Há 20 anos, por efeito da Lei 10.216, novas diretrizes foram estabelecidas para o tratamento psiquiátrico e o modelo de assistência em saúde mental no Brasil. Embora a construção da rede de saúde em Belo Horizonte seja mais antiga, é no contexto de aprovação da lei que são ampliados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) em todo o país e que se abrem novas perspectivas de tratamento para pessoas em situação de sofrimento mental.
Diferente dos horrores vivenciados nos opressivos manicômios, hoje, a capital mineira é referência nacional no tratamento psiquiátrico humanizado alinhado com a luta antimanicomial. Belo Horizonte conta com uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS-BH) robusta, que se divide em diversas modalidades para atender desde crianças em situação de vulnerabilidade social, passando por pacientes psiquiátricos e dependentes químicos.
Entre as principais instituições, estão os Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMs) e os Centros de Convivência. Distribuídos nas nove regiões da cidade, eles fazem parte da rede substitutiva aos manicômios e são espaços em que se evidencia a capacidade transformadora da arte no tratamento de quem convive com transtornos mentais.
Nesses espaços, pacientes têm todo seu percurso voltado para reinserção social por meio de oficinas de educação, esporte e criatividade artística. Conforme explica José Guilherme de Castro (63), militante da luta antimanicomial e produtor cultural, o CERSAM é um espaço que acolhe o cidadão em crise, onde o usuário tem contato com profissionais da saúde e pega seus remédios, mas o que contribui mesmo com a melhoria das condições de saúde dos pacientes é a arte: “E para a arte existe o Centro de Convivência, onde não tem profissional da saúde, a não ser na gerência. Lá você encontra artistas plásticos, músicos, que são monitores das ações”, explica.
Arte, música e horta pela saúde mental
No Centro de Convivência Carlos Prates, por exemplo, localizado em um complexo ao lado de um CERSAM e de um Cersami (Centro de Referência em Saúde Mental Infanto-Juvenil), são realizadas oficinas de horta, música, artesanato, desenho, pintura, cerâmica, letras, ginástica e yoga, culinária, futebol, pingue-pongue e costura. O Centro também conta com turmas de EJA (Educação para Jovens e Adultos) e salão de beleza para atendimento dos mais de 160 usuários, além de parceria com empresas para reinserção de pacientes no mercado de trabalho.
Dentre as oficinas ofertadas, a de música trabalha os sentidos e desperta talentos que, em outros espaços, ficariam esquecidos, como habilidades rítmicas, de canto e de composição. “Eles participam das oficinas que eles gostam. Geralmente, a gente combina três vezes na semana, e eles escolhem aquela com que têm mais afinidade”, conta Daniela Almeida (45), gerente do Centro de Convivência Carlos Prates e terapeuta ocupacional.
Paulo Sergio (59), músico e monitor, avalia a contribuição da atividade para seus alunos: “Pela experiência que nós temos nas oficinas, essa prática é integralmente beneficiária. O usuário tem possibilidade de trabalhar em roda, que é essa coisa de estar todo mundo em conjunto, em um trabalho coletivo, e cada pessoa fica estimulada pelo outro. Não é um trabalho pedagógico, é de acolhimento. Queremos colocá-los para trabalhar com as habilidades que cada um tem, para todo mundo se sentir incluído”.
Arte Colaborativa
O desenvolvimento de habilidades ligadas à arte nos centros de convivência cumpre também um papel de autonomia financeira. Desses conhecimentos adquiridos se formaram cooperativas de economia solidária como a Companhia Girassol, criada no fim de 2018 de uma cisão da Associação Suricato, também cooperativa de economia solidária antimanicomial.
A Girassol se divide entre oito artesãos usuários da rede municipal de saúde que produzem mosaicos, bordados, artesanatos e agora uma web rádio. Valter Aparecido, conhecido como Valtinho Folha Seca, é um dos fundadores da companhia e usuário da rede há mais de 16 anos. Diagnosticado com transtorno bipolar, ele trabalha como mosaicista, ofício que aprendeu no Centro de Convivência Arthur Bispo. Sobre a relação arte e luta antimanicomial ele comenta: “Você sai da frieza dos maus tratos do manicômio e ganha a oportunidade de trabalhar com a sutileza e a delicadeza da arte. É o apontamento de um outro caminho e, a partir dessas criações, a pessoa consegue se encontrar e tecer aquele fio que estava emaranhado na mente, começa a dar vazão a um diálogo com o interior e exterior”.
Silvia Maria (44) é outra integrante da cooperativa. Formada em psicologia, ela é atriz e também participa do coral São Doidão, que conta com outros usuários da rede de saúde. Atualmente, ela trabalha como aprendiz de auxiliar administrativo por indicação de um centro de convivência e, nas horas vagas, produz bombons e flores artesanais. Mais do que ser parte da causa contra os manicômios, ela vive e reflete essa militância.
O hospício nasceu de uma lógica do capitalismo, que produz a morte, que adoece. Não tem como produzir vida com alguém trancado. Por isso a lógica da luta antimanicomial de se produzir vida em liberdade, com cidadania. Eu aprendi no movimento, que vai chegar um momento – e eu luto por isso, porque eu acredito nisso – que a loucura não vai mais rimar com dor. Loucura é uma diferença, que (quando) inclusa na sociedade, todas as pessoas vão conseguir cuidar.
Silvia Maria, integrante da Companhia Girassol
Folia Antimanicomial
Foi justamente para misturar arte, protesto e festa que floresceu em BH um carnaval contra os manicômios. Essa receita é seguida à risca pela escola de samba Liberdade Ainda que Tam Tam e pelo Bloco Sem Manicômios e Sem Prisões. O bloco de pré-carnaval saiu às ruas de Belo Horizonte pela primeira vez em 2017, a princípio, com um viés antiprisional, focado em ações de conscientização para jovens em situação de vulnerabilidade social. Mas com parceria do Fórum Mineiro de Saúde Mental, a pauta se expandiu para a luta antimanicomial, e leva milhares de foliões às ruas para festejar e protestar contra “tudo que segrega e oprime”.
A composição do bloco conta com profissionais da saúde mental, assistência social, os adolescentes e os usuários da rede substitutiva, esses dois últimos em especial, são incentivados e participam na produção das marchinhas que são cantadas no dia do desfile. O espaço de construção do bloco é bem democrático e pode chegar junto quem quiser somar a luta, segundo Daniela Almeida que faz parte da organização. Ela também avalia como muito positiva a colaboração do Bloco Sem Manicômios.
A contribuição para a luta antimanicomial é grande. Um dos objetivos é a desinstitucionalização, que não é só tirar os usuários dos hospitais, descontruir os manicômios, mas também transformar o olhar da sociedade para essas pessoas. A arte é uma grande aliada nesse processo, pelo potencial que tem de transformar a sensibilidade, de provocar, de nos afetar, e o bloco cumpre essa função de colocar isso na cidade, essa pauta e essas pessoas. A arte e a política vão se confluindo pra produzir essas transformações.
Daniela Almeida
Já a escola de samba Liberdade Ainda que Tam Tam promove um verdadeiro carnaval fora de época há mais de duas décadas, no dia 18 de maio, dia da luta antimanicomial. A maior escola de samba de Belo Horizonte coloca suas alas e 4 mil foliões, nas ruas da capital para celebrar o direito de ser louco com uma assistência médica digna e não deixar que nunca mais ninguém tenha que ser punido com o manicômio, além de sempre ter como enredo o momento político atual e fazer da data um festejo civilizatório.
O desfile é oficialmente organizado pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental, mas também conta com o auxílio de órgãos ligados à saúde, artistas e outros movimentos sociais. Sobre o período de planejamento e construção dos adereços, fantasias e samba enredo, Adriana Mojica (45) psicóloga da rede de serviço substitutivo de Itaúna e membro do Fórum Mineiro, descreve uma “construção coletiva”, feita boa parte em parceria com os centros de convivência seus usuários e familiares. Os usuários produzem suas próprias fantasias e participam de todo o processo criativo, o que ressalta a “autonomia e protagonismo”. Em consonância com seu nome, a concentração e saída da escola acontece na Praça da Liberdade e vai até a Praça da Estação.
“A cidade nos espera, quando a gente passa pela Espírito Santo às pessoas nos esperam com chuva de papel picado. O nosso movimento não é só um movimento pra dentro, mas também pra fora, onde fazemos uma discussão política. A gente sempre tem o cuidado de espalhar o amor e um pouco da nossa arte no caminho” conta Mojica, sobre olhar da cidade no dia do desfile. Em consequência da pandemia, as celebrações dos dois últimos anos aconteceram de forma virtual e com intervenções, como projeções nos prédios da cidade. Em 2021, o tema oficial foi centrado nos últimos acontecimentos da política nacional: “Democracia sim! Manicômio não! Liberdade e vacina contra a política de morte!”.
Reportagem de Ketrey Aquino para a disciplina Jornal Laboratório do curso de Jornalismo do campus Coração Eucarístico da PUC Minas.
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