Fé e fúria é um documentário sobre a mistura entre religião e poder. Com depoimentos gravados entre 2016 e 2018, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte (onde vive o diretor, Marcos Pimentel), o filme mostra situações de intolerância religiosa que, quatro anos depois, continuam a ganhar força no Brasil – em especial, no período eleitoral.
O filme traz um novo olhar sobre o tema, mostrando como as alianças não declaradas entre traficantes e lideranças religiosas de favelas das duas cidades potencializam a intolerância religiosa. Por meio dos depoimentos dos entrevistados, é possível observar como as narrativas dos fiéis de diferentes religiões se constroem a respeito da liberdade de culto e, ainda, como a fé se expressa das mais variadas formas para diferentes pessoas.
Graduado pela Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba, e especializado em cinema documentário na Alemanha, Marcos Pimentel dedica sua obra ao Brasil contemporâneo l. O diretor de Biografia do tempo e A parte do mundo que me pertence já foi premiado 92 vezes e participou de mais de 700 festivais de cinema ao redor do mundo.
Abaixo, você confere a conversa das repórteres Helena Tomaz e Isadora Pimenta com Marcos Pimentel sobre seu novo documentário, que é lançado hoje. A entrevista foi editada para fins de clareza e concisão.
O documentário se passa em várias favelas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Por que a escolha pelas duas cidades, especificamente? Você notou alguma diferença entre as histórias relatadas nos dois lugares?
Começou em Belo Horizonte, porque eu moro aqui, comecei a fazer essa pesquisa aqui e achei casos bastante interessantes , personagens que me possibilitavam falar desse tema. O recorte do filme é em territórios periféricos, então, a gente está mostrando o tempo todo favelas, aglomerados, subúrbios, a perifa de grandes centros urbanos.
Para mim, era muito importante mostrar como Belo Horizonte dava conta de mostrar coisas que estavam sendo reproduzidas em várias outras capitais do país. Só que eu não podia ficar sem o Rio de Janeiro porque tem uma relação com o tráfico um pouco diferente daqui: as facções estão super presentes há muito tempo, e com muita relação com as religiões também. A forma como as facções se dividem de acordo com a simpatia pelos adeptos de uma religião ou de outra, para mim, era importante estar [no documentário].
O que tem de diferença é que os donos dos morros e favelas de Belo Horizonte têm um arsenal menor do que os traficantes do Rio de Janeiro, e isso diferencia na forma de intimidação. Mas, por outro lado, Belo Horizonte, por mais que seja uma cidade em que os donos dos morros estão menos armados, eles continuam influenciando as crenças que são exercidas nos territórios que estão sob seu comando. Isso é muito parecido, são fenômenos que estão se repetindo, mesmo que aqui não seja tão forte como se dividem as facções no Rio de Janeiro.
O filme tem depoimentos de pessoas muito diversas. Como as pessoas que aparecem nele foram selecionadas? Como você chegou até elas?
Nas minhas andanças pelas periferias de Belo Horizonte, sempre me chamou muita atenção o fato de ter uma pluralidade de formas de expressão coexistindo dentro de um espaço pequeno. Tudo muito aglomerado, muito colado, é muito comum você ver, por exemplo, a casinha da pastoral de uma igreja católica ao lado de uma igreja evangélica, ao lado de um terreiro de candomblé, ao lado de um terreiro de umbanda. Tudo acontecendo ao mesmo tempo e ocupando o mesmo espaço.
De uns tempos para cá, começou a mudar um pouco a geografia e a iconografia desses espaços. Como as religiões de matriz africana sempre tiveram um respaldo grande dentro dessas comunidades (a gente está falando de locais com grande concentração de população negra), não só dos moradores, mas também dos donos do morro – que deram um respaldo simbólico de empoderamento daqueles lugares, porque os frequentavam – mas também econômico. De repente isso começou a sumir, você começou a ver que os ícones da cultura negra começaram a mudar, e isso não tem a ver somente com a modernização. Chegou uma hora em que isso ficou tão acentuado, não era só porque as igrejas evangélicas estavam “estourando”, mas também porque começou a haver a proibição de algumas práticas, e isso começou a sair na imprensa, a mídia começou a noticiar.
Eu consumo muito jornal e comecei a ver muita matéria saindo sobre esses casos de intolerância religiosa. Me chamava atenção que esses casos aconteciam nas comunidades e me parecia uma contradição, sabe? Por que as religiões de matriz africana, nos locais de maior concentração de população com herança africana, vão deixar de existir? O que está acontecendo aí? Para mim, tinha uma coisa interessante a ser investigada. Aí eu comecei a chegar até essas pessoas e, ao escutar essas histórias, eu pensava “caramba, é muito mais complicado do que parece. Não são casos isolados, está acontecendo em todas as comunidades, em todas as periferias.”
O avanço muito grande do número de evangélicos no país nas últimas décadas tem modificado o perfil religioso do morro, mas também está influenciado pela crença religiosa de quem comanda aquele morro. Enquanto eles estavam sob a orientação de outras religiões, que eram mais tolerantes, não existia isso. A partir do momento em que a orientação religiosa deles se altera e eles começam a escutar líderes religiosos mais intolerantes, começam a defender e a autorizar essas práticas dentro da sua área de atuação.
Para mim, é muito importante chamar atenção que, de jeito nenhum, podemos colocar em caixinhas, considerando que todo evangélico é intolerante. Não é. De forma alguma. Tanto que o filme mostra isso, nós temos um leque enorme de personagens, e a gente tem muitos que são evangélicos e são tolerantes. A gente tem pastores progressistas, ligados ao moovimento negro, que estão ali tentando explicar o que está acontecendo e condenando essas práticas.
Tudo nasceu de eu beber da água dessas matérias que eu lia nos jornais e começar a ir até esses lugares. A gente montou uma equipe de pesquisa e foi a campo atrás desses personagens. A partir do momento em que a gente encontrava essas histórias, eu ia convivendo com eles e conquistando essa confiança para que eles nos apresentassem outras pessoas que estivessem sofrendo opressões parecidas e que topassem dividir as suas histórias com o filme.
No documentário, vemos depoimentos de fiéis da igreja neopentecostal sobre a falta de fé e a necessidade do acolhimento religioso em favelas, seguidos por relatos de violência e intolerância religiosa sofridos por membros da umbanda e do candomblé. Qual foi a sua intenção com esse enquadramento?
No momento inicial do filme, a gente apresenta o que o filme chama de “os guerreiros”, aqueles que estão ali, dando a cara a tapa e defendendo seus discursos. São os únicos personagens que a gente acompanha algum desenvolvimento, porque a gente não coloca o mesmo peso para todo mundo que aparece ali, tem alguns que a gente permite aparecer mais, tem alguns que estão ali só para dar o testemunho de algum episódio, e outros que vão comentando várias coisas que acontecem ao longo do filme.
Naquele momento, a gente coloca isso como um discurso que é muito forte e aponta que eles têm muita certeza de como seria uma conduta de um cristão. A partir do momento em que eles têm tanta certeza disso, eles começam a condenar aqueles que não agem da mesma forma.
Uma grande questão do filme é que ele tem um movimento que vai do micro para o macro: parece, em um primeiro momento, que as histórias são isoladas, até que a gente vai abrindo e chega na sociedade, mostra como isso tudo está conectado. Uma das grandes questões é que a gente está vivendo uma onda conservadora tão grande, que não é tolerante ao diferente, não aceita diversidade de pensamento, de prática religiosa, acho que essa é uma das grandes questões do Brasil hoje, e que está escancarada nessa história.
Nós temos um personagem fantástico, e super importante, que é o Fabrício, um cara cheio de tatuagem, que faz suspensão corporal, tem implante na mão, um monte de piercing e que é condenado, pelos próprios evangélicos como alguém relacionado ao satanismo – para usar uma palavra que está em voga. Depois a gente descobre que ele é evangélico, que ele tem “Jesus Cristo” tatuado nas costas, que ele tem salmos, efésios, capítulos e versículos tatuados. Ele é evangélico, então ele vai ser intolerante, já que eu estou mostrando, nesse primeiro momento, evangélicos intolerantes? Não, o Fabrício não é nada intolerante!
Mais tarde, até, o Ivanir nos dá uma pista de que não é uma guerra, e sim um genocídio, porque um lado tem poder armado e o outro não tem, a gente está vendo um genocídio ali. Esses guerreiros estão com os seus discursos super afiados, prontos para se defender. Uma parte desses guerreiros não aceita que se pense diferente deles.
Nos depoimentos, vemos a discussão sobre a linguagem bélica usada por membros da igreja neopentecostal. Como você vê o crescimento desse fenômeno no cenário político brasileiro?
Uma coisa muito curiosa é que a gente filmou entre 2016 e julho de 2018, a gente não filmou o período eleitoral, mas tudo o que a gente mostra no filme estava na pauta da etapa final daquela eleição. A gente estava falando ali de intolerância religiosa, de massacre de minorias, de poder armado da polícia e da milícia, da UPP. A gente está falando de usar a religião e a Bíblia e o nome de Deus para justificar coisas injustificáveis. A gente está falando de racismo, de fascismo, de não aceitação ao que é diferente, de silenciamento de minorias e de questões que fogem ao pensamento vigente, ao padronizado.
Todas essas coisas estavam pairando sobre a sociedade brasileira, até que apareceu uma figura que conseguiu reunir todos esses elementos e direcionar para o discurso dele e para a plataforma de governo que ele vem realizando nos quatro anos depois que foi eleito. Hoje está super exagerado, mas você vê que ele fazia arminha com a mão naquele momento ali, começou ali.
As imagens foram gravadas entre 2016 e 2018. Porque ele está sendo lançado agora, quatro anos depois?
O filme foi lançado em festivais em novembro de 2019, no IDFA [International Documentary Filmfestival Amsterdam], que é o maior festival de documentários do mundo, foi muito bem lá, saiu com convites para um monte de festivais, mas aí veio a pandemia. Acabaram os festivais e o mundo do cinema viveu uma geladeira completa. Foi o primeiro setor a fechar e o último a abrir, por isso, o que a gente está encontrando hoje é uma loucura: as salas reabriram e, de repente, tem muito filme para pouco cinema, os filmes têm ficado pouco tempo em cartaz. Se não fosse pela pandemia, a gente tinha lançado antes.
Qual a diferença entre contar as histórias dessas pessoas agora ou há quatro anos?
Eu acho que essas pessoas continuam sofrendo os mesmos problemas, mas esses problemas estão cada vez mais pesados, devido à política armamentista defendida pelo Bolsonaro. Isso é algo que, para essas populações, faz uma diferença muito grande. Isso, sim, eu acho que mudou: está pior.
A distribuidora programou o filme para o mais próximo possível do período eleitoral, porque era muito evidente que isso seria pauta do processo eleitoral, tanto é que a questão da intolerância religiosa, a questão da religiosidade está o tempo todo batendo na porta dos debates.
Como se deu a sua relação com os participantes do filme? É possível se manter mais distante, ou você acabou se envolvendo com as histórias?
O envolvimento é sempre total. Depois que eu filmo, eu fico visitando e revisitando a história deles constantemente, mas, para mim, é muito claro, por mais tempo que eu passe com eles, que eles são personagens de filmes, mas não são amigos. Posso até virar amigo de um personagem, mas sempre tive essa clareza de que teve uma coisa que nos uniu, que foi a feitura de um filme. Então, o tempo todo, ele está ali, defendendo a história dele, e eu estou tentando contar uma história da qual ele faz parte. Acho que, sim, existe distanciamento, acho que isso é uma questão de postura, mas isso não impede de eu ter proximidade.
A cultura mineira tem ganhado mais visibilidade pelo Brasil, especialmente com a música e os festivais que acontecem em BH. Agora, com Marte Um, o público tem começado a se voltar, também, para os filmes feitos aqui. O que as pessoas encontrarão ao se deparar com o cinema mineiro?
Elas vão encontrar coisas incríveis acontecendo. Eu tive uma conversa deliciosa com o Gabito [diretor de Marte Um] na semana passada sobre isso. Acho que estamos – todos nós que fazemos cinema aqui em Minas Gerais – muito felizes e satisfeitos com o que está rolando. A gente tem um número grande de cineastas conseguindo fazer filmes que têm viajado bastante, que têm dito coisas super legais para as pessoas.
Isso não é de agora, a gente tem trabalhado nisso a muito tempo. Todo mundo carregando [o cinema com] muito suor nas costas, quilômetros e quilômetros de estrada e estamos batalhando para que o cinema mineiro tenha mais visibilidade. É um cinema muito interessante, muito diverso, extremamente rico, e que tem trazido filmes que dizem coisas muito importantes para as pessoas nesse momento. Os filmes são tão interessantes, acho muito louco que nenhum se parece. É muito comum e muito ingrato chamarem atenção para a função de direção de produção. Você tem um número muito grande de realizadores, homens, mulheres, ralando, e também um exército de pessoas trabalhando nos bastidores.
Quando o tempo passar e a gente olhar para esse período com alguma distância, a gente vai falar c*r*lho, quanta coisa legal surgiu nesse espaço de tempo!” Estamos torcendo muito para que Marte Um abra quinhentas portas para o cinema mineiro!
Você poderia indicar outros documentários de Minas Gerais para quem gostar de “Fé e Fúria”?
Vejam tudo o que vocês conseguirem ver. Dos filmes do João Dumas, da Marília Rocha, da Clarissa Campolina, dos meninos da Filmes De Plástico, do Ricardo Alves Júnior, do Marcelo Lin. Tem muita coisa na fronteira entre ficção e documentário acontecendo aí. Infelizmente, recentemente perdemos o Cássio Pereira dos Santos, um cara de Uberlândia que fazia filmes incríveis e estava circulando pelos festivais com Valentina, o primeiro longa dele. Foi uma grande perda para o cinema mineiro. Tem muita coisa legal acontecendo e hoje em dia é muito fácil o acesso, tem muitos filmes em cartaz no momento. Hoje em dia tem muita coisa legal para ser vista e oportunidade não falta!
Para finalizar: como seria um dia de gravação ideal para você?
Um dia de gravação ideal é quando eu volto para casa com um filme que eu não concebi. Por mais que exista planejamento, que eu me preocupe em organizar as ideias, em saber muito bem o que eu quero tirar daquela situação, o melhor dia é quando a realidade me surpreende e me oferece o acaso e o imprevisto, que apontam o filme para um outro lugar! Esse é o dia perfeito para mim!
Entrevista conduzida pelas repórteres Helena Tomaz e Isadora Pimenta
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