Você já questionou a forma com a qual casos de violência contra a mulher no futebol são retratados na mídia? Nesta reportagem, foi feita uma análise extensa da cobertura desses crimes cometidos por figuras do esporte ao longo das décadas a partir do Escândalo de Berna, mais conhecido hoje como Caso Cuca.
A seguir, você encontra acervos de veículos de imprensa, entrevistas com jornalistas especialistas e um retrato detalhado dos desdobramentos de casos e repercussões que marcaram o jornalismo esportivo brasileiro.
O Escândalo de Berna
Em julho de 1987, o clube Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense realizou uma excursão para Berna, a capital da Suíça, para disputar a Copa Philips, um torneio amistoso internacional. Durante a viagem, nos dias 30 e 31 de julho, quatro jogadores do time gaúcho foram presos, acusados pelas autoridades suíças de estuprar Sandra Pfaffli, uma garota menor de idade, no quarto 204 do hotel Metropol.
Os atletas eram Henrique Etges, Fernando Gaúcho, Eduardo Hamester e Alexi Stival, mais conhecido como Cuca. Os jogadores ficaram detidos por 28 dias, mas voltaram ao Brasil após o pagamento de fiança. O episódio ficou conhecido como O Escândalo de Berna.
Na época, os acontecimentos a respeito do caso de violência foram noticiados por diversos veículos internacionais e brasileiros, entre eles o jornal O Estado de São Paulo. No dia 1° de agosto, um dia após a prisão dos jogadores, o Estadão publicou uma nota junto dos resultados dos campeonatos internacionais. O texto relatou a prisão e a acusação de estupro.
É ainda mencionada a versão de um dos funcionários do clube, que negou o estupro: “Segundo o vice-presidente de futebol do Grêmio, Raul Régis de Freitas Lima, que acompanha a delegação, a menina invadiu o quarto dos jogadores no hotel Metropol pedindo flâmulas e camisetas do clube e, depois de um tempo, saiu do local inclusive vestindo uma das camisetas”.
Acervo: O Estado de São Paulo.
Já no dia 6 de agosto, o Estadão publicou mais uma nota sobre uma possível liberação de Fernando. De acordo com o texto, o presidente do Grêmio na época, Macedo e Silva, afirmou que os principais acusados eram Henrique e Eduardo, que confessaram terem mantido relações sexuais com a menina, que tinha 13 anos em 1987, mas foi descrita possuindo 14.
Erro na idade de Sandra Pfaffli: equívoco ou conveniência?
Essa informação incorreta sobre a idade da garota suíça, que se repetiu na cobertura de vários outros veículos, pode inclusive ter ‘amenizado’ a violência cometida contra ela na percepção da sociedade brasileira, já que a idade de consentimento estabelecida pelo Código Penal em 1940, que era vigente na época e permanece até os dias atuais, é de 14 anos.
Assim, esse ‘equívoco’ abre precedentes para especulações de que Sandra Pfaffli teria condições de consentir e que, caso o tivesse feito, o crime não configuraria como estupro no Brasil. Em contrapartida, na Suíça essa informação errada não faria diferença, já que a idade estabelecida pela lei é de 16 anos.
A nota ainda traz a fala de Peter Schauff, advogado dos atletas presos, que disse “não ter dúvidas de que existe culpa no caso” mas “distribuiu um comunicado lamentando o sensacionalismo criado em torno de um delito que ele considera banal”. O jornal ainda veiculou outra notícia sobre a situação com o título: “Caso Grêmio: situação ‘delicada e difícil”.
Mais tarde, o jornal Folha de São Paulo publicou que o Consulado do Brasil em Genebra havia informado a conclusão do juiz de que “não se tratavam de pessoas perigosas à sociedade, para as quais se justificaria a prisão preventiva”, pela falta de caracterização de violência no ato. A notícia não obteve muito destaque, dividindo a página com um texto que analisava o desempenho esportivo da equipe. Nada foi citado sobre a vítima.
No dia 28 de agosto daquele ano, O Globo tratou sobre a libertação dos acusados, que aconteceu no dia 27 para Fernando e no dia 28 para o restante. O texto com título “Tudo começou quando Sandra tirou a blusa e pediu uma camisa do time” descreveu a aparência da vítima e suas supostas ações no dia do crime, ao alegar que ela estaria “aparentando mais do que os 13 anos que tem”. A notícia afirmou que a garota “queria uma camisa de presente e, para se fazer entender ficou com os seios à mostra e acabou se envolvendo sexualmente com os três brasileiros”
Depois de traçar todo o acontecimento de forma descritiva e machista, o texto ainda afirma sem designar nenhuma fonte que a denúncia só aconteceu devido aos ciúmes de um suposto namorado de Sandra. Os quatro acusados foram soltos para responderem em liberdade sob o pagamento de fiança de 1.500 dólares cada um, que atualmente valem por volta de R$ 24 mil, com correção monetária. A razão pela Justiça suíça ter liberado os jogadores, de acordo com a maioria dos veículos brasileiros, foi a “ausência de violência” no ato sexual cometido contra a garota de 13 anos.
Assim, os atletas do Grêmio voltaram ao Brasil e foram recebidos de forma calorosa em Porto Alegre com “uma chegada emocionante” como afirmou o jornal gaúcho Zero Hora na época. Além disso, o veículo ainda destacou que na recepção “a torcida vibrou, cantou o hino do Grêmio, aplaudiu os jogadores e xingou a jovem suíça”.
O Escândalo de Berna e a imprensa gaúcha
A cobertura do Escândalo de Berna e seus desdobramentos na década de 1980 recebeu um maior destaque pela imprensa gaúcha, já que os acusados e, mais tarde, condenados, atuavam pelo Grêmio. Embora muitos desses registros tenham sido perdidos ou estejam inacessíveis, o relato de Luiz Carlos Reche, jornalista e comentarista esportivo, esclarece como as informações eram passadas na época.
O comunicador explica que cobriu o caso enquanto estava na Rádio Guaíba, onde trabalhou por 29 anos, acompanhando os acontecimentos e informações divulgadas na Suíça com auxílio de tradução. Luiz Reche aponta os problemas na cobertura realizada em 1987:
“Na época, se dizia que tinha que perdoar, que tinha que relevar porque também não tinha muita prova. Acho que houve sim um certo machismo e não se imaginou que anos depois o Cuca iria pagar um preço.“
Luiz Carlos Reche, comentarista esportivo.
Além disso, Carlos Guimarães, líder da editoria de esporte do Grupo Bandeirantes no Rio Grande do Sul, que acompanhou as publicações em 1987 e nos anos seguintes, destaca o esquecimento do caso.
“Essa cobertura ficou esquecida por muito tempo. Ninguém falava do assunto, nem mesmo quando os personagens em questão estiveram em evidência. Simplesmente não tinha viés algum: o que houve foi um grande apagamento, um grande silêncio, uma grande negligência da mídia.“
Carlos Guimarães, jornalista.
O jornalista afirma que o Escândalo de Berna e outros casos de violência contra a mulher no futebol que aconteceram nessa época eram simplesmente esquecidos. O que restou deles, de acordo com Guimarães, foi a leitura da mídia e da sociedade, que traz a carga do patriarcado, do machismo e do preconceito.
Condenação dos jogadores e repercussão na mídia
Dois anos depois, em agosto 1989, Cuca, Henrique e Eduardo foram julgados e condenados a 15 meses de prisão e pagamento de multa pelo crime de estupro, cujo valor varia de acordo com o veículo e a data de publicação, mas está entre 4.000 e 8.000 dólares, cerca de R$ 59.000 a R$ 118.000. Fernando foi considerado apenas cúmplice e recebeu uma pena menor. No entanto, nenhum deles compareceu ao julgamento ou cumpriu a pena, já que a legislação brasileira não permite a extradição de brasileiros natos.
Veículo esportivo do estado de São Paulo, a Gazeta Esportiva publicou uma série de reportagens detalhando o caso Escândalo de Berna. A linha do tempo feita pela revista examinou a cobertura desde as primeiras notícias sobre a prisão dos jogadores do Grêmio em 1987 até a condenação em 1989. As reportagens foram assinadas por diversos jornalistas do veículo, que acompanharam de perto o desenrolar dos eventos.
A abordagem inicial da Gazeta minimizou a gravidade das acusações e optou por dar voz ao lado dos acusados, por meio de uma série de entrevistas com dirigentes da equipe do Grêmio. As reportagens relatam a decepção entre os detidos e a expectativa pela liberação dos jogadores.
Outro veículo que também cobriu ostensivamente o caso, informando as atualizações e desdobramentos desde a prisão dos jogadores foi a revista Placar, que inclusive denominou o caso como “Escândalo de Berna”. Em setembro de 1987, a revista publicou que Henrique, Cuca, Eduardo e Fernando foram perdoados disciplinarmente pela diretoria do Grêmio. Além disso, a cúpula do clube também decidiu cobrar os honorários de advogadas e as fianças arcados pelo time, que custaram cerca de 700.000 cruzados, aproximadamente R$ 150.000.
Acervo: Placar
Em sua cobertura, a Placar não se limitou a citar os fatos, mas focou muito também na figura dos acusados, trazendo o “drama dos prisioneiros” e destaque para o trauma que eles teriam sofrido devido ao ocorrido e ao período de reclusão.
Já Sandra Pfaffli teve seu nome e fotos expostos em grande parte da mídia brasileira. Segundo o veículo, a garota foi fotografada sem a sua autorização por Paulo Dias, que trabalhava no Jornal Zero Hora e fez uma campana de cinco dias em frente à casa da menina suíça. Na época, a imagem também foi reproduzida pelo Jornal do Brasil e O Globo, além de oferecida às agências internacionais de notícias.
Acervo: Placar
Enquanto isso, a Placar começou sua primeira publicação sobre o caso destacando Eduardo como um “ex-atleta de Cristo” que ainda mora com os pais, Henrique como um homem que “não bebe nem fuma, costuma aproveitar suas folgas para ficar junto com a família e a noiva”, Fernando como alguém que “nunca foi um paquerador” e Cuca como um homem “discreto” que casou-se com a segunda namorada. Já um texto de 1997 rememorou o caso como uma “festa de arromba” e colocou a menina como a responsável por iniciar um “pesadelo” que “quase estragaria a vida de todos os envolvidos”.
Infantilização dos homens e adultização da menina
A Placar, assim como outras revistas e jornais, assumiu um tom amenizador para cobrir esse caso de violência. Muitos veículos descreveram os jogadores como ‘bons-moços’, pessoas discretas, de boa reputação e ‘de família’, colocando os envolvidos mais como vítimas de um sistema e de sua própria imaturidade do que condenados de um crime. É clara a infantilização desses homens adultos que na maioria das coberturas da imprensa brasileira foram tratados como meninos com um grande potencial e eram promessas no esporte, mas que cometerem um deslize, até mesmo por ingenuidade.
Muitas das informações fornecidas pelos textos publicados não têm relação com o crime e foram usadas como uma espécie de defesa dos condenados, que sofreram um “trauma” e tiraram uma “lição” de todo o escândalo, segundo a revista. Já a menina de 13 anos, que teve seu nome e fotos publicados na maioria dos jornais brasileiros, não teve qualquer tipo de proteção e foi tratada praticamente como uma adulta. Inclusive, sua aparência foi destacada como um fator que contribui para o crime.
O jornal Mulherio como voz feminina na década de 80
Na década de 1980, o coletivo de mulheres do Departamento de Pesquisas da Fundação Carlos Chagas se tornou um importante exemplo da efervescência do feminismo acadêmico. Em 1981, as pesquisadoras desse grupo deram início ao jornal Mulherio. Apesar do curto tempo de circulação (1981-1988), as jornalistas foram dissonantes em relação à mídia hegemônica da época ao noticiar os acontecimentos sob uma ótica crítica e feminista.
Na edição de número 33 publicada em outubro de 1987, Miriam Grossi e Carmen Rial escreveram a matéria intitulada Os estupradores que viraram heróis sobre o Escândalo de Berna. Na reportagem, destaca-se como a imprensa gaúcha transformou os réus em vítimas injustiçadas por meio de uma série de deturpações dos fatos, permeadas pelo machismo. As jornalistas destacam que, na época, veículos do Rio Grande do Sul distorceram os fatos e ajudaram a condicionar a opinião pública a favor dos agressores, que foram recebidos com festa ao retornarem para o Brasil, ainda em 1987.
Acervo: Fundação Carlos Chagas
Após 37 anos da publicação da notícia sobre o Escândalo de Berna, Carmen afirma que a ideia de escrever a matéria e publicá-la no jornal feminista surgiu da indignação em relação à cobertura misógina realizada pela imprensa gaúcha na época e como a sociedade, especialmente do Rio Grande do Sul, reagiu ao caso. Miriam destaca o choque das jornalistas quando chegaram ao aeroporto no dia em que os condenados retornaram ao Brasil: “era assim, quase como se eles tivessem ganho a Copa do Mundo”.
Apesar do esforço dedicado pelas autoras, elas esclarecem que a matéria não teve grande repercussão, já que o Mulherio tinha um alcance muito reduzido, voltado para um público feminista que não se interessava muito por futebol. De acordo com as comunicadoras, o texto foi republicado em dois jornais de sindicatos no Rio Grande do Sul, o que décadas depois permitiu que o artigo viralizasse no FaceBook e as autoras fossem procuradas por grandes veículos como o Globo Esporte e SporTV.
“Atualmente, a sociedade brasileira já tem um outro reconhecimento para a violência, de gênero, então eu acho que tudo isso fez com que essa questão ganhasse importância. A gente até brinca que um artigo escrito nos anos 80 só foi lido efetivamente 35 anos depois, quando a questão voltou. Era um tema que já existia, mas ele só passa a ser representativo, ter uma representação, digamos, pública e política, graças a conquistas, tanto dos movimentos sociais quanto da legislação.”
Miriam Grossi, jornalista e pesquisadora.
As jornalistas pontuam que hoje a matéria escrita por elas e as questões de gênero entram no universo do futebol e são pauta. Dessa forma, segundo Miriam e Carmen, o Jornalismo Esportivo adquire um alcance ainda maior, já que atualmente o interesse do público feminino pelo futebol aumentou e as mulheres começaram a ser legitimamente reconhecidas como interlocutoras nesse campo, tanto como jornalistas em programas esportivos, como espectadoras.
Desdobramentos do Escândalo de Berna e nova cobertura
O Escândalo de Berna começou a voltar aos holofotes somente em 2022, quando alguns portais jornalísticos rememoraram o caso e passaram a chamá-lo de Caso Cuca. Esse trabalho de investigação partiu da rejeição da torcida – especialmente feminina – dos clubes que contrataram o técnico nesse período, como o Atlético Mineiro e o Corinthians.
Em 2023, o Portal GE publicou uma série de reportagens com evidências da investigação e do julgamento que não tinham sido veiculadas no Brasil até então. Essas atualizações expuseram a existência de provas para a acusação, como, por exemplo, a presença de sémen do treinador no corpo da vítima, além do contraste entre as versões apresentadas por Cuca e seus pronunciamentos oficiais.
Dessa forma, em razão da repercussão do caso e da pressão popular, Cuca deixou o Corinthians em abril de 2023 atuando apenas em dois jogos como treinador da equipe. Com isso, o técnico, que estava sendo cotado para treinar a Seleção Brasileira, ficou sem clube e quase um ano sem atuar no futebol.
Ivan Drummond, que atua há 45 no jornal Estado de Minas, pontua que casos envolvendo personalidades do esporte, principalmente do futebol, acontecem e são tratados de forma diferente dos demais. O comunicador ressalta que há muitas figuras idolatradas no meio, o que por muito tempo protegeu e contribuiu para a impunidade de jogadores, técnicos, entre outras pessoas do meio que cometiam crimes e se achavam intocáveis.
Seguindo tal lógica, Breiller Pires, repórter da ESPN Brasil e ex-redator da revista Placar, explica como a imprensa falhou ao longo dos anos em sua cobertura e ressalta como o esquecimento do caso pela mídia fez com que a figura de Cuca fosse desassociada dos crimes que ele cometeu.
“Em primeiro lugar, o Caso Cuca evidencia
Breiller Pires, repórter.
uma falha estrutural grave do jornalismo
esportivo como um todo“
Já Alícia Klein, colunista do Uol Esporte e comentarista no SporTV, também destaca que grande parte das pessoas que tomaram conhecimento do caso em 1987 o trataram como se tivesse pouca relevância.
A jornalista afirma que, com o passar do tempo, houve mudanças na cobertura, um avanço, ainda que lento e longe do ideal, e aponta algumas causas: o acesso à informação junto com a democratização do acesso às plataformas, a manifestação das vítimas e dos coletivos de torcedores e torcedoras, além da presença de mais mulheres no jornalismo esportivo.
A partir disso, Klein pontua que casos como o Escândalo de Berna lembram às pessoas que homens considerados discretos, gentis e castos, também podem cometer atos de violência contra a mulher: “Hoje, felizmente, a gente tem mais clareza e [a violência contra a mulher] é um pouco menos aceita, não que esteja ótimo, mas parte de como isso foi coberto na época, ou deixou de ser coberto depois, tem muito a ver com o fato de que eram homens com perfis muito parecidos com o do Cuca e dos outros jogadores, que também não tinham muito interesse de ficar batendo nesse tipo de história“
Outros casos violência contra a mulher no futebol
O Escândalo de Berna não foi o único caso de violência contra a mulher cometido por figuras do esporte brasileiro. A partir da análise de outros casos, é possível observar algumas mudanças de comportamento da midia em comparação com a cobertura do crime em 1987.
Robinho
Robson de Souza, o Robinho, uma das promessas do futebol brasileiro na década de 2000, teve sua trajetória manchada por um crime cometido fora dos gramados. Condenado pela participação no estupro coletivo de uma jovem de 23 anos em Milão, na Itália, em 2013, o ex-jogador agora cumpre pena no Brasil, mas o processo até sua prisão foi longo.
No dia 22 de janeiro de 2013, Robinho, então jogador do Milan, e mais cinco homens foram acusados de violentar uma jovem em uma boate de Milão. O caso foi investigado e, em 2017, o tribunal italiano o considerou culpado, proferindo uma sentença de nove anos de prisão. Apesar da gravidade das acusações, a cobertura midiática inicial foi tímida, refletindo uma tendência frequente de minimizar ou negligenciar crimes sexuais que envolvem celebridades. A pouca atenção ao caso na época reforça como o tratamento da mídia pode influenciar a percepção pública.
A partir daí, o caso passou por uma série de desdobramentos e tentativas de extradição por parte da Itália. Contudo, a legislação brasileira não permite a extradição de seus cidadãos, o que levou o caso a ficar estagnado até março de 2024, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a prisão imediata de Robinho para cumprimento da pena em solo brasileiro. Hoje, o ex-jogador se encontra no presídio de Tremembé, em São Paulo.
Em outubro de 2020, a notícia da contratação de Robinho pelo Santos trouxe à tona um capítulo sombrio da carreira do atacante. O jogador, então com uma condenação em primeira instância na justiça italiana por estupro, já havia defendido o Santos em outras passagens marcantes, mas essa seria sua última e mais polêmica aparição com a camisa alvinegra.
Os jornalistas do portal Globo Esporte foram os primeiros a trazer detalhes do processo, incluindo transcrições de conversas interceptadas pela polícia italiana, em que o jogador falava abertamente sobre os eventos daquela noite. Essas revelações, que mostravam frases atribuídas ao jogador, provocaram indignação do público e culminaram com a rescisão de contrato apenas uma semana após o anúncio de sua contratação no Santos. Nesse ponto, a imprensa desempenhou um papel crucial em amplificar a seriedade do caso, com os vazamentos ajudando a moldar o debate público e a gerar pressão não apenas sobre Robinho, mas também sobre o clube e seus patrocinadores. A repercussão expôs como a mídia pode atuar como catalisadora de mudanças quando explora temas sensíveis com profundidade e responsabilidade.
Após a rescisão com o clube paulista, o caso tomou novos contornos na mídia brasileira. Em um áudio vazado, Robinho acusava a imprensa, especialmente a Rede Globo, de perseguição e se comparava ao então presidente Jair Bolsonaro, conhecido por suas críticas à mídia. Nesse desabafo, o jogador afirmava ser vítima de uma perseguição midiática injusta.
No entanto, o cenário ficou ainda mais complexo no dia seguinte à rescisão, quando Robinho concedeu uma entrevista exclusiva ao UOL. A entrevista revelou um jogador “meio perdido e rodeado de assessores”, segundo a equipe de jornalistas que o entrevistou. Essa entrevista destacou a estratégia de defesa do jogador, marcada por tentativas de controle narrativo que falharam em transmitir confiança. A avaliação crítica dos jornalistas sobre o comportamento de Robinho ajudou a evidenciar uma desconexão entre sua postura pública e a gravidade das acusações, reforçando o papel da mídia em desmascarar discursos inconsistentes.
Na avaliação dos repórteres, Robinho não parecia compreender a gravidade das acusações e, durante a conversa, assessores interromperam diversas vezes os jornalistas, aparentemente com o intuito de controlar as declarações do atleta.
Desde a primeira condenação de Robinho, veículos alternativos de mídia feminina, como o portal Dibradoras, chamaram atenção para a seriedade do caso. Em uma reportagem de 2017, feita em decorrência da primeira condenação, argumentava que o futebol deveria seguir as mesmas regras da sociedade e que crimes não podem ser ocultados sob o manto do entretenimento. A cobertura destacou que o comportamento de astros do esporte deve ser avaliado com seriedade, refletindo o papel social do futebol e das figuras que o compõem.
Esse posicionamento foi oposto ao da grande mídia, que só exerceu pressão pública sobre Robinho três anos após sua condenação inicial. Contudo, com a cobertura mais agressiva em 2020 e o vazamento de detalhes sobre o caso, a postura crítica de veículos de comunicação influenciou a opinião pública e gerou uma pressão significativa sobre patrocinadores do Santos. Em resposta à repercussão negativa, marcas ameaçaram rescindir seus contratos com o clube caso Robinho permanecesse no elenco. Essa pressão comercial foi decisiva para a rescisão final.
Mais tarde, o portal UOL lançou uma série de 7 episódios do podcast “Os Grampos de Robinho” detalhando o caso, incluindo trechos de conversas captadas pela polícia italiana entre Robinho e amigos que participaram do crime. O formato aprofundado e investigativo do podcast demonstrou uma tendência crescente de explorar casos complexos com narrativas detalhadas e bem fundamentadas, indo além das notícias diárias. Esse tipo de cobertura não apenas documenta os fatos, mas também educa o público sobre questões sociais mais amplas, como o papel do privilégio e da impunidade em crimes envolvendo figuras públicas.
Os áudios revelavam o que a justiça italiana classificou como evidências comprometedoras. Além de conversas telefônicas, áudios de conversas ocorridas no carro do jogador também foram expostos. Ao longo do podcast, desdobramentos e detalhes do ocorrido vão sendo revelados conforme a investigação do caso avança. Robinho se vê encurralado e praticamente confessa o crime em conversa com os amigos. O podcast utiliza uma narrativa dramática que escala conforme os fatos vão se revelando, a partir das próprias conversas de Robinho e cúmplices. O próprio conteúdo bruto dos áudios é extremamente agressivo e não sofre alteração midiática, para não poupar a imagem do jogador.
Em 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria de votos favoráveis à manutenção da prisão de Robson de Souza, o Robinho, no Brasil. A decisão está relacionada ao cumprimento de sua pena de nove anos de prisão por envolvimento no estupro coletivo de uma jovem em Milão, em 2013.
A defesa de Robinho tentou reverter a decisão, argumentando questões como a possível extorsão e maus tratos durante o processo, mas as instâncias superiores optaram por mantê-lo encarcerado no Brasil, após o tribunal italiano considerá-lo culpado.
Em sua manifestação, Cármen Lúcia, a única ministra mulher presente atualmente no STF destacou a importância de garantir a prisão de Robinho.
“Mulheres em todo o mundo são submetidas a crimes como o de que aqui se cuida, causando agravo de inegável intensidade a quem seja a vítima direta, e também a vítima indireta, que é toda e cada mulher do mundo, numa cultura, que ainda se demonstra desgraçadamente presente, de violação à dignidade de todas.”
Carmem Lúcia, ministra do STF.
Daniel Alves
No final de 2022, Daniel Alves viu sua carreira desmoronar com uma acusação de agressão sexual em uma boate de Barcelona. No auge de sua trajetória, o lateral brasileiro, então jogador do Pumas, do México, foi acusado de violentar uma jovem no banheiro de uma boate, e o que começou como um depoimento informal acabou com sua prisão preventiva.
Em janeiro de 2023, o atleta foi preso ao comparecer para prestar depoimento e teve seu contrato rompido pelo clube pelo qual jogava. O histórico do processo pesava contra o jogador: a justiça espanhola negou quatro pedidos de liberdade, alegando alto risco de fuga para o Brasil.
Em fevereiro de 2024, o julgamento teve sua última sessão com a promotora Elisabeth Jiménez, que destacou a coerência e a “credibilidade absoluta” do depoimento da vítima, em contraponto às diferentes versões dadas por Daniel Alves, que mudou sua história diversas vezes. O veredito: o jogador foi condenado a quatro anos e meio de prisão e a pagar uma indenização de 150 mil euros, bem como uma medida protetiva que o obriga a manter distância da vítima.
Em março de 2024, sob fiança milionária paga pelos amigos, Daniel Alves deixou a prisão preventiva, mas teve o passaporte confiscado e aguardará o novo julgamento sob liberdade provisória.
A cobertura do caso começou com a notícia em janeiro de 2023 de que Daniel Alves estava sendo investigado por um suposto crime de estupro na Espanha. A primeira publicação veio da agência Reuters e foi rapidamente confirmada pelo GE, que consultou diretamente a assessoria do Conselho Geral do Poder Judicial espanhol, demonstrando um esforço da mídia para garantir credibilidade e evitar especulações. Esse cuidado inicial foi fundamental para moldar o tom da cobertura e evitar julgamentos precipitados, uma prática que nem sempre é comum em casos envolvendo celebridades.
O jogador, que havia disputado a Copa do Mundo recentemente, retornou à Espanha devido ao falecimento de sua sogra e aproveitou a visita para prestar depoimento à polícia em Barcelona. No mesmo dia, veículos como La Vanguardia e El País informaram que o Ministério Público espanhol solicitava a prisão preventiva de Daniel Alves sem possibilidade de fiança.
Desde o início da cobertura, a mídia, incluindo o GE e a CNN, adotou uma postura cuidadosa ao tratar das acusações. Diferentemente de outros casos que envolviam figuras públicas, não houve tentativas de culpar ou deslegitimar a vítima. Ao mesmo tempo, os veículos ofereceram espaço para que o jogador e sua assessoria apresentassem sua versão dos fatos, enfatizando o compromisso com a imparcialidade.
A postura de não invalidar as declarações da vítima e de tratar Daniel Alves com cautela indicou um novo viés na cobertura de casos de violência sexual envolvendo personalidades públicas. A imprensa buscou confirmar informações diretamente com a polícia espanhola e monitorou de perto as reações e mudanças nas declarações do jogador.
A cobertura do caso avançou conforme novas informações surgiam, revelando sucessivas mudanças nas versões de Daniel Alves sobre o ocorrido. Em fevereiro de 2023, a CNN publicou uma análise detalhada, apontando que o jogador havia alterado sua versão sobre o incidente pelo menos cinco vezes, nem todas formalizadas em depoimentos. Esse tipo de acompanhamento detalhado não apenas esclareceu o processo para o público, mas também expôs a importância de um jornalismo baseado em documentação e na checagem de informações, evitando distorções que poderiam influenciar a opinião pública.
O GE também destacou essas mudanças no depoimento em uma matéria intitulada Caso Daniel Alves: jogador dá nova versão e alega embriaguez, o que expôs ainda mais as contradições do lateral-direito. A mídia seguiu documentando cada nova versão, deixando claro que os esforços de defesa de Alves eram ineficientes. Esse acompanhamento da mídia mostrou a seriedade com que o caso foi tratado e deixou clara a importância de consultar fontes oficiais, como a polícia espanhola.
Após a liberação mediante fiança, Daniel Alves segue em liberdade provisória. Com seu passaporte retido para voltar ao Brasil, o jogador permaneceu longe dos holofotes, mantendo-se ativo apenas em suas redes sociais, onde celebrou sua liberdade.
As publicações do jogador são seguidas de perto pela mídia, que observa as interações do atleta como um “termômetro” de sua imagem pública e de seu relacionamento com outras celebridades. Esse foco nas redes sociais ilustra como o jornalismo atual vai além das investigações formais, utilizando plataformas digitais para captar nuances do comportamento de figuras públicas e medir a receptividade do público, o que reflete a crescente integração entre mídia tradicional e digital.
Kleiton Lima
Em setembro de 2023, uma denúncia mexeu com o ambiente do futebol feminino no Brasil. O Globo Esporte (GE), um dos principais veículos esportivos do país, publicou com exclusividade uma série de 19 cartas anônimas escritas por jogadoras do Santos, relatando experiências de assédio moral e sexual praticadas pelo então técnico da equipe, Kleiton Lima.
As cartas, que incluíam descrições de toques indevidos e comentários desrespeitosos sobre os corpos das atletas, trouxeram à tona o comportamento do treinador. A decisão do Santos de rescindir o contrato de Kleiton poucas horas após a publicação demonstrou o impacto imediato da exposição midiática, mas também evidenciou a centralidade da imprensa como porta-voz de temas negligenciados, como o assédio no esporte feminino.
Apesar da repercussão inicial, o caso logo perdeu espaço na mídia, uma situação que contrasta com a cobertura dada a escândalos no futebol masculino. A pouca visibilidade da cobertura expôs as limitações que o futebol feminino ainda enfrenta no Brasil, reforçando o ciclo de invisibilidade e a dificuldade de manutenção do debate público sobre temas sensíveis no esporte feminino. Sem o engajamento contínuo de grandes veículos, o impacto das denúncias foi enfraquecido, permitindo que as acusações caíssem no esquecimento.
Esse cenário acabou favorecendo o retorno de Kleiton Lima ao comando técnico do Santos meses depois, mesmo após as graves acusações de assédio. Em março de 2024, já de volta ao clube, Kleiton foi alvo de novas denúncias por parte das atletas.
A decisão de recontratar o técnico provocou indignação nas atletas e reações do público. No jogo de reestreia de Kleiton, o Corinthians, time adversário, realizou um protesto simbólico em campo, onde as jogadoras taparam a boca durante o Hino Nacional, denunciando o silêncio imposto a tantas mulheres.
A volta de Kleiton ao Santos, anunciada pelo clube como uma escolha em consenso com o elenco, foi imediatamente questionada. No mesmo dia em que a nova contratação foi oficializada, o Globo Esporte publicou depoimentos de jogadoras que afirmavam que a decisão havia sido tomada sem consultá-las. Essa abordagem investigativa foi essencial para desmontar a narrativa institucional apresentada pelo Santos, revelando inconsistências que reforçaram o descontentamento público. Ao expor os relatos de forma cuidadosa e com depoimentos anônimos, a cobertura demonstrou sensibilidade ao contexto de assédio, além de proteger as atletas de possíveis represálias.
As atletas relataram desconforto com o retorno do treinador, e uma delas chegou a descrever um episódio em que Kleiton teria “se esfregado” em seu ombro. As reportagens revelaram ainda que a coordenadora de futebol feminino do Santos, Thaís Picarte, contradisse os relatos das jogadoras ao afirmar que elas haviam pedido o retorno de Kleiton.
As jogadoras do Santos, que falaram ao GE sob anonimato para proteger suas carreiras, expressaram descontentamento com a maneira como o clube conduziu a situação. Ex-jogadoras do Santos também se manifestaram publicamente contra a decisão, destacando uma postura de insensibilidade diante das acusações anteriores e a falta de consideração pelo ambiente de trabalho das atletas.
A matéria do GE, assinada por duas mulheres e um homem, trouxe uma perspectiva cuidadosa sobre o caso, dando voz às jogadoras e expondo a falha do clube em lidar com as acusações. Sob forte pressão da imprensa e da opinião pública, Kleiton solicitou seu afastamento apenas seis dias após reassumir o cargo, justificando sua saída como uma decisão para proteger sua família e sua imagem pessoal, alegando que estava sendo ameaçado.
Após o afastamento, o caso ainda se manteve fora do âmbito jurídico, sem maiores desenvolvimentos legais. Apenas em junho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) determinou uma suspensão de 18 jogos para Kleiton Lima, punição que, curiosamente, foi inferior ao número de denúncias relatadas pelas atletas.
Presença feminina nas redações e jornalismo feito por mulheres
Ao comparar a cobertura do Escândalo de Berna realizada em 1987 com o material produzido pela mídia décadas depois a respeito desse e de outros casos de violência contra a mulher no futebol, é possível identificar alguma mudança. Isso aconteceu em razão de alguns fatores, sendo que o principal deles envolve outra alteração mais interna na produção jornalística.
Carmen Rial, coautora da matéria Os estupradores que viraram heróis publicada no jornal Mulherio, foi a primeira jornalista mulher a trabalhar no departamento de esportes no Rio Grande do Sul. Ela foi contratada em 1978 pela rádio Gaúcha e era a única mulher da equipe.
A comunicadora destaca que conviveu durante anos com ideais machistas e conservadores perpetrados por colegas na redação, tanto nas produções para a rádio, quanto no dia a dia dentro da redação. Além disso, tinha que lidar com piadinhas misóginas, mas que a jornalista não deixou intervirem em seu trabalho: “isso me constrangia bastante, mas no dia a dia eu levava numa tranquila”.
Com o passar das décadas, houve um aumento, ainda que diminuto e insuficiente, da presença feminina no Jornalismo Esportivo. As mulheres, que antes não ocupavam esses espaços, atualmente representam 10% dos profissionais que atuam nas redações esportivas pelo país, segundo o livro Jornalismo Esportivo de Paulo Vinícius Coelho, publicado em 2023.
Ainda sim, essa mudança lenta e reduzida teve impacto no campo, principalmente no trabalho da mídia sobre casos de violência contra a mulher. De acordo com a comentarista de futebol Maíra Nunes, o crescimento das mulheres nesses espaços de comunicação como um todo contribuiu para repercutir mais a voz, as demandas e as dores das mulheres. A comunicadora também destacou as mídias sociais como um fator importante para que esse movimento ganhasse força nas torcidas, criando uma resistência significativa e simbólica.
Dessa forma, Maíra aponta que em muitos veículos a cobertura de casos como o Escândalo de Berna se tornou menos machista graças às mulheres, por meio do seu trabalho, mas também pela simples presença feminina no ambiente jornalístico. Porém, tratar dessas violências “é um processo muito dolorido e cansativo”, afirma a comentarista esportiva:
“Eu acho que em 2023, a passagem do Cuca pelo Corinthians, teve uma repercussão muito grande por conta das mulheres, que praticamente gritaram enquanto a maioria dos homens não falavam nada. A impressão era que o assunto era desconfortável, eles se isolavam do debate e não sabiam como conduzir, como se comportar. Parecia que era uma obrigação das mulheres do espaço jornalístico falar sobre o assunto. A gente quer que esse assunto seja tratado, mas também é muito difícil, né? É muito dolorido falar sobre coisas que nos machucam, que nos ferem, que nos matam.”
Maíra Nunes, comentarista esportiva.
Para Inês Castilho, editora-chefe do jornal Mulherio em 1987, a presença de mulheres no jornalismo esportivo impacta a cobertura desses casos, mas ainda há muito a mudar. Em seu artigo Futebol: Sobre os estupradores herois, publicado em março deste ano, ela afirma que os casos Daniel Alves e Robinho “mostram que a cultura do estupro tem muito a mudar, e educação leva tempo”.
“Há quem diga que narradoras e comentaristas foram pras telas porque é ‘modinha’, ‘politicamente correto’. Que seja. Depois, ou já agora, é ir avançando e não deixar regredir. O que precisa mudar? O mundo, minha amiga. A abertura pras mulheres no futebol acompanhou exatamente a luta das mulheres por seus ‘humanos direitos.”
Inês Castilho, jornalista.
Violência e ataques contra as jornalistas do esporte
Embora o tempo tenha passado e exercer a profissão como mulher já apresente suas dificuldades, essas profissionais ainda tem que lidar com problemas antigos.
Em 2018, 40 anos após a contratação de Carmen Rial, 52 jornalistas que trabalhavam com esporte lançaram nas mídias sociais o manifesto #DeixaElaTrabalhar. Apesar do aumento da presença feminina no meio, o assédio moral e até mesmo sexual sofrido nas ruas, estádios e redações por apresentadoras, repórteres, produtoras e assessoras também perdurou.
Maíra Nunes também destaca que trazer críticas ou até mesmo tratar da violência contra a mulher coloca um alvo nessas profissionais. “Quando você fala, toca nessas feridas, a gente volta a ser alvo de muitas violências. Nas redes sociais, principalmente, vira alvo de xingamento por conta da maior visibilidade. Então, ainda há um longo caminho a percorrer”.
Carol Teixeira, repórter e comentarista da TV Galo, produção audiovisual do Clube Atlético Mineiro, conta que realiza um sonho trabalhando com o esporte em seu time do coração. Mas, a atleticana relata como foi difícil, principalmente no início de sua trajetória, lidar com ataques machistas e preconceituosos que sofreu ao comentar jogos em lives.
“Qualquer tipo de comentário que eu fizesse durante o jogo estava errado. As pessoas falavam no chat: ‘vai lavar uma louça’, ‘lugar de mulher é na cozinha’, ‘quem colocou essa mulher para comentar futebol?’ E eu comecei a sofrer muito com isso.”
Carol Teixeira, repórter e comentarista esportiva.
A jornalista ainda ressalta que sofreu críticas por ser uma mulher preta, especialmente pelo fato de ter substituído outra comentarista que era branca e “padrão”, segundo ela. Carol afirmou que tinha que ler xingamentos e outros comentários questionando seu trabalho ou até mesmo pedindo pela volta da outra profissional. Ela diz que levou alguns meses para superar os ataques e que hoje tem tranquilidade para lidar com tais situações, mas destaca que como jornalista ainda precisa se provar o tempo todo para ser considerada uma boa profissional no esporte.
Alícia Klein também relata sofrer uma enxurrada de ataques sempre que faz críticas a times, jogadores e técnicos famosos:
Se você falou mal do Corinthians, do Palmeiras ou criticou o Abel Ferreira, é ameaça de morte, é ameaça de violência sexual, sem falar nos xingamentos misóginos, que também são muito violentos, especialmente nesse grande volume. As mulheres estão aqui no jornalismo sob um custo pessoal grande, muitas vezes com uma necessidade de se preparar muito mais do que os homens, porque não pode correr o risco de errar. A gente não tem o privilégio da mediocridade.“
Alícia Klein, comentarista esportiva.
As mulheres estão no Jornalismo Esportivo para cumprir cota?
Os avanços de movimentos sociais como um todo, e especialmente do feminismo, permitiram que mais mulheres pudessem ocupar espaços dentro do Jornalismo Esportivo. Mas, ainda assim, a representatividade feminina que existe hoje é quase alegórica em vários momentos, feita de forma figurada, muitas vezes para manter aparências e simular diversidade.
Isso pode ser percebido quando jornalistas mulheres aparecem em destaque apenas no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, para falar de futebol feminino ou até mesmo quando acontecem casos de violência contra a mulher. Outro exemplo é a presença e destaque de pessoas pretas somente no Dia da Consciência Negra, 20 de novembro.
Alícia Klein destaca que a perspectiva do grupo que está sendo oprimido, que é vítima dessas violências, é muito importante, mas pondera que essas pessoas não devem ser chamadas apenas em datas específicas ou para falar sobre os mesmos assuntos.
Você não chama um homem pra falar de futebol masculino pelo fato dele ser homem e a mesma coisa precisa acontecer com as mulheres.”
Alícia Klein
Além disso, a presença feminina em cargos altos, de liderança ou de grande exposição no meio é ainda mais escassa. Foi apenas em 2007 que uma mulher comandou um programa esportivo televisivo no formato mesa-redonda. Renata Fan foi responsável por apresentar o programa diário Jogo Aberto transmitido na Band, o que ainda é raro no Brasil.
As mulheres em sua maioria ocupam cargos de repórter, produtora e revisora. Poucos nomes como Renata Silveira, Natália Lara, Isabelly Morais, Letícia Macedo, Alícia Klein, Ana Thais Mattos, Renata Mendonça, Nadine Bastos, Renata Ruel, entre outras, trabalham como comentaristas, apresentadoras ou narradoras.
Milly Lacombe, pioneira no Jornalismo esportivo como comentarista e colunista, pontua que ainda há uma defasagem muito grande nos cargos de comando e uma maior presença nos cargos de ponta. Apesar dessa problemática, ela destaca que a partir do momento em que uma mulher é vista tanto internamente pela equipe quanto externamente pelo público, já existe uma mudança. “Mesmo que você não tente transformar ninguém, mesmo que você esteja ali só jogando o jogo do patronato. A entrada de mulheres é transformadora”, afirma a jornalista.
Escândalo de Berna ganha novos contornos em 2024
No ano em que esta reportagem está sendo publicada, o Caso Cuca, nome contemporâneo dado ao Escândalo de Berna, mudou de forma drástica. No dia 3 de janeiro, chegou à imprensa brasileira a informação de que o Tribunal Regional de Berna-Mittelland, na Suíça, havia anulado a condenação de Cuca. A decisão foi tomada em 22 de novembro de 2023, após o treinador e sua equipe de advogados terem entrado com uma ação depois da nova repercussão do Escândalo de Berna.
A juíza designada que avaliou a investigação e o julgamento iniciados em 1987 apontou irregularidades no processo e, por isso, determinou que uma indenização de 9.550 francos suíços, aproximadamente 55 mil reais, fosse paga a Cuca. Com essa alteração, o procedimento padrão seria a realização de um novo julgamento.
Porém, como o crime de estupro prescreveu, ou seja, o tempo limite para apresentação de nova demanda judicial se esgotou e um recurso não foi apresentado por nenhuma das partes, isso não ocorreu. Esses detalhes, inclusive, foram deixados de lado por parte da mídia brasileira, o que deixou uma impressão de que os acusados, principalmente Cuca, teriam sido inocentados.
Dois meses depois, em março deste ano, Alexi Stival assumiu o comando do Clube Athletico Paranaense. Sua passagem pelo time durou apenas três meses, quando ele optou pela saída e continua sem clube até o fechamento desta reportagem.
Em 10 de março deste ano, dois dias após o dia Internacional de Mulher, o técnico teve sua estreia pelo time do sul e fez um discurso sore o Escândalo de Berna. Em seu pronunciamento, o técnico afirmou que está vivendo um momento de reflexão, se coloca como parte do problema que é a violência contra a mulher e diz estar tentando entender seu papel. Confira a entrevista:
Ao final do discurso, ele destaca que é preciso uma transformação na realidade atual e se compromete a ser parte disso para que as mulheres possam viver com mais segurança. No entanto, até o fechamento desta reportagem, não houve nenhum pronunciamento ou ação por parte de Cuca sobre esse compromisso.
Cuca, Robinho e Daniel Alves são monstros?
A percepção da mídia e da sociedade em relação ao Escândalo de Berna, ou Caso Cuca, sofreu algumas mudanças desde 1987. Apesar de ainda existirem muitas pessoas que defendem e corroboram com violências cometidas contra mulheres, outro movimento surgiu: a demonização dos condenados.
A colunista Milly Lacombe destaca que tomar esse partido, principalmente no caso dos homens, evidencia uma tentativa de se distanciar desses crimes, de atitudes machistas e da própria realidade do Brasil.
Muitos dos caras que ainda cometem machismo e talvez tenham feito coisas parecidas no passado, se distanciaram deles, dizendo que Cuca, Robinho e Daniel Alves são monstros. Mas como podem ser eles os monstros, se uma mulher é estuprada a cada seis minutos no Brasil? Então a gente convive com os monstros, eles são os nossos melhores amigos, os nossos irmãos, os nossos maridos, os nossos chefes, os caras com quem a gente senta em uma mesa de bar e troca uma ideia a noite inteira.“
Milly Lacombe, comentarista esportiva, colunista e escritora.
A jornalista afirma que o machismo e a misoginia estão tão enraizados na sociedade brasileira que a grande maioria dos homens, salvo as exceções, já cometeram e ainda cometem atitudes machistas, até mesmo pequenas violências. Ela ainda pontua que sem uma mudança de mentalidade, essa parcela da população masculina não está nem um pouco distante de Cuca, Robinho ou Daniel Alves. Para Milly, “os mesmos que apontam o dedo e condenam hoje à noite vão na balada prensar uma mulher na parede e fazer alguma coisa com ela para depois ir para casa como se nada fosse”.
Alícia Klein afirma que a cobertura do caso em 1987 e como ele deixou de ser falado com o passar do tempo se deve em parte ao perfil de quem produzia Jornalismo Esportivo na época. Segundo a comentarista, esses homens tinham o perfil similar ao de Cuca e dos demais jogadores do Grêmio, por isso não tinham interesse em relatar e rememorar esse tipo de história, já que quando esses casos são contados “os esqueletos saem do armário” e as pessoas são confrontadas com “seus próprios fantasmas”.
A partir disso, perpetuar essa lógica de demonizar a figura desses homens não contribui para que a sociedade mude e seja menos violenta com as mulheres. Ao mesmo tempo, é necessária uma união de esforços para que isso aconteça, já que, segundo Maíra Nunes, “os homens precisam reconhecer o seu papel, precisam participar, assim como toda a sociedade”.
A educação é apontada como uma das soluções para um combate mais efetivo da violência contra a mulher e de casos como o Escândalo de Berna. Milly Lacombe explica: “na hora que a gente liberta um machista, não é só a gente que se libertou, ele também se libertou. A jaula em que os homens estão é tão feia quanto a jaula em que a gente está. Um homem machista e misógino é um homem desumanizado, limitado, não é um sujeito pleno. Isso ajuda a libertar toda a sociedade”.
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Esta reportagem longform foi produzida por Estêvão Valentim, Gabriel Ramos, Julia Vargas, Lara Aguiar e Pedro Januzzi sob orientação do professor, mestre e jornalista Getúlio Távora como produto de um trabalho de conclusão de curso (TCC).
Que trabalho excepcional!
Informação descritiva, colhendo a realidade sobre a cobertura da imprensa no tempo, sobre tema, infelizmente, ainda tão atual.
Parabéns aos responsáveis e à PUC Minas por materializar o direito constitucional à informação e contribuir com a formação de opinião, além de deixar induvidoso que o jornalismo esportivo se insere no gênero jornalismo.
Excelente pesquisa.
Assunto de importância ímpar, com conclusão coerente com a busca de um mundo melhor.
A escolha diz sobre a formação humanista dos pesquisadores responsáveis.
Parabéns!!
Excelente trabalho!!! Jornalismo de altíssima qualidade.