“Eu tenho um plano: eu vou ficar rico! Eu tenho um sonho e esse ano ele me deixa rico.” O refrão da música Frank & Tikão, dos rappers FBC e Chris MC, apresenta um sonho de muitos brasileiros. O plano também engloba “Deixar a família bem, emprego pros amigo” (sic). Assim como o desejo interpretado pelos músicos, esse é o intuito dos 2,2 milhões de empreendedores registrados em Minas Gerais. Segundo dados da Receita Federal, esse número representa 11% dos empreendimentos do país.
No Brasil, 20% da população é empreendedora, segundo o Global Entrepreneurship Monitor (GEM), e o país é o segundo com maior capacidade empreendedora, perdendo apenas para a Índia. Desses empreendedores, parte reside em locais que durante muito tempo ficaram na invisibilidade, mas que hoje crescem e demonstram potencial de consumo que chama a atenção do empreendedorismo do asfalto.
Conforme o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 8% da população brasileira vive em favelas e comunidades urbanas. Em Belo Horizonte esse número chega a 307.729 pessoas residindo em 218 locais assim. A capital mineira surge ainda como 18º colocada no Índice de Cidades Empreendedoras.
Em um intervalo de 12 anos entre o Censo 2010 e o realizado em 2022, as favelas e similares quase dobraram em população, elas cresceram 95%. Fato é que, com essa expansão, as comunidades e vilas se tornaram locais de consumo efetivo e potencial.
De acordo com um levantamento da Digital Favela, 41% das pessoas que vivem em favelas trabalham por conta própria, e os negócios mais comuns estão ligados à alimentação e à venda de cosméticos. Enquanto 63% dessas pessoas atuam na informalidade, 57% admitem que a busca pelo empreendedorismo se deu por falta de oportunidade no mercado de trabalho.
Mercado de trabalho
Com tantas pessoas vivendo nas comunidades, Eduardo Brasileiro, sociólogo e professor da PUC Minas, diz que a visão simplista sobre esses locais é errônea. Para ele, quando nós olhamos de modo geral para a periferia, olhamos as pessoas não pelo que elas são, mas pelo que convencionamos a entender como favela. Entendemos que a favela é um lugar de negação do direito, de abandono e de pessoas que estão imobilizadas. Porém, o professor explica que as pessoas que estão nas favelas estão tentando sobreviver como qualquer outra no mundo.
A favelização é um processo que teve início no século XX, devido à migração do campo para as cidades. Muitas pessoas buscavam emprego em cidades industriais em expansão e se estabeleceram em áreas sem infraestrutura. Essas áreas eram conhecidas como “cortiços” e abrigavam trabalhadores pobres e imigrantes.
Sem recursos para manterem suas famílias, os moradores enxergam no empreendedorismo uma forma de sobrevivência. É o que relata Delaine Cordeiro, analista do Sebrae e responsável pelo espaço de atendimento da instituição.
Eu vejo que o empreendedorismo nas favelas muitas vezes vem da necessidade e não da oportunidade
Delaine Cordeiro , analista do Sebrae
Em 2020, o emprego formal nas favelas do país alcançava 17% da população desses locais, segundo a pesquisa Pandemia na Favela – A realidade de 14 milhões de favelados no combate ao novo coronavírus, realizada pelo Data Favela, parceria do Instituto Locomotiva, da Central Única das Favelas (Cufa) e da Favela Holding. Se forem considerados os que vivem nas regiões mais urbanizadas, ou no asfalto, como diz a gíria popular, o número de trabalhadores formais quase duplica e representa 31% da população. De maneira inversamente proporcional, o desemprego nas comunidades atingia 20%, sendo mais que o dobro da taxa relativa aos que vivem em outros espaços nas cidades, cujo índice era de 9%.
Taxa de desemprego é maior entre
mulheres, pretos e favelados
O que diz o IBGE
Dados mais recentes da pesquisa Pnad Contínua, do IBGE, revelam que no terceiro trimestre de 2024 a taxa de desocupação entre pessoas brancas chegou a 4,9%, e entre pretos e pardos foi de 7%. Historicamente, os dados de desemprego são maiores entre as mulheres. Ainda que a disparidade agora seja menor, ficou em 7,6% para as mulheres e 5,1% para os homens.
Os números revelam o quanto a realidade socioeconômica dessas ambiências são díspares. Apesar do crescimento dos territórios, do número de habitantes de favelas e de práticas consideradas empreendedoras, o trabalho informal e os índices de desemprego são maiores nesses espaços, revelando que as oportunidades de negócios e de formalização nem sempre são as mesmas.
“Nós sabemos que existe (capacidade de empresariar) só que essas pessoas não têm oportunidades, pois estão muito ocupadas sobrevivendo”,
relata a advogada trabalhista Michelle Higino, presidente do projeto Direito na Favela.
Os empreendedores, por outro lado, acreditam que os empregos locais oferecem oportunidades no desenvolvimento de habilidades e experiências profissionais para moradores. A dificuldade de formalização e acesso aos direitos trabalhistas são pautas discutidas por eles.
O empreendedorismo é visto com bons olhos por grande parte dos moradores das favelas. O Colab conversou com quatro empreendedores, que contam como tais iniciativas abriram portas e permitiram que se estabelecessem na comunidade.
Protagonismo feminino
A analista do Sebrae Delaine Cordeiro relata que a maioria dos empreendimentos nas comunidades vêm de mulheres. Muitas delas são mães solo e a principal fonte de renda da família. Elas começam a produzir, principalmente no setor de alimentação, para vender e sustentar a casa. Segundo dados registrados no último semestre de 2021 e divulgados na Comunidade Sebrae, o Brasil é o sétimo país com maior número de empreendedoras. Os dados mostram que 32 dos 52 milhões de empreendedores (61,5%) no país são mulheres e 49% delas são chefes de família.
Um exemplo de empreendedorismo feminino é a Célia Maria de Carvalho, 43 anos, que possui uma loja de cosméticos no Aglomerado da Serra, na Zona Sul de Belo Horizonte. “Eu comecei a vender cosméticos há uns 22 anos. Minha filha era muito pequenininha, e era o jeito de ganhar a renda e ficar com ela.” De São José do Jacuri, Célia começou o empreendedorismo quando chegou em Belo Horizonte, vendendo cosméticos de porta a porta para as pessoas que conhecia no ônibus.

Hoje, com a loja física aberta desde o fim da pandemia do Covid-19, a vendedora conta que seu maior desafio foi o medo de não dar certo, mas que o empreendimento abriu portas para oportunidades melhores. “Melhorar financeiramente a vida da gente, tem mais possibilidade de fazer planos maiores e realizar coisas maiores.”Para ela e outros empreendedores, o giro de capital dentro das favelas é crucial para a geração de emprego e, consequentemente, uma forma de obter renda para os próprios moradores. Célia aconselha os novos empreendedores e diz que a chave para conquistar o que deseja é a persistência. “Se você quer fazer, você foca nessa área e não desiste no primeiro tropeço.”
“Hoje eu sinto que é o que eu gosto de fazer, eu tenho contato com as pessoas e tenho liberdade de me expressar. Eu não me sentiria bem na CLT com tantas regras. Eu acredito que a vida das pessoas muda com o empreendedorismo”
Célia Maria de Carvalho, empresária.
Outras formas de empreender
Lorrayne Batista da Cruz, 28, é uma empreendedora social. Formada em jornalismo, ainda na faculdade teve vontade de falar sobre a Cabana do Pai Tomás, comunidade em que mora, na região Oeste de Belo Horizonte. Ao fim da faculdade, surgiu a oportunidade por meio de seu trabalho de conclusão de curso (TCC). Lorrayne queria levar assuntos que interessassem os moradores do Cabana e impactassem o local, mostrando para além do lado ruim da favela. Aí, em 2018, nasceu o Conecta Cabana.
“Comecei a desenvolver esse TCC com essa ideia de ter um canal de comunicação que falasse com o olhar de quem vive de dentro de uma comunidade, né, feito um jornalismo de dentro. E aí surgiu o Conecta Cabana em uma fanpage de Facebook, como um trabalho de conclusão de curso da faculdade de jornalismo”, relembra Lorrayne.
A voz da comunidade
Para ela, o Conecta Cabana é uma forma de mostrar a voz das pessoas da comunidade, para que contem o que vivenciam. Além disso, no projeto, a própria Lorrayne está em frente às câmeras, relatando as suas vivências como moradora. É um modo de alguém inserida na realidade falar sobre a favela, para que não haja apenas uma visão externa.
“É o jornalismo que vai ajudar minha comunidade, e assim tem sido, tem ajudado muito dando voz à comunidade do Cabana”
Lorrayne Batista da Cruz, jornalista e empreendedora social
Lorrayne acredita que a informação é o principal meio para mudar a comunidade em que vive, e é um meio para reverter a omissão governamental. “A gente espera que o governo faça alguma coisa. Mas o Cabana não nasceu pelas mãos do governo. Foram os próprios moradores que construíram o Cabana, e nós temos que lutar por ele.”
O principal meio utilizado pelo Conecta Cabana é o Instagram, com mais de 16,5 mil seguidores. Lorrayne também tem investido em novas formas de fazer as informações circularem. A mais recente é o jornal, digital e físico, que leva as principais notícias, com o lema informando pela quebrada.
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Lorrayne abdicou de seu emprego de CLT e hoje se dedica integralmente ao Conecta Cabana. No entanto, demorou seis anos para entender que o Cabana poderia se tornar um negócio.
“Eu entendi que o Conecta Cabana é um empreendimento, né? Me entendi como empreendedora, para falar bem a verdade, este ano (2024). E aí larguei minha CLT, tô dedicada hoje 100% ao Conecta Cabana nessa produção de conteúdos e notícias da comunidade”,
relata Lorrayne Batista.
Para o futuro, a empreendedora destaca dois sonhos que pretende realizar para fortalecer e ampliar o negócio. O primeiro é fazer com que o jornal se sustente financeiramente, para que ela não precise mais fazer bicos para se manter e manter o meio de comunicação. Batista destaca que quer trabalhar com o Cabana o resto da vida.
“Eu quero viver disso. Eu quero continuar trabalhando com isso [o Conecta Cabana], se puder, o resto da minha vida. Porque eu acho que é o que eu sei fazer, é o que eu acho que ajuda a minha comunidade, então é com isso que eu quero trabalhar”, orgulha-se.
O segundo sonho é formar uma redação jornalística dentro da comunidade do Cabana. Para ela, além de ser um local de trabalho mais adequado, já que hoje ela trabalha de casa, a construção de uma redação dentro da favela seria uma forma de gerar emprego e dar a oportunidade para os moradores mudarem de vida. “Eu quero passar o que eu sei para as outras pessoas e mostrar para eles que eles são capazes de transformar a realidade deles também.”
Participação na Expo Favela
Lorrayne levou o Conecta Cabana para a edição da Expo Favela 2024. Ela distribuiu a primeira edição do jornal impresso e montou um stand para, além de divulgar o trabalho que está sendo feito, buscar patrocinadores que apoiam o projeto. Para a empreendedora, a participação foi “sensacional” e conseguiu fazer alguns contatos para apoiarem o Cabana, além do network que teve a oportunidade de cultivar durante a experiência.
A Expo Favela Innovation é uma feira de negócios cujos expositores são empreendedores das favelas e faz parte do calendário nacional de eventos de negócio e inovação. O evento tem como objetivo dar visibilidade a iniciativas que nascem nas favelas e assim, proporcionar um palco para o encontro com investidores que possam acelerar esses empreendimentos e gerar negócios a partir das oportunidades que surgirão nos eventos.
Empreendedorismo social
A mudança para além do lucro é o que define o empreendedorismo social. Os negócios que se encaixam nessas características buscam causar mudanças na sociedade, mas também buscam ser autossustentáveis financeiramente.
Esse é o caso da Lorrayne com o Conecta Cabana, mas também do Projeto Itamar, no Aglomerado da Serra, a maior favela de Belo Horizonte, localizada na região Centro-Sul. Idealizado por Itamar José da Silva, 52, o projeto social, que carrega o nome de seu criador, muda diariamente a vida das crianças da comunidade.
Inicialmente, em 2005, surgiu com a vontade de Itamar de passar para as crianças do Aglomerado o modo como o esporte mudou sua vida, por meio do Taekwondo. Foi então que ele começou a ensinar a modalidade na praça, gratuitamente, sabendo que, por ser um esporte caro, os moradores não conseguiriam pagar pelas aulas. A ideia foi um sucesso e se transformou no Projeto Itamar.
Sem conhecimentos de administração e gestão financeira, Itamar sempre teve dificuldades de mandar os seus alunos para participarem de competições, que geram muitos custos, além de arcar com os outros gastos. Foi então que em 2015, Fernanda Benevides, 43, entrou no projeto como co-fundadora e coordenadora e, vendo a situação financeira, decidiu ir atrás de cursos de captação de recursos que ajudassem o projeto a se manter, e a busca por conhecimento nunca mais parou.

Comunidade empreendedora
Procurando parcerias para conseguir alavancar o negócio, o projeto hoje faz parte da Comunidade Empreendedora do Sebrae. Tentando alcançar a sustentabilidade financeira, duas frentes são o que amparam o projeto: o bazar e a locação de cadeiras.
O bazar, que antes era realizado apenas periodicamente, hoje virou a maior forma de captação de recursos. Fernanda Benevides comenta que há um ano atrás o salário do Itamar como guarda municipal era a única fonte de renda e que a decisão de manter o bazar funcionando foi uma virada de chave:
“Quando a gente montou o bazar de forma fixa, três meses depois a gente já conseguiu suprir 80% dos custos do projeto. E hoje assim, às vezes tem um mês que dá mais, tem um mês que dá menos, mas sempre está ajudando a captar recursos para manter as atividades.” O aluguel de cadeiras e mesas para festas foi a forma que encontraram para suprir os outros 20%.
Já a vertente social do projeto se destaca com a oferta de cursos para os moradores, além das aulas de esporte para crianças e adolescentes e a biblioteca no muro em frente a sede, que veio para substituir o lixão que se acumulava alí.

Para Fernanda Benevides, o curso de cuidador de idosos, o de barbeiro, o reforço escolar para os estudantes que necessitam, o atendimento psicopedagógico e o atendimento psicológico, por meio da parceria com o Curso de Psicologia da PUC Minas, são algumas das ações desenvolvidas que mudam a vida da comunidade.
Ensinando a pescar
“Não é dar o peixe, né? A gente tem que ensinar a pessoa a pescar, porque a missão do Projeto Itamar é oportunizar a vida sem fazer distinção de nenhuma pessoa”, explica Fernanda Benevides.
Na visão de Itamar, os cursos são uma oportunidade de mudança para aqueles que só querem ter uma condição de viver melhor. “Muitas mulheres recebem o bolsa família, mas nem todas as mulheres ficam satisfeitas de receber R$600 por mês ou, dependendo da quantidade de filhos, R$800, R$900. Elas querem dignidade, elas querem trabalhar, ter seu trabalho, ter sua dignidade para poder cuidar da sua família.”
Algumas dificuldades ainda cercam o projeto, como a falta de domínio das redes sociais para divulgação. Mas os desafios não impedem Itamar de fazer a diferença. “Sabe o que não deixa a gente desistir? Quando eu ando a pé na favela eu não ando dez metros sem uma criança vir correndo e me abraçar.”
Criatividade no sanduíche
Ser empreendedor é ver o que ninguém vê, achar uma lacuna no mercado e cobri-la. Isso a Dogueria Artesanal Uz Dog’s entendeu muito bem. Marco Antonio da Silva, 46 anos, sempre gostou de culinária e, quando estava desempregado, fez da necessidade uma oportunidade para abrir uma lanchonete de cachorro-quente no Cabana.
Desde o início, o empreendimento mostra a criatividade do dono e a inovação que ele implementa em seu negócio até hoje. Em 2016, quando abriu a primeira loja, ela queria que fosse um cachorro-quente diferente, foi quando proporcionou aos clientes montarem o próprio cachorro-quente: “Já tinha vários cachorro-quente, mas de self-service não tinha.” Além disso, o suco era grátis. Marco conta que a inauguração foi um sucesso e que desde então nunca mais largou o cachorro-quente.
Ao longo dos anos, ele expandiu o negócio. Hoje já são três unidades do Uz Dog’s, uma no Cabana, e as outras em Nova Granada e Califórnia. Para garantir a qualidade, Marco destaca a importância de cursos profissionalizantes para os funcionários. Quem trabalha na Uz Dog’s ganha um curso para se especializar na função que exerce, seja de hambúrguer artesanal, fritura, de massa ou até mesmo de gelatos, que também são comercializados em algumas unidades.
Já foi a um rodízio de cachorro-quente?
O empreendedor que deseja atrair novos clientes e manter os que já conquistou satisfeitos precisa inovar em seu negócio. O empreendimento de Marco Antônio já conhece a receita da inovação, mas o comerciante nunca perde a oportunidade de frequentar eventos para acompanhar o que tem de lançamento na culinária. A inovação está presente no Uz Dog’s desde os primórdios do self-service e até o atual rodízio, um diferencial que chama a atenção.
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A frase ‘não é comida, é experiência’, encaixa-se bem no modo como são pensados, preparados e apresentados os cachorros-quentes. O cardápio é planejado para oferecer uma experiência gastronômica internacional aos clientes. Cada cachorro-quente leva o nome de um país e os seus ingredientes são pensados com base na culinária local, como o U´z Mexicano, que contém molho picante, guacamole e nachos, típicos do México; e o brasileiro, com linguiça artesanal, purê e muçarela. Outros itens do cardápio como o U´z Burguer e os U´z Combos seguem o mesmo estilo.
Nas sobremesas não é diferente, a inovação é o ingrediente principal. Marco implementou no menu o Hot Dog Doce, que faz sucesso na dogueria. A versão, preparada com pão doce, chantilly, Nutella, paçoca ou morango e cobertura, é considerada um dos produtos mais inovadores do cardápio.
Distanciamento do trabalho formal
Segundo pesquisa realizada pelo Data Favela, juntamente com o Instituto Locomotiva, nas 262 comunidades do país que foram abrangidas, apenas 19% dos moradores possuem contrato de trabalho formal. Sem os direitos garantidos pelo Estado Brasileiro no artigo 6º da Constituição Federal, essas pessoas se vêem obrigadas a recorrer a outras formas de trabalho.
Nesse contexto, não têm segurança trabalhista, podem ficar expostas a condições de trabalho precárias, insegurança econômica, falta de proteção legal, aumento do risco de acidentes e acesso limitado à assistência à saúde.
Como uma forma de preencher essa falta, o empreendedorismo vem sendo uma solução para muitos moradores de favelas. No entanto, para Michelle Higino, advogada trabalhista e presidente do projeto Direito na Favela, existe uma proximidade entre as duas formas de trabalho:
“Empreendedor e trabalho informal é uma linha muito tênue, né? Quanto à informalidade e empreendedorismo. Principalmente nesse período que nós estamos sombrios quanto à venda (da ideia) de que todo mundo pode ser empreendedor.”
Isso porque, atualmente, a noção divulgada por alguns coaches, entusiastas da meritocracia e influenciadores digitais é a de que empreender é uma tarefa fácil, que pode ser realizada por todo mundo, sem levar em consideração os direitos trabalhistas negados de alguns grupos sociais, quando comparados com os grupos assalariados e vinculados ao trabalho formal. Por mais que o empreendedorismo possa ser rentável, especialistas alertam para a frustração que pode surgir quando algum novo empreendimento não dá certo, ou quando o lucro não corresponde à expectativa. “A maioria dessas pessoas ricas (referindo-se aos coaches de sucesso) estabelecem desejos para classes trabalhadoras de vidas mais confortáveis e mostram uma série de formas de se viver como pessoas mais privilegiadas, distante da realidade dessas pessoas que assistem esse conteúdo”, explica o professor de sociologia Eduardo Brasileiro.
“A gente está romantizando há muito tempo essa questão, banalizando a necessidade e a importância dos direitos trabalhistas diante dessas outras formas de trabalho no Brasil”,
problematiza a advogada Michelle Higino.
Empreender não é o problema
Para Eduardo Brasileiro, o empreendedorismo não é o problema, porém ele não deveria ser a saída para pessoas em situação vulnerável, e sim, uma escolha.
“Empreender é uma condição humana, nós empreendemos coisas. Portanto, sempre fez parte da classe trabalhadora, enquanto uma lógica de construir o próprio negócio e ter relações de económicas. O problema é que hoje há um investimento para que haja cada vez mais empreendedores ao invés de trabalhadores assalariados pela CLT. Então é aí que se concretiza a visão perversa que se construiu pelo neoliberalismo das pessoas não terem direitos trabalhistas”, explica Eduardo Brasileiro.
A advogada concorda. Ela explica que o empreendedor visa o lucro, diferentemente do MEI, que busca sobrevivência. Um trabalhador CLT tem direitos garantidos, como décimo terceiro, férias remuneradas, licença maternidade/paternidade, seguro desemprego e aposentadoria. Já o grande empreendedor, segundo ela, garantirá seus direitos de maneira paralela: “Esse cara tem um plano de previdência privada, seguro, reserva financeira, patrimônio.”
Em alguns casos, o trabalhador informal não tem acesso a esses direitos, vivendo do empreendedorismo de necessidade. Dos 41% dos moradores de comunidades que têm um negócio próprio, apenas 37% têm CNPJ. “A informalidade está em um ponto lá embaixo de um modelo econômico neoliberalista que precariza o trabalho e tira os direitos trabalhistas e com isso tira o investimento do Estado nas construções, na consolidação dessas leis”, complementa Eduardo.
“É um banco de pessoas tiradas para trabalhar no asfalto para servir ao asfalto não para que elas criem e sejam livres e independentes e bem sucedidas”
Michele Higino, advogada
A formalização de um empreendedor não se dá apenas pela ideia de vender algo. O empreendedorismo necessita de um CNPJ constituído, recolhimento de imposto, funcionários e, principalmente, lucro. O Sebrae é uma das instituições que auxiliam nesse processo.
Programa Comunidade Empreendedora do Sebrae
O Sebrae é uma entidade privada que promove a competitividade e o desenvolvimento sustentável dos empreendimentos de micro e pequenas empresas. A atuação é baseada no fortalecimento do empreendedorismo e na aceleração do processo de formalização da economia. Para isso, o portal digital oferece diversos cursos, dos mais simples aos mais complexos.
Na área de empreendedorismo, a iniciativa Comunidade Empreendedora é uma das que mais se destacam. O programa foi criado para impulsionar o negócio daqueles que desejam empreender e gerar impacto nas comunidades. A coleção on-line conta com conteúdos práticos e relevantes sobre empreendedorismo, finanças, marketing, inteligência emocional, atendimento ao cliente e vendas. Além disso, a iniciativa acontece de forma presencial, levando cursos para as comunidades, como os temas de formalização e plano de negócios.
Delaine Cordeiro, que está à frente do projeto, conta sobre a experiência. “As pessoas não sabem usar o Instagram e WhatsApp para vender, né? Acham que é só um grupo, que é só para grupo. Perguntam ‘mas tem jeito de colocar isso [o produto no WhatsApp?’ Eu levo uma oficina só de WhatsApp, para aprenderem a usar.”
Para aqueles que fogem do trabalho informal, seja porque não estão empregados, seja porque não podem trabalhar ou não têm qualificação para ingressar no mercado de trabalho, o Sebrae pode auxiliar para o acesso ao mundo do empreendedorismo.
“A gente chega e mostra para eles o que é ser empreendedor, que não é ficar com medo de colocar um preço, que eles vão ganhar dinheiro e que eles que podem ir além da fronteira da comunidade”,
explica Delaine Cordeiro, do Sebrae.
O professor Eduardo complementa, alertando ser “importante que tanto as ONGs como o Sebrae tenham a concepção de que é preciso desenvolver as capacidades produtivas das pessoas para sobrevivência, mas não afastar desse processo formativo as capacidades da busca da cidadania, da luta por direitos e de melhorias efetivas nas conquistas públicas.”
Delaine esclarece que o trabalho realizado pelo Sebrae ajuda na retomada da cidadania e integração com a comunidade. ”Eles ficam muito satisfeitos, porque a gente leva para eles o básico, que muitas vezes eles não conhecem. […]É muito bom fazer parte do desenvolvimento. A gente vê as pessoas crescendo, aumentando o faturamento.”
Matéria escrita pelas monitoras Danielly Camargos e Mariana Brandão. Sob supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard.
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