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O que não te contaram sobre dissociação

Você já ouviu falar de dissociação? O termo, na psicologia, consiste na desconexão temporária de ações psíquicas ou motoras que são de controle voluntário do conjunto comportamental de cada um. É um fenômeno da psicopatologia, a ciência que estuda reações psíquicas “anormais”, em gestos, comportamentos ou expressões.

Com a chegada da pandemia e, consequentemente do isolamento social, a sensação de se desconectar da realidade se tornou cada vez mais frequente, podendo até prejudicar a saúde mental a longo prazo.

A popularização do debate sobre terapia e transtornos mentais abriu portas para que termos antes não tão conhecidos, que explicam os sentimentos humanos, apareçam com mais frequência nas conversas do dia a dia. A sensação que fica é que, para cada reação, especialmente no decorrer da quarentena, existe um termo complicado e apavorante que apenas piora a situação.

A dissociação, por exemplo, pode entrar nessa esfera, já que o sentimento de desconexão com o ambiente e com outras pessoas se tornou comum no confinamento. A impressão de estar vivendo sempre o mesmo dia é um dos principais gatilhos para que isso aconteça.

O que diz a ciência 

“Eu senti que o dia passou voando e nem me lembro direito de ter vivido nada. Não me lembro de ter tomado banho, não me lembro de ter almoçado, nem de ter pegado o carro pra ir ao supermercado. Foi tudo muito estranho e rápido. Só percebi que eu não tinha “vivido” aquele dia, no dia seguinte”, relata Bárbara*, universitária que declara ter passado por dissociações diárias frequentes desde o início da pandemia.

De acordo com a American Psychiatric Association (APA) organização profissional de psiquiatras e estudantes de psiquiatria nos Estados Unidos com grande influência mundial, o fenômeno de dissociação, em casos leves, é comumente associado a impressão de “sonhar acordado”, hipnose na estrada ou “se perder” em um livro ou filme, todos os quais envolvem “perder o contato” com a consciência do ambiente imediato.

Por outro lado, em casos mais graves que envolvem estresse pós-traumático, após o indivíduo ter sofrido abuso ou um acidente, a dissociação pode surgir mais intensamente. Em situações como essas, uma pessoa pode dissociar a memória do lugar, as circunstâncias ou sentimentos sobre o acontecimento violento, escapando mentalmente do medo e da dor.

Dissociar no isolamento 

De acordo com o psicanalista clínico Lucas Alves, a chegada da pandemia invocou um questionamento do indivíduo com o espaço em que ele vive, podendo ser relacionada a dissociação no momento em que não reconhecemos mais essa realidade como sendo algo “normal”.

“A questão da pandemia é justamente de que essa relação do sujeito com o mundo foi colocada em questão, porque foi uma relação interrompida. Então, o mundo de certa forma mostrou que é estranho e isso é ameaçador. Acho que talvez seja essa relação do sujeito com o mundo que coloca um certo ponto de estranhamento, do que que está acontecendo e do que vai vir a ser.”

Não está tudo perdido 

A incerteza com o futuro e o medo da contaminação pelo coronavírus funcionam como uma alavanca para que as pessoas , algumas mais que outras, desbloqueiem circuitos mentais e desencadeiem hábitos repetitivos. Mas, apesar de parecer assustador, nem sempre a dissociação é ligada a uma condição patológica. O estado de dissociação só é atestado como doença se causar algum sofrimento ou disfuncionalidade. Caso contrário, ele pode ser apenas uma alteração qualitativa da consciência, provocando a perda de parte da compreensão de espaço e tempo.

De acordo com a psicóloga especializada em terapia cognitiva comportamental Giovana Savassi, é possível diminuir os efeitos causados pela dissociação leve se voltarmos a ter um mínimo de senso de normalidade.

“Se você estabelecer horários como se fosse uma rotina, não necessariamente uma rotina rígida, mas de tentar organizar o dia e as atividades: saber que em determinada hora você vai fazer exercícios ou trabalhar ou ler um livro ou qualquer coisa do tipo, que tire seu dia do automático. A gente já perdeu a noção até de quando é sábado e domingo, por exemplo, então, é bom tomar cuidado e perceber se estamos vivendo os dias no automático, sem perceber o que estamos fazendo.”

A dissociação como fuga da realidade

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Durante o isolamento social e a redução significativa de contato com outras pessoas, a dissociação pode até se tornar uma válvula de escape para o indivíduo. Se imaginar em outro ambiente enquanto realiza uma tarefa ou assiste a um filme são apenas alguns exemplos de como isso pode acontecer.

No entanto, é importante diferenciar a dissociação diagnosticada, que prejudica o paciente durante seu trabalho ou relações pessoais, da dissociação “zone out” (desligado), que é atingida voluntariamente por alguém que vive situações estressantes, como no caso do isolamento.

“O isolamento social é muito pesado, a gente fica às vezes um bom tempo sem ver ninguém, sem sair de casa, só naquele espaço fechado. Acho que a dissociação pode ser um jeito de “sair de casa” sem sair fisicamente. Eu já passei por vários episódios, mas não acho que me prejudicou muito”, afirma a estudante universitária Roberta*.

De acordo com a revista americana Psychology Today, organização de mídia com foco em psicologia e comportamento humano, em uma matéria divulgada em fevereiro deste ano, o uso da dissociação como mecanismo de defesa é comumente utilizado.

“A dissociação também pode ser descrita como um mecanismo de defesa. São formas de estratégias de regulação emocional para evitar (tentar esquecer) e minimizar emoções que são muito difíceis de tolerar. O comportamento defensivo desempenha um papel útil e necessário na vida cotidiana. As pessoas usam esses mecanismos mentais para lidar com a decepção, ansiedade, raiva e outras emoções estressantes.” (Shahram Heshmat, 2021).

A importância da saúde mental

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A pandemia vem se provando cada vez mais desafiadora para a conservação da saúde mental. Com o bombardeio de notícias negativas e sem qualquer previsão que coloque um fim nessa realidade, não é incomum o desejo de querer se dispersar.

No entanto, com a falta de convivência com outras pessoas, o risco de se perder por não encontrar um limite entre o que é real e o que é apenas imaginação pode ocasionar uma recaída mental que é prejudicial a longo prazo.

É importante que se tenha consciência dos próprios limites e que, para qualquer sentimento ou transtorno mental prejudicial à saúde, um especialista seja consultado. Procure ajuda e não permita que sensações como essas sejam o motivo para uma coexistência pessoal nociva.  

*Os nomes das fontes foram alterados para resguardar sua identidade. 

Precisa conversar com alguém? Ligue para o número (31) 3319-4322 e procure ajuda na clínica de psicologia da PUC Minas.

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