dizer que estava sofrendo, isso porque sentia que as outras jogadoras eram minha família, a gente se fortalecia e ajudava uma a outra.
Eu brigava por uma causa. Minha mãe me falava que eu tinha que fazer outra coisa, mas eu fui muito feliz em ter escolhido e permanecido no futebol. Eu nunca pensei em desistir, eu tive uma sorte danada também, confio bastante em Deus. As coisas foram acontecendo no momento que tinham que acontecer.
Qual sua expectativa para o futuro do futebol feminino?
Eu queria que o futebol feminino tivesse o mesmo espaço e que fosse respeitado, mas isso passa não só pelas jogadoras, mas pelos treinadores, torcedores e muitas outras pessoas.
Eu vi muitas meninas que desistiram e têm desistido do futebol porque não tem como sobreviver jogando futebol como carreira profissional no Brasil. Infelizmente, elas têm medo do preconceito e das dificuldades financeiras.
Há uma grande quantidade de meninas que saem do Brasil para tentar novas oportunidades, principalmente nos EUA. Aqui não há uma cobrança tão forte de padrões. Você tem que ser boa jogadora e estudante. Enquanto isso, no Brasil, não me aceitaram na paulistana (Campeonato Paulista), por cobranças estéticas.
Em que área você atua hoje?
Encontrei minha casa na liga profissional dos EUA, pelo Women’s United Soccer Association (WUSA), no início dos anos 2000 e assim espero abrir caminho para a próxima geração de jogadoras brasileiras.
Atualmente, sou técnica de equipes femininas nos EUA, passei pelo FC Gold Pride e Las Positas College Women’s, em Livermore, na Califórnia.
Hoje Sissi é treinadora no Walnut Creek Soccer Club e no Solano Community College em Fairfield, Califórnia, EUA.
Quem é a Sissi hoje?
Eu continuo a mesma, não escondo de onde eu vim e nasci. Tudo o que eu conquistei foi com sacrifício. Tenho personalidade forte, eu falava o que pensava e sofri por isso. Hoje, sou a mesma Sissi, só que mais responsável e focada no trabalho com jogadoras de base.
Tenho vivido: troca, energia e força. Amadureci, mas continuo brigando e sonhando para ver o futebol feminino no Brasil no lugar que merece.
* A entrevista foi concedida em julho de 2019, durante a Copa do Mundo Feminina de Futebol, na França.