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Do rio ao concreto: a canalização dos cursos d’água em BH

Rede hidrográfica da capital mineira só é lembrada pelos desastres em épocas de chuva

O cenário é bem diferente nos dias atuais, mas ainda é possível encontrar pessoas que já pescaram no Ribeirão Arrudas ou que nadaram no Córrego da Serra. Há quem guarde lembranças das brincadeiras à beira do Ribeirão do Onça, ou quem se recorde da cachoeira que existia onde hoje está o Palácio das Artes, no centro de Belo Horizonte.

Embora essas memórias pareçam pertencer a um passado muito distante para os moradores da capital, muitos testemunham o processo de degradação dos rios da cidade desde os tempos de seu planejamento. É o caso de Maria Angélica, moradora da capital há 69 anos. 

“Eu lembro que ele passava onde hoje é Avenida Prudente de Morais. Depois das obras, percebi que muitas aves desapareceram e os rios ficaram mais poluídos. Também tive a impressão de que o clima da cidade ficou mais quente”, relata Maria Angélica, ao se recordar do Córrego do Leitão antes dele ser canalizado. 

Córrego do Leitão na Rua Padre Belchior em 1950

Acervo Alessandro Borsagli/Arquivo Público de Belo Horizonte

Em períodos de chuvas volumosas, como durante os meses de verão, os moradores de Belo Horizonte e região metropolitana ficam em alerta para possíveis ocorrências de enchentes, causadas principalmente pelo transbordamento dos rios e córregos. Ano após ano o cenário de destruição se repete durante as chuvas torrenciais, mas com efeitos cada vez mais devastadores, resultando em vidas perdidas e prejuízos materiais. 

Em janeiro de 2024, poucos meses antes desta reportagem começar a ser escrita, vários pontos na capital mineira ficaram, mais uma vez, submersos. Apesar de todas as obras e intervenções municipais executadas desde as canalizações, os transbordamentos são um problema recorrente. Segundo o engenheiro ambiental formado pela Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC), Felipe Gomes, uma das principais razões por trás desse cenário é a ineficácia da infraestrutura urbana, que não é capaz de lidar com a complexa malha hidrográfica sobre a qual a cidade foi construída.

Gigantes escondidos

Embora a canalização dos rios seja uma estratégia histórica para controlar o fluxo das águas, ela é hoje objeto de críticas de ambientalistas, geógrafos e arquitetos. Apesar de a intenção ser direcionar o curso natural dos rios para prevenir transbordamentos e facilitar a urbanização, esse tipo de intervenção contribui, muitas vezes, para a intensificação das enchentes. 

Felipe Gomes explica, que isso ocorre porque essas intervenções ignoram as características naturais dos rios e córregos, além de sua importância ambiental. Somado a esse fator, está a impermeabilização da cidade, sem incentivo a áreas úmidas.

A canalização altera o fluxo natural da água, restringindo sua capacidade de infiltração no solo e acelerando seu deslocamento para áreas mais baixas e urbanizadas, onde a infraestrutura de drenagem nem sempre é suficiente para absorver o grande volume de água que chega rapidamente e se acumula durante tempestades. “Esse são os efeitos das canalizações. Os córregos que antes faziam parte do cenário belo-horizontino são lembrados pela população somente ao transbordarem”, pontua o ambientalista.

Poucas pessoas têm consciência de que, por debaixo do asfalto, correm cursos d’água canalizados e ocultos aos olhos de todos. Alessandro Borsagli, geógrafo e doutorando pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, explica que a cidade foi estabelecida sobre territórios que compreendem quatro grandes bacias hidrográficas: Ribeirão Arrudas, Rio das Velhas, Ribeirão do Onça e Ribeirão do Isidoro. Essa transformação, marcada pela canalização dos cursos d’água, teve início já nas primeiras décadas do século XX, perdurando até a recente cobertura do Arrudas.

Hidrografia de Belo Horizonte e região metropolitana: duas principais bacias cortam a capital mineira

Prefeitura de Belo Horizonte | Créditos: Equipe Colab

O território do Município de Belo Horizonte é cortado por duas principais bacias hidrográficas: a do ribeirão da Onça e a do Arrudas. A primeira ocupa pouco mais de 211 km² e é dividida em duas áreas distintas devido ao barramento que resultou na formação da Lagoa da Pampulha. Já a bacia do Arrudas ocupa quase 208 km² e abarca os córregos Jatobá, Barreiro e Ferrugem. Nos dois casos, os rios possuem grande declividade, o que resulta em escoamentos com velocidades muito altas.

A complexa teia d’água é parte fundamental da vida na capital mineira, influenciando desde o clima até o dia a dia dos moradores. Mas tanta água também traz desafios. As chuvas fortes e frequentes exigem atenção especial para evitar enchentes e transtornos. É aí que entra a importância de se pensar bem na relação da cidade com seus rios e córregos.

Apagamento e poluição

Belo Horizonte poderia ter uma paisagem marcada por rios e pontes, como uma “Veneza brasileira”. Por baixo das principais avenidas, como Afonso Pena, Prudente de Morais, Silviano Brandão e Pedro II, correm rios que foram canalizados e cobertos entre os anos de 1894 e 1977. De acordo com a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), dos 654 quilômetros da malha fluvial da capital mineira, 208 estão escondidos sob ruas, avenidas e construções.

Extensão dos cursos d’água canalizados na região Centro-Sul de Belo Horizonte.

SUDECAP- Superintendência de Desenvolvimento da Capital | Créditos: Equipe Colab

Alessandro Borsagli conta que sempre se interessou pelas questões ambientais no espaço urbano e dedicou 15 anos de estudos à hidrografia de Belo Horizonte. Em seus três livros publicados – Rios Invisíveis da Metrópole Mineira, Horizontes Fluviais e Rios Urbanos de Belo Horizonte , ele estuda os rios de BH desde a fundação da capital, em 1897, até os problemas atuais. 

Segundo projeto da Comissão Construtora da Nova Capital, formada por engenheiros e liderada por Aarão Reis, a escolha do local para a instalação da capital mineira levou em conta o clima agradável e a grande disponibilidade de água na região. Entre as questões que preocupavam a Comissão, estavam a captação de esgoto e águas pluviais. 

“A canalização foi adotada como uma medida de saneamento. Se pensava que ajudaria a controlar as enchentes e também desejavam a construção de vias para os automóveis. Então, na cidade tinha essa ideia de jogar o esgoto e deixar o rio levar isso para fora. Mas, levar para onde? Isso é uma medida primária, pois já se tinha o conhecimento sobre os problemas que o despejo desse esgoto poderia causar”, afirma Borsagli.

Em 1898, com muitas dívidas e o fim da Comissão Construtora, os esgotos passaram a ser despejados diretamente nos cursos d’água sem nenhum tipo de tratamento. Além disso, quem vivia no arraial Curral Del Rey, como era chamada a capital, foram “expulsas” para regiões suburbanas e periféricas. 

“Desde o princípio, fica claro o interesse político e econômico existente por trás da nova capital. Com um espaço urbano hierarquizado e funções sociais delimitadas, sendo o único objetivo manter uma “boa aparência” da zona planejada”, explica Borsagli.

Trecho do ribeirão Arrudas na avenida dos Andradas, em 1960

Imagens do conhecimento UFMG/Yuri Mesquita

Ainda, Carla Ferretti, professora de História da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, pontua que as desigualdades sociais e econômicas foram determinantes para a forma como a cidade foi ocupada ao longo dos anos. “Belo Horizonte já surgiu, como cidade planejada, sob a ótica da segregação. Na história da cidade, os serviços de infraestrutura urbana, como abastecimento de água e coleta de esgotos, esteve acessível basicamente aos setores mais abastados da sociedade”.

O vídeo a seguir mostra a linha do tempo de desenvolvimento de Belo Horizonte e a sua relação com os cursos d’água. Confira na íntegra:

Consequências da canalização

Embora as mudanças climáticas ligadas ao aquecimento global gerem efeitos em todo o planeta, existem fatores locais que impactam o clima de uma cidade. Esse é o caso de Belo Horizonte, onde diversas medidas tomadas em âmbito local contribuíram para mudanças no clima percebidas pelos habitantes da cidade nas últimas décadas. 

Nesse contexto, o processo de urbanização da capital é visto como o principal “vilão”. Medidas como a canalização dos cursos d’água, impermeabilização do solo e supressão da vegetação geram alterações na topografia local e diminuição da circulação de água como vapor na atmosfera. Esse processo está diretamente ligado ao aumento da temperatura na cidade. Essas mudanças no clima impactam também o regime pluvial em Belo Horizonte, alterando o padrão de frequência e intensidade das chuvas na cidade. 

“A impermeabilização do solo em Belo Horizonte afetou o Rio das Velhas, já que a água que penetrava no solo alimentava o aquífero dele. O rio é uma surgência, naquele solo que está saturado de água, o rio surge. Atualmente, o Rio das Velhas só vem perdendo sua vazão por essa água que não alimenta mais o lençol freático. Isso muda completamente o funcionamento da bacia”, explica Borsagli.

Em Belo Horizonte, a Prefeitura tem investido em obras de bacias de contenção e elas já apresentaram resultados. Cinco avenidas foram alagadas durante o último período chuvoso de outubro de 2023 a março de 2024. O número representa uma redução de 77% nas ocorrências de inundações comparado ao período chuvoso anterior (2022/2023), quando 22 alagamentos foram registrados na cidade.

O Plano Diretor de Belo Horizonte, publicado em 2019, em artigo dedicado às áreas de conexões ambientais, determina que “é vedado o tamponamento de córregos em áreas de conexões de fundo de vale, devendo ser evitada a canalização e priorizada sua manutenção em leito natural com áreas adjacentes dedicadas à preservação ambiental”. A proibição também está presente no DRENURBS, um programa municipal de drenagem urbana, criado em 2002. Porém, obras de projetos que tenham sido elaborados antes do Plano Diretor, caso sejam aprovadas, podem ser executadas normalmente.

Diante disso, conflitos ambientais estão presentes quando existem interesses econômicos e políticos envolvidos na realização de obras. É o caso, por exemplo, da autorização em 2019 da construção da Arena MRV em uma cabeceira de um curso d’água. O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) permitiu a canalização de 296 metros do Córrego do Tejuco, na bacia do Ribeirão Arrudas, para possibilitar a construção do estádio do Atlético Mineiro. A obra deixou mais de 60% da região impermeabilizada, mas, segundo os técnicos da Construtora MRV, seria criada uma caixa de detenção para liberar a água aos poucos. No terreno, ainda existem duas nascentes que seriam mantidas em uma área preservada. Segundo Borsagli, obras como essa podem gerar diversos problemas e até levar ao fim das nascentes. 

Enchentes 

O arquiteto e professor da Universidade Federal de São Paulo (USP), Vladimir Bartalini, explica que a história dos córregos, tanto em São Paulo como em Belo Horizonte, e nas grandes  do país, foi de poluição, depois retificação, canalização e, por fim, o tamponamento. 

“As cidades médias ou grandes do Brasil tapam os seus córregos, principalmente para esconder os problemas, já que eles se tornaram lugares para despejo de esgoto. Acabam virando corpos que são enterrados”, afirma Bartalini.

Rua Acre, na região central de Belo Horizonte, tomada por enchente em 1960

Além de serem um reflexo da negligência histórica com a rede hidrográfica urbana, as enchentes geram impactos na vida da população. Conforme mencionado por Vladimir Bartalini, a canalização e o tamponamento dos córregos em cidades como Belo Horizonte têm consequências diretas. Essas intervenções, realizadas muitas vezes para ocultar problemas, transformam os cursos d’água em verdadeiros condutores de risco durante períodos de chuvas intensas.

Em novembro de 2018, duas tragédias na época de chuvas marcaram a memória da população de BH. A primeira foi a morte da jovem Anna Luísa Fernandes de Paiva, de 16 anos. Durante um alagamento na Avenida Álvaro Camargo, na região de Venda Nova, a adolescente foi arrastada pela correnteza e caiu dentro de um bueiro. Próximo do mesmo lugar, na Avenida Vilarinho, mãe e filha também foram vítimas. As duas morreram afogadas após o carro ser arrastado pela correnteza. Outra história de perda é a do motorista de aplicativo Alexandre Souza, entrevistado no podcast Rios Invisíveis de BH, ao final desta reportagem.

Notícias como essas são vistas em várias cidades brasileiras e servem para mobilizar o poder público sobre mudanças ainda necessárias. A prefeitura de Belo Horizonte tem realizado obras ao longo das décadas, como a construção de bacias de detenção e a revitalização de áreas verdes. No entanto, essas iniciativas mostram limitações diante da intensidade das chuvas na região, que resultam no transbordamento de diversos rios e córregos. Em 2024, pelo menos dois casos de alagamentos já foram registrados na capital até o mês de junho.

De acordo com a própria PBH, as obras não são suficientes para eliminar, por completo, os riscos de alagamentos. “[…] é fundamental que se tenha o entendimento de que as inundações são eventos naturais. Assim, não é possível realizar obras que eliminem por completo os riscos dessas ocorrências. Cada obra terá sempre seu limite de capacidade de resposta, que deverá ser aquele que venha a mitigar adequadamente os efeitos das inundações, tornando-as menos frequentes e garantindo resiliência às áreas de risco”, afirma documento publicado  em 2018 na página do DRENURBS pela Prefeitura de Belo Horizonte. 

Avanços e desafios

Muito se fala em soluções para redução dos impactos dos fenômenos naturais. Na concepção de cidade que temos hoje, tem muito o que se fazer. Alessandro Borsagli cita algumas medidas que podem melhorar os transtornos. Entre eles, a criação de mais áreas permeáveis para que a água da chuva possa ser escoada. Os jardins de chuva servem para reter essa água. 

Retirar a cobertura asfáltica de algumas vias e trocar por calçamento já diminui a velocidade da água, e isso faz com que ela não chegue tão rápido nos fundos de vale, tendo por consequência as inundações e transbordamentos. 

Além disso tudo, há a possibilidade de criação de parques ciliares ao longo dos rios. “Mas, para isso, primeiro temos que retirar o esgoto e tratar essa água. Dessa forma, será possível melhorar o clima urbano e a qualidade de vida. Isso tudo são medidas paliativas para mitigar esses problemas, mas que fazem parte da reabilitação da hidrografia”, diz Borsagli.

Em maio deste ano, a prefeitura de Belo Horizonte adotou uma iniciativa chamada “Adote um Jardim de Chuva”, que prevê desconto de 10% no valor do IPTU para os moradores que auxiliarem no cuidado dessas áreas. Os jardins de chuva são espaços com vegetação instalados nas ruas com o propósito de infiltrar parte da água das chuvas, reduzindo o volume de escoamento e auxiliando no controle das inundações e alagamentos. De acordo com a Subsecretaria de Planejamento Urbano, a medida é uma adaptação às questões climáticas e busca ampliar o cuidado ambiental com o apoio da população.

A transformação de Belo Horizonte em uma cidade que convive harmoniosamente com seus cursos d’água é um objetivo ambicioso, mas possível. Carla Ferretti também aponta alguns caminhos: “É necessário que se faça um trabalho de educação ambiental sistemático no qual se demonstre os problemas de encobrir os rios, é possível recuperar os rios encobertos para que a cidade conviva, de forma harmoniosa, com seus cursos de água”. 

No entanto, outras esferas da sociedade também são essenciais nesse processo. “Além da informação e educação junto à população, é necessário que o poder público faça a sua parte, com tratamento dos esgotos e fiscalização dos ambientes dos cursos d’água. E também as empresas e os negócios, não poluindo e jogando seus rejeitos nos rios e córregos”, afirma a pesquisadora.

Para conhecer mais histórias sobre os rios e enchentes na capital mineira, escute o podcast abaixo.

Reportagem desenvolvida por Ana Luiza Pereira, Eduarda Porto, Gabriel Araújo, Ísis Castro, Jenifer Costa, Matheus Sampaio e Thais Batista, para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/1 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.

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