Na cidade do Serro, interior de Minas Gerais, a professora Maria Lúcia Clementino Nunes, mais conhecida apenas como Lucinha, alfabetizava crianças para além da sala de aula em uma escola rural nos anos 50. Através do paladar, as raízes culturais da culinária mineira eram ensinadas com muito sabor, na cantina da escola. Foi dessa conexão entre o conhecimento e a culinária que nasceu a trajetória do restaurante Dona Lucinha, localizado na região da Savassi, em Belo Horizonte.
Fundado em 1990, o restaurante carrega o nome e o legado de uma mulher que se tornou ícone na valorização da cozinha mineira. Lucinha, que anos depois ganharia o carinhoso título de “Dona”, nasceu em 1932 e entendeu cedo que os pratos típicos de Minas Gerais são mais do que apenas alimentos, mas não recebiam o merecido reconhecimento – nem mesmo entre os próprios mineiros. Atualmente, é a filha Márcia Nunes que toca com orgulho o legado da mãe.
A filha mais velha de Lucinha conta que a mãe começou sua trajetória aos 20 anos com um trabalho educativo, inicialmente voltado para crianças e alunos. Aos poucos, ampliou seu alcance quando, ainda na cidade do Serro, Lucinha recebia convites para servir pratos locais para figuras importantes, como deputados e ministros do estado. Assim, a cozinheira começou a se envolver com a comunidade local e viajou por cerca de 40 anos para representar a cozinha mineira em festivais, até levar sua dedicação à culinária mineira para Belo Horizonte, nos anos 90, quando a família se mudou para a capital. Foi com muito empenho que Lucinha lutou para transformar a cozinha mineira em um patrimônio reconhecido como é hoje em seu restaurante.
A trajetória de Dona Lucinha é um reflexo de como a culinária mineira transcende o ato de comer: ela é história, cultura e identidade. Para entender como esses sabores se formaram, é preciso olhar para o cotidiano que moldou a tradição alimentar do estado.
Do quintal e do mundo
Desde as transformações introduzidas no campo da História pela chamada “Escola dos Anais”, na França, ainda no século XX, a historiografia tem se afastado das narrativas sobre grandes eventos políticos e voltado sua atenção para práticas e vivências cotidianas. Não é diferente com o estudo da identidade mineira, como explica José Newton Coelho Meneses, historiador e professor do departamento de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em outras palavras, não é possível dizer que grandes eventos históricos, como a Inconfidência Mineira, determinaram toda uma cultura alimentar, já que esses eventos acontecem dentro do viver e da experiência humana.
Nesses hábitos diários, as tradições alimentares se fortalecem ao se adaptarem ao território, incorporando influências externas e integrando novos ingredientes ao paladar local. Um exemplo disso é o trigo, que, embora importado, passou a figurar em receitas mineiras ao lado de ingredientes regionais, como o fubá e a mandioca.
Não à toa, para Guimarães Rosa, Minas Gerais é “encruzilhada”, isto é, ponto de convergência entre variadas culturas e etnias.
Pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas”, Guimarães Rosa
Esse caráter cosmopolita impacta a culinária mineira, que utiliza o que o quintal oferece enquanto anseia e incorpora sabores e ingredientes de outras culturas e regiões. Nas palavras de José Newton, “a comida mineira é vasculhar o seu quintal e desejar o que ele não tem”.
A metáfora, segundo ele, explica como a tradição alimentar conecta o lar ao seu entorno. Ao longo do tempo, os quintais foram além do papel de sustentar a família e se tornaram parte essencial da economia da vizinhança ao abastecer ruas e vilas, fortalecendo os laços comunitários. Em Minas, eles simbolizam a troca de saberes e sabores que moldam a cultura alimentar do estado e preservam tradições que atravessam gerações, ao mesmo tempo em que acolhem novas influências.
Segundo o historiador, no período colonial, a ocupação dos grandes centros urbanos, ainda em desenvolvimento, dependia fortemente da produção rural para suprir suas necessidades, o que torna difícil distinguir com precisão o que era considerado rural e urbano no século XVIII. Havia ali uma interação intensa entre esses espaços: o abastecimento de alimentos e outros produtos, aliado ao trânsito constante de pessoas entre vilas e campos, criou uma economia de suporte mútuo e moldou a cultura alimentar local.
Com o tempo, a economia mineira passou por um processo que marcou uma diferenciação maior entre cidade e campo. Mas, mesmo nos centros urbanos, a influência do rural permaneceu central, especialmente na formação do gosto e da cultura alimentar mineira, que tem raízes profundas nas técnicas e nos ingredientes do campo.
Pratos como a canjiquinha, o feijão tropeiro e a carne de porco e de frango são heranças que resistem na cidade e preservam em seu preparo técnicas de cozimento lento e ingredientes típicos da vida rural. “É todo um processo de manutenção de valores e de costumes, com muitas mudanças. A tradição é isso: é um processo de transmissão no tempo, onde muita coisa permanece e muita coisa muda. Mas o essencial muda muito lentamente, devagar no tempo”, destaca José Newton.
Os quintais são os principais guardiões dos saberes e sabores que sustentam a cultura alimentar mineira ao transmitir conhecimentos e práticas que moldam a identidade do estado. A tradição mineira combina o saber-fazer com o fazer-saber, uma troca que valoriza as técnicas e os ingredientes locais enquanto se adapta às transformações ao longo do tempo.
José Newton afirma ainda que o sentimento de pertencimento através da comida é forte em Minas Gerais. Segundo o pesquisador, nos processos e práticas alimentares, “a gente vê não um reflexo, mas a nossa própria história”. Essa mistura de história, cultura e sabores fez da culinária mineira mais do que uma colcha de retalhos de receitas.
Cozinha de Minas como símbolo de identidade
Em 2023, a culinária mineira foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural (Conep). O reconhecimento se deu após a divulgação de um estudo realizado pela Secretaria de Estado de Cultura e Turismo e pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), sobre as origens da culinária mineira. A pesquisa destaca o papel de alimentos típicos, como o milho e a mandioca, na composição dos pratos, além das técnicas tradicionais de preparo.
Patrimônio cultural é um conjunto de bens materiais e imateriais, transmitidos entre gerações, que representam o legado e a identidade de um povo. Trata-se de um registro vivo da história de um povo, um elo entre o passado e o presente.
O título veio para Minas no Dia da Gastronomia Mineira, depois de anos correndo atrás. É que o processo de declaração de um bem como patrimônio cultural envolve várias etapas. Primeiro, é feito um levantamento detalhado da documentação do bem, que inclui registros que comprovem sua origem, importância e relevância social. Em seguida, é feita uma proposta formal de tombamento, geralmente apresentada a órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no Brasil.
O pedido é, então, avaliado por especialistas, que realizam estudos técnicos. Caso aprovado, o bem é oficialmente reconhecido e protegido por leis específicas, garantindo sua conservação e valorização ao longo do tempo. Para bens materiais, o processo pode incluir restaurações, enquanto bens imateriais requerem políticas de preservação e transmissão cultural.
Em 4 de dezembro deste ano, os modos de fazer do Queijo Minas Artesanal também foram reconhecidos como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco. Esta foi a primeira vez que uma técnica de preparo de um alimento brasileiro recebeu o título. Produzido há três séculos em 106 municípios de Minas Gerais, o produto já era Patrimônio Cultural do Brasil desde 2008, segundo o Iphan. O reconhecimento internacional, solicitado em 2023, reforça a importância do queijo como símbolo da agricultura familiar e da cultura brasileira.
A cozinha mineira reflete a cultura alimentar do estado, demonstrando o vínculo da população com o ambiente, suas adaptações culturais e processos históricos inscritos no território. Ainda de acordo com José Newton “à medida que a população vai crescendo, vai crescendo também essa produção alimentar e essa construção de um gosto específico, que se liga muito às relações desse homem com esse território que ele constrói”.
Entre ondas de rádio e mesas de boteco
No final de 1999, durante uma festa de confraternização de final de ano na extinta Rádio Geraes, surgiu a ideia de um evento para valorizar a tradicional cozinha de raiz e os botecos de Belo Horizonte. Eduardo Maya, apresentador do programa Momento Gourmet, discutiu a proposta com João Guimarães, proprietário da emissora, e Maria Eulália Araújo, gerente de marketing e comercial.
Da ideia, nasceu o famoso Comida di Buteco. O evento foi pensado como um concurso exclusivo para botecos, voltado a celebrar a cultura desses estabelecimentos mineiros. Em 2000, o Comida di Buteco foi lançado como uma iniciativa promocional da Rádio Geraes FM para resgatar e valorizar os botecos familiares e suas cozinhas.
Além do Comida di Buteco, Eduardo é fundador também do Projeto Aproxima e tem sido um ator importante na projeção da cozinha mineira para além das fronteiras do estado e do país. Seu lema “pensar global, comer local”, traduz a essência de seu trabalho: valorizar o que é produzido em Minas, incorporando ingredientes regionais em um contexto global.
“Os ingredientes mais importantes da gastronomia mineira são aqueles que encontramos dentro de Minas Gerais”, destaca o chef, enfatizando a necessidade de valorizar os produtos locais, como as frutas do cerrado ou o queijo Minas, que passou por um processo de reconhecimento nos últimos anos. “O queijo saiu de um preço de 6 para 60 o quilo porque começamos a valorizar esse produto”, relembra.
Eduardo Maya também reflete sobre os desafios da preservação das receitas tradicionais mineiras, destacando que festivais como o Comida di Buteco contribuíram para essa missão. “O projeto não apenas mudou a forma da cozinha mineira como ajudou a divulgá-la. Nós já saímos no New York Times de domingo, duas vezes. Estivemos em jornais franceses, italianos, e em todas as revistas de bordo das companhias aéreas. Foi um estouro, um negócio que pegou e foi para o mundo inteiro”, afirma.
O Projeto Aproxima, por sua vez, tem uma missão mais ampla. “Ele valoriza Minas, seus produtos e toda a cadeia gastronômica. Não é um concurso, é uma valorização através de eventos que conectam a riqueza do estado com o público”, explica o chef, ao destacar a importância de iniciativas que reforcem o vínculo entre as raízes e a modernidade.
Equilíbrio tradição e inovação na cozinha mineira
A jornalista gastronômica Carolina Daher traz a perspectiva de quem vive e respira o universo da culinária mineira. Ela destaca que, nos últimos anos, a gastronomia de Minas tem se afirmado com mais força no cenário nacional e internacional. O processo foi impulsionado pela transformação da comida de casa, tradicionalmente feita pelas avós e tias, em um verdadeiro símbolo cultural. “A Dona Lucinha foi uma das primeiras a formatar essa comida caseira em um modelo de negócio. Hoje, os pratos simples de fazenda são reconhecidos como parte do orgulho mineiro”, explica a jornalista.
Antes de dar um passo na direção dos chefs contemporâneos na culinária de Minas, é importante entender o equilíbrio entre tradição e inovação. Carolina ressalta que é necessário preservar as raízes da culinária. “Temos que manter a tradição, sempre olhar para ela, porque é algo que deu certo e que encanta, mas sem parar no tempo. Assim como qualquer outra arte como teatro, música, cinema, pintura, literatura todas essas expressões precisam evoluir”.
A nova geração de chefs mineiros tem se destacado por encontrar formas criativas de manter viva a tradição enquanto inova em técnicas e apresentações. A jornalista observa que há “uma nova gastronomia mineira” sendo construída, pautada em ingredientes habituais e narrativas históricas, mas reinterpretada com uma abordagem contemporânea.
Segundo Carolina, uma tendência nesse cenário é a valorização da origem dos pratos. Com isso, ganha força o crescente interesse em compreender e conhecer de onde vêm os ingredientes – um costume sempre presente na cozinha mineira. Em Minas, a valorização do pequeno produtor e a conexão com a origem dos ingredientes estão profundamente enraizadas na essência da gastronomia local.
Nada é mais sofisticado do que saber de onde vem sua comida”
– Carolina Daher, jornalista de gastronomia
Além de um meio para alimentar o corpo, Carolina vê nossa comida como forma de nos conectarmos uns com os outros. “Depois da língua, nada nos une mais como povo do que aquilo que a gente come. A gente se reconhece no prato, a gente reconhece o tempero, os ingredientes, os produtos. A gente tem uma relação com a comida que nos deixa confortável, assim como nos deixa confortável falar com alguém que entenda o que você está falando, que entenda a sua língua”.
A culinária mineira não é um conjunto de sabores. É uma história viva que conecta o passado, o presente e o futuro. Das avós que faziam receitas no fogão à lenha aos chefs contemporâneos que reiventam essas tradições, ela expressa identidade, memória e até inovação. Como ressalta Carolina Daher, o segredo está no equilíbrio: manter as raízes e valorizar a origem dos ingredientes – mas, ainda assim, conseguir se movimentar. A cada prato, alimentamos o corpo e nos reconhecemos como parte de uma cultura riquíssima que une pessoas, narra histórias e traduz a essência mineira em sabores que falam com o mundo.
Reportagem desenvolvida por Ana Cecília Araújo, Júlia Maria Sousa, Mariana Maia e Nathália Ferreira para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.
Adicionar comentário