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Economia do cuidado desafia as análises econômicas tradicionais

Fotografia digital em que uma mulher negra de pele clara, com cabelos longos e ondulados abraça uma menina negra, que usa o cabelo em dois coques e sorri.

Mulheres dedicam, em média, 61 horas semanais às atividades domésticas e de cuidado.

Em novembro de 2022, a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, da Câmara dos Deputados, aprovou o Projeto de Lei (PL) 2647/2021, que propõe a contabilização da dedicação ao cuidado dos filhos como tempo de serviço para fins de aposentadoria, alterando a regulamentação dos Planos de Benefícios da Previdência Social. Para entrar em vigor, a proposta ainda precisa ser analisada por outras instâncias e ir à votação no plenário, mas a entrada da discussão no radar do poder público já representa a emergência de uma abordagem que desafia as fronteiras tradicionais da análise econômica: a Economia do Cuidado.

O termo é a tradução de Economy Care, expressão criada pela cientista política Joan Tronto, em 1993, para designar todo tipo de trabalho, remunerado ou não, motivado pelo objetivo de melhorar a vida de outras pessoas. No contexto da economia contemporânea, a Economia do Cuidado surge como um conceito inovador que lança luz sobre o trabalho de cuidado não remunerado, caracterizando-o como fundamental para o bem-estar social. Reconhece-se, portanto, a complexidade e o longo período gasto com afazeres como preparar refeições, limpar e organizar a casa, comprar mantimentos e lavar, estender e guardar roupas. Há ainda o cuidado com crianças e idosos, que envolve uma série de outras tarefas que podem fazer parte da vida dos responsáveis durante muitos anos. 

Economia do cuidado em estatísticas

A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Continuada, realizada em 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indicou que, na semana da coleta dos dados, mais de 75% das entrevistadas afirmaram ter realizado atividades relacionadas ao cuidado com crianças e idosos: auxiliar nos cuidados pessoais e atividades educacionais, monitorar ou fazer companhia dentro do domicílio e transportar ou acompanhar para a escola, consultas médicas, exames, atividades sociais etc. Nos primeiros meses de vida de uma criança, soma-se, ainda, a ocupação com o aleitamento materno. A partir de dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é possível estimar que são gastas 650 horas com a amamentação até que o bebê atinja os seis meses – a OMS indica que a alimentação seja exclusivamente de leite materno até essa idade. 

A economista e pesquisadora Simone Wajnman esclarece mais sobre o tema na entrevista abaixo:

Quando falamos de economia do cuidado, existe um perfil específico de quem desenvolve esse tipo de trabalho? Quais são as características que definem esse perfil?

Simone Wajnman: Isso. São de fato as mulheres, muito mais do que os homens. Isso é algo que, historicamente, as mulheres ganharam – eu diria pior: elas ficaram muito identificadas ou relegadas a um trabalho que é tido como de pouco valor, que é o da produção doméstica.

Esse trabalho, embora seja um trabalho de produção, é visto como uma produção que não seria econômica. Mas essa ideia tem mudado ao longo do tempo: é exatamente para que toda produção econômica exista, que é preciso que as pessoas sejam cuidadas. Aliás, para que elas cheguem a uma idade ativa, precisam ter sido cuidadas, pois, se não forem, não chegam nem ao primeiro dia de vida vivas – que dirá aos primeiros anos ou à idade em que sejam independentes e comecem a se qualificar para que, um dia, venham a se tornar pessoas economicamente produtivas.

Então, essa ideia de que trabalho de cuidado não é parte da economia é uma ideia que cada vez mais vem sendo superada. Mas, de fato, ao longo da história, o que se desenvolveu como proveitoso para as famílias foi uma ideia de que o trabalho fosse especializado. Então, os homens se especializaram na produção de renda, de bens, para servir às necessidades da família, e as mulheres ficariam com a produção doméstica, ou seja, tudo aquilo do âmbito da família, e os homens, aquilo que estaria no ambiente externo ao de seus domicílios. Então, o homem, seria breadwinner e as mulheres têm o papel da female caretaker.  

Episódio do podcast “Mamilos” sobre Economia do Cuidado.

Quais atividades você definiria como as mais desenvolvidas, pensando nos perfis que você trouxe das mulheres, além do cuidado da casa?

Simone Wajnman: Tudo aquilo que implica cuidar das pessoas. Na realidade, a gente caracteriza, na economia do cuidado de hoje, o cuidado como uma dimensão multifacetada que tem vários tipos de atividade envolvidas. Se a gente puder decompor essas atividades em dois grandes grupos, essas atividades seriam os cuidados diretos e os indiretos.

Os diretos são aqueles que as pessoas cuidam diretamente de uma outra, normalmente alguém dependente. É um trabalho que exige uma intensidade grande, um contato enorme com a outra pessoa, e está ligado à incapacidade dessa pessoa de realizar outras tarefas. Por exemplo: uma criança que não come sozinha, não anda, não pode fazer absolutamente nada, ela precisa de alguém que esteja diretamente ocupada com essas atividades para ela. Da mesma maneira vai acontecer com uma pessoa idosa, à medida em que ela perde capacidades, ou com qualquer adulto com o advento de algum fato novo que faça com que perca capacidades, mesmo que temporariamente.

Os cuidados indiretos são aqueles que não estão envolvidos com alguém especificamente, mas que beneficiam um grupo grande de pessoas, não necessariamente dependentes. Por exemplo: se eu estou aqui na minha casa e falo que vou fazer jantar para todo mundo, eu estou cuidando de pessoas que não são dependentes, não necessitam disso para sobreviver, mas facilita a vida delas e isso é uma transferência de tempo que faço para esse pessoal. Todos esses cuidados têm um custo implícito. O que seria esse custo? Esse tempo que estou dedicando a cuidar das pessoas eu poderia estar fazendo algo remunerado, porém, não estou.

Então, afinal de contas quanto custa esse meu tempo? E aí está a invisibilidade de cuidados, estou fazendo por amor, mas tem um envolvimento de tempo real que poderia estar desenvolvendo alguma outra tarefa e que outras pessoas que estão se beneficiando desse meu cuidado estão usando para fazer algo que reverte em rendimento para elas. Então, precisamos, e isso que é o que a economia do cuidado faz, é visibilizar o custo desse cuidado.

Em uma pesquisa na plataforma Vale do Cuidado, realizada pelo Think Olga, eles dizem que a mulher gasta 61 horas por semana nesses trabalhos não remunerados. Fica o questionamento, que até você mesmo trouxe: qual seria a remuneração ideal para essas pessoas?

Simone Wajnman: Temos várias estratégias de como mensurar esse tempo, pois é disso que a economia do cuidado trata: visibilizar esse trabalho que é econômico, já que não existe produção econômica caso não haja esse cuidado.

Para dar essa visibilidade, precisa-se saber quanto custa e as duas maneiras mais convencionais são a de custo de oportunidade e a de custo substituto. A de oportunidade funciona da seguinte forma: quanto eu poderia estar ganhando caso estivesse usando esse tempo que estou cuidando de minha família fazendo um trabalho remunerado? A outra estratégia é de quanto eu teria que pagar para alguém me substituir e fazer esse trabalho para minha família ou cuidar de um idoso, ou seja, tomar meu lugar para planejar as atividades domésticas em todos seus âmbitos.

Claro que temos problemas nas duas formas de mensuração: na oportunidade, quanto maior a escolaridade de uma mulher, mais o tempo dela custa, o que não é muito bem visto, quase que algo injusto, então, o método mais frequentemente usado é nós calcularmos, dentro da realidade do país em que vivemos, com o custo de vida e mercado de trabalho que temos, quanto custaria para substituir esse meu trabalho com algo que pudesse me remunerar, o custo do trabalho substituto.

Em novembro de 2022, foi aprovada a lei 2647, que altera a lei dos benefícios da previdência para que os cuidados com os filhos sejam contabilizados como tempo de serviço. Ela está passando por algumas instâncias, mas em países como Uruguai e Chile já foram aprovadas leis semelhantes. Como isso vai representar um avanço aqui no Brasil e como isso já representou um avanço nesses países que foram aprovados?

Simone Wajnman: Isso faz todo sentido, houve até uma discussão enorme sobre essa questão no momento da última Reforma da Previdência, as pessoas se posicionaram dizendo que regras iguais para homens e mulheres na previdência social seria um avanço, no sentido de que não tem que tratá-los de forma diferente no mercado de trabalho. Mas essa é uma visão extremamente obtusa, na minha maneira de entender, pois eles de fato não têm oportunidades iguais no mercado de trabalho. Caso tivessem, então, sim, a gente poderia tratá-los da mesma forma. Isso se dá muito menos pela discriminação no mercado. O fator mais importante que explica isso é o fato de as mulheres terem que conciliar grande carga de trabalho doméstico com a possibilidade de exercer um trabalho remunerado.

Então, temos que considerar que essas atribuições do trabalho doméstico não precisariam ser só para a mulher. À medida que instituísse uma regra desse tipo, que todo o trabalho de cuidado deve ser reconhecido socialmente, poderia funcionar para homens e mulheres. As pessoas que cuidam devem ser reconhecidas, e a primeira forma de se fazer isso é incluir no projeto de vida de longo prazo. Por exemplo: a mulher passa sua vida cuidando, e ao final de sua vida não é incluída na previdência social, pois ela não teria trabalhado. Mas como assim ela não trabalhou?

Então, esse reconhecimento por parte da previdência, que é uma forma de se reconhecer uma seguridade para essa pessoa no final da vida dela, é apenas uma das formas de reconhecer que ela praticou um exercício essencial para ela e toda sua família, inclusive em seu próprio desenvolvimento econômico, pois sem investimento nas pessoas produtivas não há crescimento econômico. E uma das formas mais importantes de se investir na capacidade produtiva das pessoas é investir na primeira infância, na saúde, no bem-estar etc.

Essa, então, seria uma das formas mais reconhecidas nos países do mundo de contabilizar esse tempo de cuidado para que se possa estabelecer um retorno por essas atividades quanto à perda da capacidade laborativa desses indivíduos no final da vida deles.

Quais são outras práticas para que esses trabalhos sejam mais valorizados?

Simone Wajnman: Tem uma série de coisas. Primeiro que tem uma questão cultural super importante: é preciso que prestemos atenção ao fato de que as mulheres, em um tempo não tão distante, não estavam bem representadas no mercado de trabalho. Hoje elas estão presentes, principalmente nos últimos 80-60 anos, estão cada vez mais inseridas nesse ambiente. Mas se observamos como elas participam, as mulheres estão em atividades que, de certa forma, mimetizam atividades que elas fazem no ambiente doméstico.

São, principalmente, as atividades de cuidados, ou seja: empregadas domésticas, que cuidam da casa, mas são remuneradas e, não por coincidência, é uma das atividades mais desvalorizadas de todas na nossa escala ocupacional, com os menores salários e tendem a não ser formalizadas. Mesmo quando mulheres estão em atividades mais relevantes, mais valorizadas e formais na economia, elas estão fazendo trabalho de professoras, enfermeiras, de cuidadoras, que são trabalhos que tendem a reproduzir a ideia do cuidado. E esses trabalhos também são menos valorizados que trabalhos de gerência, de direção de empresas etc.

É interessante perceber que as mulheres são as principais participantes desses mercados, mas os cargos de direção são ocupados, principalmente, por homens. Enquanto não tivermos melhor divisão no trabalho doméstico entre homens e mulheres, isso não vai mudar internamente nas culturas das pessoas, ou seja, se elas não perceberem que tais atividades são importantes para todos, essas questões que são culturalmente estabelecidas não se resolvem.

Valorizar o trabalho de cuidado é uma questão cultural, com uma série de coisas que podem ser feitas para melhorar as condições. A outra coisa é melhorar o suporte do Estado para essas atividades, para possam ser menos dolorosas. Oferecer creches para crianças pequenas, hospital que possa atender pessoas idosas, centros de longa permanência para a população geriátrica e pessoas incapacitadas funcionais sem distinção de idade. Ou seja, tem uma série de fatores que melhoram o suporte que a sociedade como um todo resolve priorizar para que esses cuidados sejam feitos por todos, não apenas pelas mulheres.

Pensando agora no cenário do mercado econômico, essa remuneração desse trabalho, que impacto ela geraria para esse mercado que vivemos na sociedade?

Simone Wajnman: Tem várias estimativas sobre isso, nenhuma definitiva, mas sem dúvida há um impacto enorme. Se formos olhar todas as escalas de atividade econômica que temos no mercado de trabalho brasileiro, um terço dessas atividades remuneradas está relacionada com o cuidado. Mas, sem dúvida, essa é uma maneira de pensar o problema também.

É difícil convencer um político de que essa é uma medida importante, pois ela tem um impacto social. É muito mais fácil você aliar o impacto social ao econômico, e por isso mesmo esses números são importantes. Mostrar que é um enorme gerador de emprego. Investir, por exemplo, em melhorias nas atividades, para que as pessoas possam substituir parte do trabalho doméstico por um trabalho que não é exercido em domicílio. Ou seja, trabalhos que não sejam com crianças, idosos ou cuidados permanentes para pessoas incapacitadas, cuidar apenas uma parte do dia para que libere os adultos da família e eles possam ir para o mercado de trabalho, isso tem um impacto enorme em geração de empregos.

Então, tem um impacto imediato na oferta de trabalhos, e de longo prazo na melhora da capacidade dessas pessoas. Ou seja, criar políticas que melhorem esse setor da economia geraria consequências de maior capacidade de geração de renda para as famílias.

E vendo todo esse cenário, você sente que já teve algum avanço político nessa questão?

Simone Wajnman: Foi criada uma Secretaria Especial de Cuidados e Família, neste governo, dentro do Ministério de Desenvolvimento Social. O primeiro trabalho que essa Secretaria está fazendo, pois ela só tem um mês de existência, é reunir todas as políticas que estão dispersas nos diversos ministérios: temos políticas específicas para idosos estabelecidas na época do Estatuto do Idoso; tem diversas ações voltadas para crianças, seja no Ministério do Desenvolvimento Social, seja no da Educação ou da Saúde. Então, a primeira coisa que essa Secretaria está fazendo é colocar isso tudo numa mesma estrutura, para que possamos saber o que de fato temos e o que falta.

Esse trabalho está funcionando como diagnóstico, para que se possa sistematizar tudo isso, colocar tudo dentro de uma política nacional de cuidados, a exemplo do que vários países, inclusive da América Latina, já estão fazendo, muito antes que o Brasil. O Uruguai é um exemplo ótimo, pois já tem uma política nacional de cuidados, que é algo que não pode prover tudo, mas essas ações não podem dar todos os tipos de cuidados que as pessoas precisam, mas ela está focando naquilo que é mais essencial, principalmente a primeira infância, cuidados com idosos e com pessoas com deficiência. Não basta apenas dar recursos para as pessoas, isso é uma maneira que você resolve uma parte do problema, mas você não resolve os cuidados.

A população brasileira está envelhecendo rápido, mais rápido que os países que já estão com a transição demográfica completa, a nossa está sendo completada de uma forma muito rápida. A cultura etária está se invertendo rapidamente e, quando substituímos uma população infantil por uma população idosa, os cuidados com a população mais velha são muito mais complexos que os que seriam feitos com as crianças. Não que os cuidados com a população infantil não exijam algum tipo de especialização, mas é mais complicado quando você está cuidando de idosos com doenças crônicas que, muitas vezes, exigem uma qualificação muito particular para cuidar dessas enfermidades, exigem dar medicação, atender com primeiros socorros, fazer trabalho fisioterapêutico, ou seja, uma série de fatores que são altamente especializados e de longo prazo.

Quanto mais a população envelhece, mais ganhamos expectativa de vida e não estamos fazendo um excelente trabalho de reduzir a morbidade da população idosa. E, se essa parte dos habitantes é mal atendida, ela é uma população que tende a desenvolver cada vez mais incapacidade funcional, que são extremamente onerosas e exigem cuidados altamente qualificados. Tornando essa questão de grande importância a se resolver, não sendo apenas uma questão de justiça social, mas também de estratégia para que você não desmantele toda uma sociedade. 

Esta entrevista foi produzida por Anna Nunes Reis, Danilo Valadares, Helena Tomaz, Júlia de Jesus e Maria Eduarda Gonzaga, alunos do 6°período de Jornalismo, para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Especializado, sob orientação do professor Getúlio Neuremberg. 


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