O funk e o futebol são dois dos maiores fenômenos culturais nas periferias urbanas do Brasil, com imensa capacidade de mobilização social e, ao mesmo tempo, sendo reflexo das realidades e expressões das populações de baixa renda. O estudo Tribos Musicais, divulgado pelo IBOPE em 2013, concluiu que a classe social e a idade têm forte influência no gosto musical. 70% das pessoas que escutam funk são da classe C, D ou E, enquanto na música gospel esse percentual é de 72%. Nos dois grupos, a maioria dos ouvintes é mulher: 61% e 51%, respectivamente. Embora os estilos sejam bastante diferentes, 38% dos funkeiros afirmam escutar música religiosa e, entre os ouvintes de gospel, 22% dizem escutar funk.
Apesar de serem movimentos distintos, funk e futebol compartilham profunda conexão com as ruas e com a identidade cultural de jovens das favelas e comunidades. O futebol se transforma em um grande palco de visibilidade, onde jogadores, frequentemente oriundos dessas mesmas comunidades, representam um sonho de ascensão e superação. Já o funk, com suas letras e batidas marcantes, serve como uma ferramenta de afirmação cultural e resistência, sendo um dos maiores canais de expressão e reconhecimento da vida nas periferias.
Astros do mundo da bola
Em uma busca por canais de mídia na internet, é fácil encontrar uma infinidade de funks (ainda chamados de raps) gravados em estúdios por grupos de torcidas organizadas do Rio de Janeiro (como Deixa Passar – Funk da Jovem Fla) ainda dos anos 1990, que adentraram pelo período dos anos 2000. As letras provocavam rivais de forma agressiva, mas também serviam para expressões criativas de incentivo aos jogadores e de exaltação de territórios, além de fazer adaptações de hinos e até pedidos de paz nos estádios, como acontecia também nos bailes pela cidade. Essa relação já foi abordada no estudo de Victor Belart sobre Carnaval, Funk e Futebol.
A tendência chegou inclusive a ser assimilada por atletas, como no famoso caso de um rap (funk) em que Romário e Edmundo, jogando juntos no Flamengo, aparecem cantando como MCs. A letra de Rap dos Bad Boys é uma espécie de autopromoção com tom bem humorado e desafiador, com versos que exaltam o talento de Romário e Edmundo nos campos, além de seus estilos de vida fora dele. Há trechos em que eles falam sobre mulheres, fama e sua atitude sem papas na língua, reforçando a imagem de rebeldes que os acompanhou ao longo da carreira.
Musicalmente, o rap dos bad boys tem uma produção bastante simples, com batidas básicas e um melodias rudimentares (o que é esperado, considerando que nem Romário, nem Edmundo eram músicos de verdade).

Romário é o cara, Edmundo é animal/ No campo a gente brilha, no baile é sensacional”.
Esse tipo de verso mostra bem o clima da música: provocativo, descontraído e com bastante autoconfiança. Apesar de não ser um sucesso musical no sentido tradicional, a música virou um meme antes da era dos memes, sendo lembrado com carinho e humor pelos fãs do futebol carioca e cultura pop dos anos 90.
Funk, Passinho e Visibilidade Social

Aline Maia, jornalista, pesquisadora e professora universitária, é autora do livro: “Rabisca e Publica – Juventudes e estratégias de visibilidade social e midiática”. Na confecção do livro, que também é resultado de uma tese de doutorado, a pesquisa focava na produção cultural de jovens da periferia de Juiz de Fora, observando “o que eles produziam como estratégia de autorrepresentação, como estratégia de visibilidade social e midiática”. A pesquisadora encontrou na dança do Passinho, no Rio de Janeiro, e nos eventos de spoken word (palavra falada), em Nova Orleans, as principais manifestações de autorrepresentação. O Passinho, uma mistura genuína de danças que nasceu nas favelas cariocas, ganhou visibilidade por meio das mídias sociais digitais, proporcionando aos jovens dançarinos um reconhecimento diferente do imaginário associado ao “jovem favelado”. A associação imediata a termos como “marginalidade, criminalidade, precariedade” e a “ideia de falta de tudo” é subvertida, pois, como os próprios jovens afirmam, “favela é potência”. Essa criatividade e vitalidade são essenciais para a sobrevivência nessas condições.
A arte, especialmente a dança, tornou-se um caminho para a visibilidade desses jovens, da mesma forma que a educação foi para a pesquisadora. O Passinho, inclusive, é hoje patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, e os dançarinos podem obter registro profissional, sendo reconhecidos. A performance, tanto na dança quanto no futebol, é um instrumento poderoso de visibilidade. O corpo é o principal recurso: “eles não têm mais nada, eles têm o corpo, então eles têm o corpo como empreendimento nessa busca”, explica Aline.
A preparação física, a exibição de talento e técnica são comparáveis entre o dançarino de Passinho e o jogador de futebol. A pesquisadora concorda que essa entrega e o uso do corpo como “instrumento performático” são formas de se fazerem notar, com o futebol sendo uma via de realização de sonhos, estendendo-se a gerações anteriores, como avós e pais.
Perguntada sobre estratégias para fugir do estigma que muitas vezes é veiculado quando o assunto são essas culturas majoritariamente periféricas, Aline responde que a representação dessas culturas na mídia tradicional é um desafio. A jornalista sugere que “a gente só consegue dar mais espaço quando a gente tiver também redações mais diversas”. Ela argumenta que o conteúdo reflete a mente de quem o produz, e redações majoritariamente brancas de classe média, por mais brilhantes que sejam os jornalistas, tendem a partir de um “olhar de classe média, de um olhar branco”. Uma redação plural, com pessoas de diferentes etnias, idades, orientações sexuais e experiências de vida, resulta em um “olhar de quem está produzindo conteúdo que é levado para o público” muito mais rico.
Manifestações culturais como o Passinho e o futebol enfrentam obstáculos para serem reconhecidas e valorizadas por instituições formais, incluindo a mídia tradicional, políticas públicas e instituições acadêmicas. O racismo estrutural e o preconceito são fatores determinantes, que “dificilmente [separa] a questão de raça”. Embora haja mudanças, o reconhecimento ainda ocorre a passos lentos. A mídia tem um papel crucial em “jogar luz sobre essas práticas”, como aconteceu com Carolina Maria de Jesus e o próprio Passinho, que chegou à abertura das Olimpíadas de 2016. As mídias sociais e a comunicação digital oferecem novas possibilidades para esses grupos se manifestarem e ganharem visibilidade, influenciando, por vezes, a atenção da mídia tradicional. Contudo, como dito por Aline, é uma “longa caminhada e que de novo vai passar também pela necessidade de uma composição de uma redação mais plural”.
Falando com as favelas

O recém lançado (17/02) EP “Falando com as favelas”, uma colaboração entre o jogador holandês Memphis Depay e o funkeiro MC Hariel, exemplifica de forma notável essa interseção entre o futebol e o funk/trap. Memphis Depay, jogador de futebol profissional, e MC Hariel, um dos nomes mais importantes do funk atual, se unem não só pela amizade, mas também pela busca de visibilidade para as culturas periféricas, mostrando como o esporte e a música podem funcionar como veículos de valorização e representatividade. Nessa colaboração inédita, a produção das músicas teve início no ano passado, após a chegada do jogador ao Corinthians em setembro.
Essa união levou os dois até Gana, país de origem de Memphis e onde foi gravada a faixa que dá nome ao disco. O projeto evidencia a conexão entre duas culturas, com um refrão cantado em português pelo jogador e cenas feitas em São Paulo, na Vila Áurea.
As letras também têm menções ao Corinthians em “Peita do Coringão”, com imagens da bandeira e frases da torcida do clube. Ambos os artistas, em seus respectivos campos, se utilizam de suas plataformas para dar voz àqueles que, muitas vezes, não têm o mesmo reconhecimento no cenário mainstream. Esse EP e suas repercussões são um ponto de partida para explorar como essas duas esferas culturais se entrelaçam, se alimentam mutuamente e, em muitos casos, criam um ciclo de visibilidade e valorização para as periferias e suas expressões culturais.
Performance dentro e fora de campo
Esse compartilhamento de ideais, de sonhos e de conquistas a serem alcançadas, não é a única coisa que os pertencentes a esses grupos compartilham. É muito comum que os atletas possuam o sonho de se aventurar na música, e o mesmo para os Mc’s, que sempre tentam a sorte nos gramados. Um exemplo claro disso são os jogos beneficentes de final de ano. Em muitos desses jogos, artistas do funk (como MC Daniel, MC Poze, o próprio MC Hariel e outros), são convidados para jogar ao lado de jogadores profissionais e celebridades.
Durante os jogos, é comum que as músicas tocadas nas arquibancadas e nas transmissões sejam hits de funk, reforçando o gênero como a trilha sonora do futebol contemporâneo no Brasil. Muitas comemorações dentro de campo também são feitas com passinhos e danças vindas diretamente do funk carioca e paulista. Esses jogos não são apenas beneficentes; eles são uma celebração da cultura popular brasileira. Futebol e funk são, talvez, os dois maiores símbolos da juventude das periferias urbanas do sudeste do país. A junção deles nesses eventos demonstra como essas manifestações culturais caminham lado a lado, representando identidade, resistência e também sucesso.
É comum ao conversar com os famosos presentes no evento, que eles falem sobre o sonho de se tornarem jogadores quando crianças, muitos inclusive tentaram a vida nos campos, mas não obtiveram sucesso, porém não deixam de esbanjar talento com a bola nos jogos beneficentes, assim como os jogadores não deixam de soltar a voz ao compartilharem espaços com os músicos. A cobertura desses eventos pela mídia também explora essa relação, muitas vezes entrevistando MCs sobre suas carreiras no funk e sua paixão pelo futebol, e vice-versa.
Tornar-se jogador de futebol ou cantor de funk representa uma chance real (ainda que difícil dentro de suas realidades) de ascensão social. Essas figuras são vistas como exemplos de sucesso por outros jovens, funcionando como referência de pertencimento e possibilidade de “escapar” das limitações sociais impostas pela origem periférica. Apesar de sofrerem preconceito e estigmatização, o funk e o futebol são também formas de resistência e de afirmação de uma identidade cultural periférica. Os jovens se apropriam desses espaços para subverter expectativas sociais e criar novas formas de ser e de existir.
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Muito bom o texto
Achei muito bom o texto, a conexão fica bem claro depois de tudo explicado.
E quando mostra que o corpo é a ferramenta para o sucesso no funk ou no futebol e pode ser a única solução para o sucesso na vida
Parabéns pela reportagem….