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Homem indigena usando um cocar, de costas olhando para a floresta
Índigena da comunidade Puri / Foto: Henrique Chendes/ALMG

Entre a caneta, o cocar e o microfone: de onde falam as vozes indígenas

Da aldeia ao doutorado, do território ao microfone, as vozes indígenas seguem rompendo cercas, lutando por terra, por rio e por escuta

Nas margens do Rio Doce, em Minas Gerais, a cacica Puoná Xipu Puri da comunidade Krim Orutu Puri, expressão de origem Puri que significa ‘sangue valente’, tenta manter viva uma tradição que a lama da mineração tentou enterrar. Mesmo sem poder entrar nas águas, ela ainda realiza rituais à beira do rio.

Para nós, a perda do rio foi muito grande. Afetou todo o nosso povo. Principalmente a nossa cultura” .

O desastre-crime que resultou no rompimento da barragem de Fundão, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), completou dez anos no dia 5 de novembro de 2025. Considerado o maior desastre socioambiental da história do Brasil e o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração, o rompimento de Fundão marcou profundamente a vida de milhares de pessoas e deixou danos profundos ao longo da bacia do Rio Doce.

Mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos foram lançados no meio ambiente, contaminando o rio Doce e seus afluentes, destruindo comunidades inteiras e seus modos de vida, além de ter alcançado o litoral brasileiro no Espírito Santo e na Bahia. Desde então, famílias atingidas enfrentam uma década de dor, resistência e luta por direitos diante de uma reparação marcada pela lentidão e sem a completude da participação social.

Em Minas Gerais, o povo Xipu Puri, que vive às margens do Rio Doce, em Tabuna, distrito de Aimorés, e nos municípios de Itueta e Peçanha, tem em Puoná Xipu Puri uma das principais lideranças de sua comunidade indígena. Defensora de uma tradição familiar herdada dos antepassados, ela tem uma preocupação central com a questão ambiental, principalmente diante das mudanças climáticas que afetam diretamente seu povo.

Puona Xipu Puri conta que até hoje tenta manter viva a cultura do seu povo na região Norte de Minas, com foco na vivência às margens do Rio, local sagrado para seu povo, onde realizavam ritos ancestrais. No entanto,  o rio não pode mais ser utilizado desde o rompimento da barragem em Mariana, que contaminou todo o curso das águas. A pescaria, antes parte essencial da cultura e sobrevivência do povo Xipu Puri, também foi afetada com a extinção dos peixes.

O rompimento da barragem destruiu muito mais que o meio ambiente, rompeu também o elo espiritual de um povo com seu território. Para ela, o que falta não é apenas indenização, mas escuta.

Os governantes não querem saber, porque eles não dependem do rio. Apenas o nosso povo depende.

O novo acordo de reparação entre Samarco, Vale, BHP Billiton e o poder público, homologado em novembro de 2024, representou um marco na luta das comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Ele substitui o modelo anterior, criticado pela falta de participação dos atingidos e pela ineficácia da Fundação Renova.

Conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o processo de repactuação buscou corrigir falhas e garantir mais transparência. Avaliado em R$132 bilhões, o novo acordo prevê investimentos em saúde, saneamento, educação, meio ambiente, economia e apoio a povos tradicionais. Entre os avanços, estão a criação do Fundo de Participação Popular da Bacia do Rio Doce (R$5 bi), o reconhecimento dos danos às mulheres atingidas (R$1 bi) e a continuidade das Assessorias Técnicas Independentes por quatro anos, fortalecendo a participação das comunidades.

Mesmo diante das tentativas de reconstrução e de novos acordos de reparação, os danos ambientais e sociais deixados pela lama seguem vivos nas águas do Rio Doce e na memória das comunidades indígenas. A crise climática, que agrava a escassez hídrica e compromete ecossistemas inteiros, também intensifica a vulnerabilidade desses povos, que dependem diretamente dos rios para sua sobrevivência e espiritualidade.

Rios em risco

Para compreender melhor os impactos da poluição dos rios e como esses problemas refletem na saúde pública e no equilíbrio ambiental, conversamos com Fabiana Barbosa, engenheira ambiental e bióloga da Fundação Ezequiel Dias (Funed). De acordo com ela, a poluição hídrica é um dos maiores desafios ambientais e de saúde pública no país, pois aumenta a incidência de doenças como leptospirose e hepatite. Ela explica que “quando uma água está poluída, dependendo do nível de contaminação, ela não pode ser utilizada para consumo humano, o que afeta diretamente comunidades que dependem de poços, cisternas e rios para sobreviver”.

A imagem mostra o Rio Doce com água marrom-clara e plantas aquáticas na margem. Árvores ao redor enquadram a vista, e ao fundo há morros verdes sob um céu azul com nuvens.
Rio Doce. Foto: Henrique Chendes/ALMG

A especialista também ressalta que as mudanças climáticas agravam esse cenário, alterando a biodiversidade e provocando um efeito em cadeia: “O calor extremo pode levar à proliferação de cianobactérias, microrganismos que liberam toxinas na água, o que compromete ainda mais a qualidade hídrica e impacta tanto o meio ambiente, quanto a saúde das populações”.

Fabiana Barbosa ressalta que políticas de monitoramento da qualidade da água, conduzidas pelo poder público, são essenciais para prevenir novos desastres. No entanto, lembra que essas ações precisam ser aprimoradas e acompanhadas de fiscalização efetiva sobre o descarte de esgoto e efluentes industriais. Para ela, o monitoramento é o norte que orienta políticas públicas e ações práticas capazes de evitar a degradação de rios e mananciais.

Na Universidade, a luta é por espaço e respeito

Enquanto a cacica Puoná Xipu Puri enfrenta o silenciamento pela lama, Bibi Nhatarâmiak, mulher do povo Borum Kren e doutoranda em Arqueologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), enfrenta outro tipo de desafio: o acadêmico. Nos corredores do campus Pampulha, Bibi carrega o peso e o orgulho de representar seu povo em um ambiente que, segundo ela, ainda não aprendeu a conviver com a diversidade.

Eu nunca falo sozinha. Carrego o meu povo comigo. Cada passo é uma luta e também uma alegria”, afirma. 

Ela conta que andar pela universidade com o cocar atrai olhares que ferem, e perguntas que revelam o quanto o preconceito ainda é presente. Mas, mesmo diante disso, Bibi Nhatarâmiak segue firme, transformando a dor em força e a presença em símbolo de resistência. Para ela, ocupar esse espaço é desafiar a estrutura que historicamente excluiu os povos indígenas da produção do conhecimento.

A gente leva o território para dentro da universidade, e o que aprende lá, leva de volta pra fortalecer o nosso povo”.

O papel da mídia e o desafio de escutar

Após discutir a presença dos povos indígenas nas universidades e o papel do conhecimento tradicional dentro da pesquisa acadêmica, o debate se volta para outra frente essencial: a comunicação. É nesse ponto que entra a fala do jornalista e ativista pelos direitos dos povos originários, Cláudio Henrique Vieira, que reflete sobre a importância de escutar quem por muito tempo foi silenciado e aponta que o desafio começa com a educação em casa, na escola e na sociedade. Para ele, o jornalismo deve atuar como um reforço nesse papel educacional, indo além do superficial, e cobrar o poder público, além de priorizar as vozes dos povos tradicionais.

Eu penso que o jornalismo reforça esse papel de se preocupar com os rios, com os povos indígenas, com os povos tradicionais, lembrando desse papel das famílias, das escolas de ensino fundamental e médio, desse papel na sociedade”.

Para o ativista, a mídia não está escutando de maneira adequada. Essa falta de informação educacional, que ele chama de solidariedade e preocupação ambiental dos profissionais, gera falta de empatia por parte dos jornalistas, daquele que está responsável pela pauta, reportagem e edição, dificultando uma cobertura honesta e cuidadosa. 

O jornalista reafirma que fortalecer a escuta e o compromisso com a verdade é o que pode aproximar a mídia da realidade dos povos indígenas. Ele acredita que, quando há sensibilidade e responsabilidade, o jornalismo cumpre seu papel social e ajuda a formar uma sociedade mais empática e consciente.

As mulheres indígenas

Assim como a cacica Puoná Xipu Puri e a doutoranda Bibi Nhatarâmiak, Jeane Gomes compartilha a vida com uma geração de mulheres indígenas que carregam não só resistência, mas também legado ancestral e renovação. Ela lembra da sua avó Guarani Mbyá, com quem conviveu até os sete anos: “Ela gostava de andar descalço, costurava as próprias roupas à mão, me ensinou o respeito pela natureza, pelos ritos indígenas e, mesmo sofrendo racismo, aquilo me fortaleceu”.

A avó, para Jeane Gomes, foi madrinha espiritual, mentora no uso de ervas sagradas, nas histórias indígenas e na bênção dos ritos e essa herança alimentou a trajetória dela no curso socioambiental, onde percebeu de forma mais clara “o apagamento promovido pelo colonizador” e o valor de manter as raízes vivas.

Essas histórias pessoais não são exceção, mas fazem parte de algo maior: as mulheres indígenas têm papel central na preservação cultural, na transmissão de saberes e na luta por visibilidade e voz. No Brasil, os dados recentes reforçam a força feminina. Segundo o Censo de 2022, 61,8% da população indígena registrada em mais de 4 mil municípios são mulheres. Porém, dentro das terras indígenas, essa proporção se inverte, pois são os homens que predominam, representando cerca de 71% dos habitantes nos territórios tradicionais

A imagem mostra um grupo indígena reunido ao ar livre. Em destaque, três mulheres com pinturas faciais e adornos tradicionais participam ativamente, segurando maracás. Uma delas fala enquanto gesticula, e ao fundo outras pessoas observam.
Mulheres da comunidade indigena Kirim Orutu Purí. Foto: Henrique Chendes/ALMG

Além disso, estima-se que mais de 860 mil indígenas são mulheres, segundo o IBGE. Esses números mostram que mesmo com população numericamente expressiva, as mulheres indígenas enfrentam desafios profundos: migrar para fora das terras tradicionais em busca de trabalho, estudo ou mesmo pela necessidade de cuidados, bem como lidar com a invisibilidade de suas lideranças em espaços formais de poder.

A figura da cacica simboliza uma liderança ancestral, que mistura poder espiritual, político e comunitário. Essas mulheres lideram por meio de diferentes estratégias nas comunidades, nas organizações indígenas, nas associações femininas e resistem não apenas a violência física, mas também ao apagamento cultural, construindo voz ativa para reivindicar seus direitos ancestrais. Não há como subestimar a importância dessas lideranças, pois são mulheres que reconstroem o sentido de pertencimento, que garantem a transmissão de saberes tradicionais e que assumem papéis decisivos no fortalecimento comunitário e político.

A luta por visibilidade e a permanência indígena

A trajetória das vozes indígenas se estabelece como um poderoso movimento de resistência e afirmação. Os desafios enfrentados, sejam eles de ordem ambiental, social ou institucional, mostram uma luta persistente por direitos e respeito. A dor de uma década de lentidão na reparação de danos ambientais, como no caso da barragem de Fundão, coexiste com a força de lideranças que exigem mais do que compensação financeira, clamando por escuta e participação efetiva.

A presença crescente de indígenas em novos espaços marca uma nova fase, onde o saber é utilizado para a transformação e o fortalecimento comunitário. Essa atuação é inseparável da liderança ancestral das mulheres  na transmissão de saberes e na construção de uma voz ativa.

Para que o compromisso com a verdade e a empatia se concretizem, é fundamental que haja uma mudança na forma como a sociedade e a comunicação se relacionam com os povos originários. A responsabilidade social de informar e educar é vital para garantir que a permanência e a cultura indígena sejam inegavelmente reconhecidas e respeitadas.

Um homem indígena, com a feição seria usando um cocar azul e com o rosto pintado de laranja. Com fundo desfocado
Homem indigena da comunidade Kirim Orutu Purí. Foto: Henrique Chendes/ALMG

Ouça na íntegra o podcast VOZES, com Alexandre Maciel, Letícia Souza, Marina Santos e Thiago Brene:

Reportagem produzida por Alexandre Maciel, Letícia Souza, Marina Morena e Thiago Brene na disciplina Laboratório de Jornalismo Digital, no curso de Jornalismo do campus São Gabriel no semestre 2025/2, sob a supervisão da professora Verônica Soares da Costa.

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