Uma das grandes surpresas de 2022, a série original da Fox, The Bear, tem a estreia da sua segunda temporada marcada para o dia 22 de junho nos Estados Unidos. Criada por Christopher Storer, a primeira temporada se destacou entre grandes produções, como Succession, House of the Dragon e Better Call Saul, por apresentar uma estrutura narrativa diferente, com episódios curtos e ritmo ágil. São oito episódios de aproximadamente 30 minutos, muito intensos. Ao final de cada um, ficamos com a respiração ofegante, os pensamentos desordenados e o coração na boca.
A partir da história de Carmen Berzatto, ou apenas “Carmy”, um jovem chef de cozinha, interpretado por Jeremy Allen White (conhecido pela série Shameless), somos apresentados à cozinha de The Original Beef, um clássico restaurante de sanduíches da cidade de Chicago, que está à beira da falência e cheio de problemas estruturais. Carmy, extremamente talentoso e já considerado um dos melhores chefs do mundo, retorna à cidade com a missão de assumir o restaurante deixado por seu irmão recém falecido, e transformá-lo em algo melhor. Entretanto, para isso, além de lidar com as questões administrativas e financeiras do restaurante, ele precisará aprender a lidar com os problemas pessoais, ao mesmo tempo em que tenta comandar a equipe que já trabalhava ali antes da sua chegada.
The Bear teletransporta o público para uma cozinha para falar sobre relacionamentos humanos
A cozinha do The Original Beef é realmente como uma panela de pressão, e a cada capítulo que passa, o espectador se vê mais inserido nela. A direção o faz percorrer todos os cantos e participar de cada diálogo. Com o ritmo acelerado pela excelente trilha sonora, quem assiste passa a se sentir parte daquele mundo, como se fosse mais um elemento no meio do caos que, aos poucos, apresenta o funcionamento da cozinha e as pessoas que trabalham nela.
A rotina apresentada em The Bear traz à tona elementos do cotidiano de quem vive na cozinha profissional, como é o caso de William Pereira, chef de cozinha do Fugu Izakaya, que conhece o enredo e destaca as semelhanças com a vida real:
De tudo que tem hoje no mundo audiovisual, essa série é a que melhor retrata como que é o ambiente de cozinha. É bem daquele jeito que você viu, bem caótico, muita gritaria, confusão, horas e horas ali executando alguma coisa para ‘soltar’ o serviço
Willian Pereira – chef de cozinha do Fugu Izakaya
Durante as cenas em que a série te permite respirar e fugir um pouco do caos sufocante da cozinha, somos apresentados à personagens extremamente cativantes. Totalmente autênticos e com personalidades muito distintas, cada um deles, à sua maneira, precisa de poucos segundos de tela para te mostrar quem são.
Mais resistentes às mudanças, Richie (Ebon Moss-Bachrach) e Tina (Liza Colón-Zayas), velhos de guerra, estão ali desde o início, e demonstram-se apegados à tradição que aquele restaurante carrega, um dos últimos restantes na paisagem de Chicago, que vêm sendo tomada por prédios cada vez maiores e franquias de fast-food.
Por sua vez, Marcus (Lionel Boyce) e Sydney (Ayo Edebiri), são jovens ambiciosos que vêm no Carmy uma oportunidade de aprendizado, de evolução e uma fonte de inspiração. Apesar das personalidades tão distintas e dos conflitos presentes, a equipe do The Original Beef é realmente como uma família, cheia de complexidades e desafios de convivência, eles discutem, brigam, mas se importam uns com os outros. Ao longo dos episódios vemos esses conflitos se intensificarem e as relações sendo colocadas a prova.
Errar faz parte!
The Bear é assertiva em vários pontos: a direção que te faz sentir dentro da cozinha; um roteiro simples e certeiro, que revela a essência de cada personagem sem precisar de ‘muito’; um elenco incrível; e uma trilha sonora marcante. Tudo isso já seria motivo suficiente para dar uma chance à série. No entanto, o que impressiona mais em The Bear são os conflitos interpessoais construídos. A fotografia, o trabalho de câmera, as técnicas de edição, o design de som, apesar de muito bons, ficam em segundo plano diante dos personagens. Você se interessa pelos conflitos, justamente por estar investido na história e se importar com as pessoas que estão ali, entendendo de onde vêm as suas fragilidades, medos, frustrações e motivações.
Além de lidar com o luto da morte de Mikey, antigo dono do restaurante, eles precisam lidar com a pressão e a exigência de um ambiente que se tem a ideia de ‘não poder cometer erros’.
Segundo Willian Pereira, principalmente, quando falamos do mundo da alta gastronomia, problemas ligados ao alcoolismo, uso de drogas e saúde mental dos cozinheiros são muitas vezes consequências dessa pressão:
É um trabalho que mundialmente têm os maiores índices de usuários de drogas e de suicídio. As pessoas, aguentam essas cargas horárias, aguentam esse cenário muito competitivo por que muitas estão literalmente injetando droga para dentro para conseguir cumprir as cargas horárias.
Willian Pereira – chef de cozinha do Fugu Izakaya
Willian ainda fala sobre o anonimato das pessoas que trabalham na cozinha de um restaurante que, frequentemente, não tem reconhecido o valor do seu trabalho e dedicação na preparação de um prato e a grande responsabilidade e cobrança exigida deles.
É um cenário onde se cobra a perfeição de tudo, tem que ser tudo muito perfeito e, ao mesmo, tempo executado muito rápido. Quando a gente fala de cozinha, você trabalha com um senso de urgência, você não pode ter margens para erros, você não pode ter margens para prazos. É tudo muito cronometrado, cada segundo dentro da cozinha é um segundo muito importante, e quando a gente fala de cozinha de alta gastronomia, a gente ta falando sobre uma cozinha que tem que buscar a perfeição a todo momento.
Willian Pereira – chef de cozinha do Fugu Izakaya
Esses cenários de alta performance, de grande competitividade e de exigência pela perfeição podem, muitas vezes, gerar um efeito contrário e desencorajar pessoas talentosas de seguir o seu sonho e continuar na profissão que amam. Tão presentes e falados na sociedade atual, sintomas de ansiedade e até mesmo depressão podem ser relacionados ao estresse e ao abuso psicológico no ambiente de trabalho. Pensando no modo como vivemos hoje, quem nunca sentiu pressão pela necessidade de atingir o sucesso profissional e independência financeira logo jovem? Quem nunca sentiu medo de arriscar algo por medo errar ou de não ser aceito?
Daniel Chiarini, estudante de gastronomia, compartilhou sua visão em relação a cozinha e a competitividade que existe nesse ambiente.
Cozinhar para as pessoas que você gosta com aquela calma de domingo é algo maravilhoso, escutando uma música, tomando uma cerveja, enfim, aquilo ali é a maior beleza da cozinha. Essa questão, desse ritmo, dessa pressão e como eu me relaciono com isso e se eu acho essa competitividade tóxica, eu acho.
Daniel Chiarini – estudante de gastronomia
Let it rip
Voltando à série, no episódio seis, ficamos conhecendo Michael Berzatto (Mikey), irmão mais velho de Carmy, que aparece em um flashback contando uma história enquanto cozinha para a família. Interpretado por Jon Bernthal, logo percebemos a forte presença que ele tinha na vida de todos ali, principalmente na vida de Carmy, com quem nos últimos anos teve uma relação complicada.
Tendo sido afastado pelo irmão mais velho da administração do negócio da família, Carmy utilizou essa exclusão como combustível para se tornar um dos melhores chefs do mundo. Ele decidiu como forma de autoafirmação – e até mesmo vingança -, mostrar que era melhor que os outros e melhor que aquele restaurante. Mas a que preço? Mergulhado na rotina de estudos, dedicação e competitividade dos melhores restaurantes de alta gastronomia do mundo, Carmy foi se afastando cada vez mais do seu irmão.
No seu retorno a Chicago, após a morte de Mikey, as tentativas de Carmy de salvar o restaurante, eram na realidade, a maneira que ele encontrou de lidar com o luto e recuperar a sua conexão. Ele tentava manter viva a memória do irmão que, na infância, sempre dizia a ele “Let it rip” ou “deixa rolar”. Uma forma de dizer para ele encarar adversidades de frente, sem medo das consequências, sem medo de errar.
Você pode errar, você vai errar e você tem que estar tranquilo sabendo que vai errar. Você não tem que ter uma cobrança enorme nas suas costas por não poder errar, e a vida segue. Você vai errar hoje, você vai errar amanhã, mas você vai aprender e vai corrigindo os erros, se não, não tem aprendizado, se não, você não dorme. Depois que eu comecei a pegar cozinhas que não são de alta gastronomia, cozinhas mais simples, preparos mais simples, eu comecei a entender que você aprende a fazer o bem feito quando você aprende o que deu errado”.
Willian Pereira – chef de cozinha do Fugu Izakaya
Com dez episódios, a segunda temporada de The Bear estreia nesta quinta-feira, 22 de junho.
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