Daniela Arbex é uma jornalista e escritora mineira da cidade de Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais. Seu livro “Holocausto Brasileiro“, já vendeu mais de 300 mil exemplares no Brasil e em Portugal, e lhe rendeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) do ano de 2013, dentre outras conquistas literárias.
Além do sucesso como escritora, Daniela tem uma grande bagagem jornalística, dos 23 em que atuou no jornal Tribuna de Minas. Nesta entrevista, ela fala da escolha pelo jornalismo, dos desafios das pautas diárias e da transição de carreira de repórter a escritora.
O que te levou a escolher o jornalismo como profissão?
Eu escolhi o jornalismo como profissão aos 14 anos de idade. Sempre fui muito voltada para a área de humanas e sempre quis contribuir com a sociedade e fazer a diferença. Com 14 anos eu achei que pudesse fazer isso através do jornalismo e, felizmente, eu fui muito feliz e abençoada nessa carreira, por que é difícil você viver de jornalismo e eu consigo, nunca me faltou nada. Tenho uma vida confortável e sou plena nessa profissão.
Por que o jornalismo investigativo?
Na verdade, eu acho que toda matéria é investigativa, pois você precisa checar os fatos. Mas aqui a gente está falando do jornalismo investigativo como os trabalhos de fôlego, os trabalhos que requerem tempo e que envolvem risco. Não foi uma escolha, eu nunca pensei: “eu vou fazer jornalismo investigativo”, isso aconteceu desde os meus primeiros trabalhos no jornal.
Aliás, na faculdade, minha primeira matéria no jornal laboratório foi investigativa, uma matéria de denúncia que envolvia um professor de direito. Pela primeira vez na história do curso de Comunicação os professores discutiram se publicariam ou não uma matéria em função de tudo que ela causaria, e foi muito bacana porque a qualidade das provas que eu reuni fez com que os professores publicassem a matéria. Então, eu acho que isso está meio na veia, está junto de mim, nasceu comigo.
Qual seu maior orgulho como jornalista?
Eu não tenho um único, tenho muitas alegrias dentro do jornalismo, sem dúvidas. Eu acho que a maior alegria, maior gratidão, é ter conseguido fazer a diferença em muitos momentos, é ter feito um jornalismo que é atemporal, cuja relevância do trabalho vai vencer os tempos.
Um exemplo disso é o “Holocausto Brasileiro“, que é um livro que mudou o olhar do Brasil em relação à saúde mental. Essa é a maior alegria que eu tenho, de ter feito coisas que foram fundamentais, que ajudaram a sociedade, que ajudaram a discutir problemas importantes, que ajudaram a colocar em pauta temas invisíveis e de terem gerado mudanças efetivas na realidade.
Você trabalhou muitos anos na Tribuna de Minas. Qual o motivo da sua saída?
Minha saída da Tribuna foi resultado de uma demissão. Há dois anos* o jornal vinha discutindo a questão salarial. Meu salário ficou muito alto para eles. Para um jornal do interior, é muito complicado você dar valor ao trabalho dos outros, dar um preço.
Mas, naquele momento, eles entenderam que eu estava ficando cara para eles, que eles não tinham mais condições de pagar o meu salário e isso veio se arrastando há 2 anos. A gente pensou em várias alternativas até que o jornal, com toda crise do jornalismo no Brasil, não conseguiu me manter.
Foi um impacto muito grande para mim porque, apesar de eu estar ensaiando essa saída há muito tempo, porque queria viver da literatura, quando você deixa alguma coisa que você fez por 23 anos e que você amava, é muito duro. Foi um ano muito difícil.
Mas, felizmente, a literatura foi um caminho que se abriu pra mim a partir de 2013 e eu me agarrei a ela com todas as minhas forças. Não é fácil viver de literatura no Brasil, não é fácil viver sem um salário fixo. Hoje, eu sou uma jornalista independente, mas também estou superando isso, estou participando da realização de um roteiro para um dos meus livros, que vai virar uma série para TV, uma minissérie. Não posso revelar o livro ainda, e qual TV, mas é um projeto imenso. Estou muito feliz e agradecida por ter seguido o caminho certo.
Você já esteve em alguma situação em que sua ética jornalística se contrapôs à autoridade de um veículo?
Jamais permiti que a ética jornalística fosse colocada à prova em função de alguma cobrança, definição ou exigência do jornal. Eu te digo uma coisa: eu nunca fiz tudo o que eu quis no jornal, mas eu jamais fiz o que eu não quis. Foram poucas as vezes em que eu tive algum tipo de embate.
Eu fui muito feliz na Tribuna, foi um casamento felicíssimo, 23 anos em que eu fiz as pautas, porque quem não se pauta é pautado, então, eu sempre me pautei e eu sempre emplaquei minhas matérias. Foram poucas as vezes em que minhas matérias investigativas não foram publicadas por questões de interesse do jornal. Acho que eu tive dois momentos assim.
Eu jamais fiz alguma coisa que ferisse a ética jornalística. Se eu acreditasse que aquilo que eu estava fazendo poderia ferir a ética, eu não fazia. Teve uma vez em que eu estava fazendo uma matéria muito importante, que me exigiu muito tempo de investigação, mas a publicação da matéria colocava uma pessoa em risco, efetivamente, risco de vida. Optei por não publicar a matéria e, apesar da pressão do jornal, porque eu gastei tempo investigando, optei por não publicar e sustentei isso. Então, eu não posso reclamar: eu fui muito feliz no jornal, foram 23 anos perfeitos da minha vida.
Entre tantas premiações que conquistou ao longo da carreira, qual mais te marcou?
Eu acumulei prêmios inacreditáveis, que eu não sonhava, como o Esso. Engraçado que desde a época de estudante eu sempre tive como meta que um dia eu ia ganhar o prêmio Esso. Todo ano eu acompanhava a premiação e pensava “um dia eu vou estar lá”. Fico até emocionada falando isso, eu ganhei três vezes.
O primeiro Esso foi uma revolução na minha carreira. Depois vieram outros prêmios inacreditáveis, que eu nunca sonhei em ganhar, como o prêmio Knight International Journalism Award, que eu ganhei nos Estados Unidos pelo conjunto da minha obra, em 2010, e o prêmio IPYS de melhor investigação jornalística da América Latina.
Depois, com a literatura eu já ganhei dois prêmios Jabuti, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e, agora, o troféu Mulher Imprensa 2020 na categoria jornalismo investigativo. Então, eu sou muito feliz com esse reconhecimento.
Quais suas expectativas para o futuro do jornalismo brasileiro?
Minhas expectativas continuam sendo as mesmas de quando comecei: eu acredito que sem o jornalismo de qualidade não há democracia. Mesmo com toda essa crise, essa onda de ódio ao jornalismo, os ataques, eu acho que nós vamos sair dessa fortalecidos e mostrando que sem jornalistas éticos e sem o jornalismo de qualidade, a própria sociedade será afetada.
Não estou abalada com o que está acontecendo. Claro que ficamos sempre tristes ao perceber que nessa altura do campeonato, depois de 21 anos de ditadura, nós voltamos a enxergar que o passado possa se repetir. Mas eu acredito muito na força do jornalismo.
Quais as técnicas mais importantes para ser um bom jornalista investigativo?
Bom, para ser um bom jornalista investigativo é essencial que nós tenhamos faro e muita força de vontade para uma checagem exaustiva dos fatos. Precisamos seguir nossa intuição e aprender a pesquisar em cartório, em varas judiciais, policias.
Mas eu acho que, acima de tudo, para ser um bom jornalista, nós precisamos gostar de gente e ter vontade de contar histórias.
Qual foi a maior dificuldade na investigação do Hospital Colônia de Barbacena?
A maior dificuldade na investigação do Hospital Colônia foi conseguir fazer com que os funcionários falassem sobre o que eles viveram. Diferentemente dos sobreviventes, que nunca tinham sido procurados e tinham muita vontade de falar, eles se sentiram ameaçados pelo meu trabalho. É como se eles não quisessem enxergar o tamanho da tragédia da qual fizeram parte e aí foi um processo longo para que eu conseguisse quebrar essa barreira.
Houve alguma intriga com a direção do hospital no decorrer do lançamento e sucesso do livro?
A repercussão do livro causou muitas coisas, a primeira delas foi a demissão do diretor que franqueou a minha entrada no hospital, antes mesmo do lançamento do livro. Ele nunca disse oficialmente que foi por isso, mas foi.
A segunda, um ciúmes impressionante, um incômodo enorme por parte das pessoas do hospital, que se sentiam donas dos pacientes e que se sentiram incomodadas com o sucesso do livro.
Essa é a grande verdade: até hoje, quando alguém vai no Museu da Loucura, por exemplo, a coordenação do museu faz questão de dizer que meu livro é mentiroso e é inacreditável. Existe um documentário que mostra que as coisas que estão no livro não só são verdadeiras como os relatos dos próprios funcionários são muito piores do que os que colocamos no livro.
Enfim, faz parte. No começo, foi bem difícil. Mas, hoje, eu aprendi a lidar com isso e já entendi que nós não trazemos uma história dessas à tona e passamos por isso incólumes.
Em algum momento você se deixou levar pelas emoções e tomou iniciativas que poderiam desandar o decorrer da investigação?
Não. Sempre para tocar o outro, eu me deixo tocar e me envolvo com as histórias, mergulho de cabeça e isso tem consequências na minha rotina, nas minhas emoções e até fisicamente, mas eu nunca permiti que isso interferisse na questão ética e no que eu deveria fazer enquanto jornalista.
Você imaginava que o livro teria tamanho sucesso?
Eu não imaginava. Quando escrevi o “Holocausto Brasileiro“, eu simplesmente fiz o que tinha aprendido a fazer na redação. Eu não tinha nenhuma expectativa em relação ao livro, de vendas… Não conhecia o mercado literário e o público, em geral, não me conhecia. Eu era conhecida no meio jornalístico, no meio acadêmico, mas eu não era conhecida do público em geral.
O “Holocausto Brasileiro” foi um divisor de águas por me apresentar para o país e isso trouxe consequências incríveis. Eu tive a oportunidade de me aproximar dos leitores, de fazer com que as pessoas conhecessem meu trabalho e meio que saí das sombras, porque trabalhando no interior do país, por mais premiada que eu fosse, eu era desconhecida.
O bonito disso tudo não é só o sucesso do livro, é ver que o livro foi adotado na maioria das universidades brasileiras, na maioria dos cursos no país, seja de Comunicação, de Medicina, de Direito, de Psicologia, de Filosofia… Isso é incrível porque o jornalista quando escreve, quer ser lido e, mais do que isso, quer que o que ele escreva seja útil e faça a diferença.
O “Holocausto Brasileiro” é atemporal. Daqui 50 anos, quando alguém ler esse livro, ele vai continuar atual, vai continuar necessário e fundamental. Isso é muito importante para mim, é uma conquista, e acabou me lançando na literatura, que hoje é meu principal ganha pão.
*A entrevista foi concedida em maio de 2020.
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