O True Crime, em tradução literal, é o gênero de “crime real”, uma tendência cultural em que as pessoas demonstram interesse por histórias reais de crimes, geralmente envolvendo violência e mistério. Pode incluir documentários, livros, podcasts, programas de TV e filmes. Esse modelo de história tem ganhado destaque nos últimos anos, com o aumento da produção de conteúdos nesse formato e o consequente crescimento de sua popularidade, atraindo uma audiência cada vez maior e mais diversificada.
De acordo com o IBOPE, em 2020, o formato foi o segundo mais consumido em podcasts.
Segundo o Spotify, a plataforma de streaming de áudio mais popular do mundo, houve um aumento de 56% no consumo de podcasts no Brasil em 2020, em comparação com o ano anterior. Além disso, a empresa relatou que a categoria de podcasts de notícias e política, que inclui os podcasts de True Crime, está entre as três mais ouvidas no país – e a frequência dos ouvintes segue em crescimento, como pode ser observado nos dados obtidos pelo IBOPE:
Produtoras de conteúdo especializadas em True Crime no Brasil também relataram um aumento no número de ouvintes. Em uma entrevista ao Portal de Notícias G1 , Ivan Mizanzuk, criador do podcast Projeto Humanos, que tem no “Caso Evandro” um dos mais populares do Brasil no gênero, afirmou que o programa teve 4 milhões de downloads. O projeto conta a história do desaparecimento do menino Evandro Ramos Caetano, no início dos anos 1990, em Guaratuba, no litoral do Paraná.
Uma das razões para o sucesso do True Crime é o fascínio que muitas pessoas têm pela investigação. Há casos em que o processo de pesquisa é demorado e complexo. Há uma densa análise acerca do trabalho da polícia, da busca pelo culpado, do julgamento e dos desdobramentos.
No casos dos podcasts, com base em diversas informações coletadas no processo de pesquisa, cria-se uma narrativa que conta a história de forma clara e coerente, em formato de áudio. Isso geralmente envolve a escolha de um narrador ou apresentador que possa guiar o público pela história e fornecer contexto para os eventos que estão sendo descritos. É o caso do podcast Praia dos Ossos.
Branca Vianna, fundadora e presidente da Rádio Novelo, foi também apresentadora do podcast Praia dos Ossos, que conta a história por trás do assassinato da socialite Ângela Diniz. A produção foi ao ar em 2020 pela Rádio Novelo e, além de Branca, também contou com a colaboração de Flora Thomson-Deveaux, diretora de pesquisa, e Paula Scarpin, diretora de criação.
De acordo com Branca, o Praia dos Ossos não é um podcast de True Crime, embora a percepção de ouvintes e de fãs do gênero é de que o podcast se encaixa, sim, no gênero. Para ela, o feminicídio de Ângela Diniz é o ponto central do projeto do podcast, bem como as discussões em torno da justiça, do feminismo e da própria figura da socialite: “Ela era como uma influenciadora da época”, comenta, sobre Diniz.
A ideia de produzir um podcast sobre o assassinato da socialite mineira, cometido por seu companheiro Doca Street, surgiu de uma conversa com Flora e Paula. Branca relata que Paula, apaixonada por histórias de crimes reais, não tinha conhecimento sobre o delito que causou comoção nacional em 1976. Branca e Flora souberam imediatamente que era uma história que precisava ser contada. O trio optou por produzir o podcast e resolveu sair de suas ocupações para dar início ao processo de produção que se tornaria um sucesso no Brasil anos depois.
Uma produção, no entanto, precisa de um bom roteiro, uma boa pesquisa e uma boa apuração para sair do papel. Foi por esse aspecto, então, que Branca destaca a importância de Flora para a criação do Praia dos Ossos. “A Flora é quem fez a pesquisa e quem estava comigo em todas as entrevistas. Ela era quem estava mais mergulhada no material e a gente precisava muito dela para poder entender. Porque a gente fez mais de 60 entrevistas, eram muitas horas e tinha muito material de pesquisa que a Flora tinha levantado”.
Apesar disso, Branca revela que o processo para juntar material foi muito complicado, uma vez que o crime havia sido cometido 44 anos antes do lançamento do podcast. A apresentadora afirma que a primeira dificuldade foi “encontrar áudio”, uma vez que o julgamento do crime foi o primeiro a ser transmitido ao vivo pelas rádios no Brasil. A equipe precisou contratar Antônio Venâncio, grande pesquisador de cinema, que participou do processo de pesquisa de várias produções brasileiras, como A Música segundo Tom Jobim, Tropicália e Raul – O Início, o Fim e o Meio.
Branca também relata que precisou lidar com as entrevistas de pessoas que nunca foram entrevistadas anteriormente. A apresentadora revela que a equipe precisou tomar um certo cuidado para lidar com essas pessoas, que estavam envolvidas direta e emocionalmente com a história. “A gente tomava muito esse cuidado de que a gente estava lidando com pessoas que eram basicamente virgens de entrevistas e que estavam falando de questões muito traumáticas da vida delas”.
Em uma produção True Crime, poucos são os profissionais que têm a oportunidade de ficar frente a frente com o autor do crime e entrevistá-los para deixar o produto ainda mais completo. No Praia dos Ossos, Branca e sua equipe conversaram com Doca Street, assassino de Ângela Diniz. A apresentadora, no entanto, conta toda a tensão por trás da entrevista – que, se dependesse de Doca, nunca teria acontecido. “A gente não tinha a menor ideia de como ia ser a entrevista, nem se ele ia aparecer, na verdade. Foi na casa daquele amigo dele, que é caçador, que levou ele pra caçar na África nos anos 1950. Eles são amigos há muito tempo, e a Cláudia, uma das produtoras, conseguiu fazer amizade com esse amigo dele. O Doca disse pra gente, naquele dia, que tinha ido por causa do amigo”.
Quando, finalmente, estava na presença de Doca, Branca afirma que jamais poderia deixar aquela oportunidade passar e tentou deixá-lo o mais confortável possível, para que tudo saísse como o planejado.
Meu medo naquele momento, e acho que dá pra sentir isso na minha voz, era ele ir embora. Eu ficava pensando que não podia perder aquela entrevista. Eu passei a primeira meia hora da entrevista achando que ele iria embora, porque ele não queria sentar. Ele ficou encostado no braço da poltrona durante uns 30 minutos, de óculos, sem tirar, sem sentar. O Jorge, amigo dele, preparou uma mesa com lanches maravilhosos. Eu queria tomar chá, queria que o Doca tomasse chá, que o técnico de sessão tomasse chá. Eu queria todo mundo lá comendo sanduíche para dar uma acalmada na coisa”.
Branca Vianna, sobre a entrevista com Doca Street
Doca Street foi condenado à pena de reclusão de dois anos, com direito a suspensão condicional da pena, em 1979, pela morte de Ângela Diniz. Branca destaca que não estava ali, durante a entrevista, para julgá-lo, o que já havia acontecido 40 anos atrás. A apresentadora tentou passar essa ideia para ele e diz que a experiência vivida em outras entrevistas foram fundamentais para aquele momento.
Naquela altura, eu já tinha entrevistado tanta gente relutante, tanta gente que estava ambíguo com relação querer me dar entrevista, que eu já sabia meio como fazer. Você vai conversando sobre outras coisas, sobre o tempo, sobre a casa do Jorge. Então, não é que tivesse falta de assunto, sabe? Para você fazer uma conversa lateral que não vai direto ao assunto. Chegou uma hora que o Doca sentiu que eu não estava lá pra acusar ele de nada. Ele foi acusado, condenado e cumpriu prisão. Acho que ele foi relaxando, foi vendo que a gente não estava lá pra brigar, nem fazer discurso. Ele foi vendo que podia confiar em mim, e podia mesmo”.
Branca Vianna, sobre a entrevista com Doca Street
Ouça o Praia dos Ossos:
As produções True Crime buscam contar histórias de crimes reais, que podem ser envolventes e informativas, mas também levantam questões éticas importantes. A produção dessas histórias exige uma abordagem sensível e cuidadosa, para garantir que a dignidade e o respeito às vítimas e suas famílias sejam preservados, uma vez que, envolvem e afetam a vida de pessoas reais, incluindo vítimas, familiares, amigos e até mesmo os acusados.
Beatriz Trevisan, produtora, repórter e roteirista, participou da produção dos podcasts A mulher da casa abandonada e O Ateliê, publicados pela Folha de S.Paulo e apresentados pelo jornalista Chico Felitti. Ela explica como lidar com os impasses éticos presentes na narrativa de histórias criminais e fala sobre os cuidados ao conversar com as pessoas envolvidas.
Ouça o áudio de Bia Trevisan:
Ouça também o podcast O ateliê:
Os fãs de True Crime são pessoas fascinadas por histórias reais de crimes, investigações e julgamentos. Eles são atraídos por detalhes gráficos e chocantes, mas também podem estar interessados em entender as motivações e a psicologia do criminoso, a curiosidade sobre os detalhes do crime e a busca por respostas sobre como e por que esses eventos aconteceram.
Guilherme Costa, 27 anos, é apaixonado por produções de True Crime. O curitibano consome filmes e séries do gênero e afirma que o seu interesse começou após assistir a minissérie Cena do crime: Mistério e morte no Hotel Cecil, que narra o desaparecimento e a morte de Elisa Lam. “Era um dia normal, eu estava procurando algo para assistir e vi que a Netflix havia lançado uma série nova, sobre a morte de uma jovem que ganhou bastante repercussão nos Estados Unidos. Desde então, eu fiquei apaixonado por esse tipo de conteúdo e comecei a consumir cada vez mais”.
Apesar da brutalidade e da tragédia que envolve as produções por trás desses crimes, Guilherme compara as histórias True Crime com os contos ficcionais e diz que a diferença, infelizmente, é que os crimes envolvem pessoas de verdade. “Pra mim, as histórias sobre esses crimes são como as outras histórias. A diferença é que, infelizmente, as pessoas morrem de verdade”. Apesar disso, ele destaca que as produções True Crime, ao contrário das ficcionais, geram uma curiosidade nos espectadores, que começam a buscar mais informações sobre os crimes e se envolvem de alguma forma.
Em uma história ficcional, por exemplo, você assiste por algumas horas e depois tudo acabou, porque você sabe que não é de verdade. No True Crime é o contrário. Você sabe que a história não se limita somente ao que foi contado ali na série ou no filme. Você sabe que existem outros detalhes e informações que às vezes não foram contados por vários motivos. Aí você começa a pesquisar na internet pra saber como aconteceu, o que aconteceu, como o caso foi solucionado, como o assassinato está nos dias atuais”.
Guilherme Costa, fã de True Crime
Ele acredita que essas produções são importantes para as pessoas saberem lidar com as situações que as vítimas vivenciaram e conseguir evitar se algo semelhante vier a acontecer. “Acho que depois que você começa a consumir as produções True Crime, você ativa um senso diferente na sua vida. Você anda na rua mais atento, você presta mais atenção quando sai de casa. Isso pode ser um pouco ruim, psicologicamente falando, mas também pode evitar com que você seja vítima de algum crime, uma vez que você fica muito mais esperto em situações atípicas”, conta.
Julia Vargas, estudante de Jornalismo, também é fã do gênero. A belo-horizontina conta que começou a consumir este tipo de conteúdo ainda na infância, por influência da mãe. “Meu interesse por True Crime começou quando eu era bem nova, acho que mais nova até do que seria o adequado. A minha mãe sempre gostou muito de séries sobre direito, investigação policial, então eu estava sempre assistindo. Eu passei minha infância assistindo muita televisão, com minha mãe. Ela acabava assistindo programas como Criminal Minds, Law and order, CSI, e eu sempre assistia junto. À medida em que eu fui crescendo, passei a me interessar sobre isso. Hoje em dia eu sou alucinada com o True Crime“.
Julia acha que, realmente, o gênero trata muito de crimes hediondos e, em sua maioria, de situações inimagináveis. Entretanto, ela destaca que por trás do gênero existem debates importantes e afirma que o True Crime colocou em destaque assuntos que antes não eram mencionados.
Ouça o depoimento de Julia Vargas:
Reportagem desenvolvida por Maria Eduarda Oliveira, Ricardo Vaz de Melo e Rúbia Andrade para a disciplina Laboratório de Jornalismo Digtal, no semestre 2023/1, sob a supervisão da professora Verônica Soares da Costa.