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Positividade tóxica e os efeitos na saúde mental

De acordo com um levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, a depressão é uma das principais causas de déficit em todo mundo, com mais de 264 milhões de pessoas de todas as idades diagnosticadas com a doença. Será que esses números poderiam diminuir se somente passássemos a ver as coisas pelo lado positivo?

Quantas vezes você esteve passando por alguma dificuldade ou tentando superar algum desafio em que as coisas não pareciam fluir, e quando finalmente você reuniu coragem para pedir ajuda a um amigo ou familiar, ouviu as seguintes palavras: “Veja as coisas pelo lado bom. Seja positivo.”

Somos sobrecarregados diariamente com mensagens sobre positividade; seja nas redes sociais, em filmes sobre superação, livros de auto-ajuda, músicas e, principalmente, em longos monólogos com conhecidos, que pensam que, para resolver seus problemas basta pensar positivo. Mas, na verdade, esse excesso de positividade pode prejudicar mais do que ajudar. 

Quando a positividade se torna tóxica?

Em entrevista concedida ao Colab, Mahmoud Khedr, fundador da organização Flora Mind, que tem como objetivo capacitar mentes de jovens por meio da educação em saúde mental, a positividade se torna tóxica quando ignoramos por completo todos os outros lados de um problema.

“Ser positivo é  bom e realmente não devemos focar muito no negativo em nossas vidas, mas quando levamos isso ao extremo, vira um problema. Ao evitarmos completamente todas as coisas negativas, sem querer lidar com os problemas por completo, os sentimentos se acumulam. Quando algo negativo acontece em nossas vidas, é preciso trabalhar e enfrentar isso, em vez de apenas colocar de lado e tentar ser feliz.”

Khedr afirma que esse tipo de pensamento não prejudica apenas quem sofre, mas aqueles com quem convivemos. Ele alerta que atingir o extremo da positividade impossibilita qualquer chance de debater o assunto, alimentando o sentimento de negação. Além disso, nossas emoções passam a ser divididas entre boas e ruins, e essas últimas são menosprezadas e invalidadas. A positividade tóxica estabelece uma necessidade de se sentir feliz constantemente, todos os dias, o que seria impossível para qualquer ser humano.

Sanidade nas redes sociais 

Com a chegada da pandemia, o contato físico com grande parte das pessoas passou a ser limitado, o que nos levou a recorrer cada vez mais à vida online, como sites, redes sociais e aplicativos. Segundo dados fornecidos pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 2020, o uso de internet pelos brasileiros aumentou entre 40% a 50%, em relação a 2019.

Nossa janela para o mundo passou do real ao virtual e começamos a acompanhar ainda mais  influencers digitais, que propagam um estilo de vida positivo e sem problemas em seus perfis. Como só assistimos a uma pequena parte de seus dias, somos compelidos a acreditar que aquela realidade “alto astral” é possível de ser atingida cotidianamente quando, na prática, nosso organismo simplesmente não é capaz de sentir apenas boas emoções.

Dá para fazer um uso saudável das mídias sociais?

De acordo com a publicitária e pós-graduada em Psicologia Positiva Auto-Realização e Ciência do Bem-Estar, Fernanda Vilarrodona, as redes sociais são, sim, uma fonte de propagação de conteúdos construtivos, mas quando esse consumo por parte do usuário não é ponderado, as consequências se acumulam.

“As redes sociais podem ser uma forma de conexão e de reproduzir coisas boas, mas trazem a questão da positividade tóxica quando a gente começa a se espelhar em perfis de pessoas que querem transparecer uma vida perfeita, e não existem vidas perfeitas. Isso começa quando nos comparamos com esses perfis, que estão sempre postando viagens incríveis, uma família incrível e até um casamento incrível, parecendo que nada nunca está errado. O problema começa quando começamos a querer nos tornar aquela pessoa, ter a vida do outro.”

Segundo uma matéria divulgada em outubro de 2020 pelo jornal El País, o uso das redes sociais na pandemia se tornou um vício. Isso se deu ao estímulo positivo que sujeitamos nosso cérebro ao compartilhar algo e receber um “gostei” ou qualquer outro elogio, fantasiando uma realidade good vibes.

Adquirimos um senso de pertencimento que antes era preenchido por nossos relacionamentos físicos, em rodas de amigos e família, e agora só conseguimos alcançar pelas telas do celular.

Hormônios que viciam 

Com o sentimento de solidão se proliferando, a sensação de estarmos conectados pelo virtual e sendo recompensados por isso promove ainda mais o desejo de se afastar da realidade nebulosa em que vivemos, para se aproximar do ambiente “positivo” das redes sociais.

Ao focar nossa atenção nesses influenciadores e na sensação de prazer que seus conteúdos transmitem, um padrão impossível de felicidade é estabelecido. Somos coagidos a experimentar essa sensação em primeira pessoa, postando algo em nossos próprios perfis, logo recebendo (ou não) um feedback positivo e, consequentemente, liberando hormônios de serotonina, endorfina e dopamina. Assim, nosso organismo entende que as mídias sociais podem ser fonte de “hormônio do bem-estar”, associado à nossa felicidade. 

De acordo com um estudo divulgado pela revista Época Negócios em novembro de 2019, ficamos cada vez mais presos em atividades improdutivas, que esgotam nosso tempo hábil. Nosso cérebro, inconscientemente, percebe um padrão ao receber doses cada vez maiores desses hormônios, que induzem à “felicidade” e se apegam a eles. Apenas o ato de receber uma notificação positiva no celular é o suficiente para provocar o organismo a ir atrás desse sentimento de prazer mais vezes no dia.

E quando a realidade bate?

No momento em que nos desconectamos, percebemos logo um desencanto com o mundo à nossa volta, mas que rapidamente ocultamos e tentamos, com todas as forças, substituir com pensamentos positivos. 

Ainda de acordo com Mahmoud Khedr, as redes sociais se tornaram uma porta de escape diante da solidão provocada pela pandemia, o que só piora o sentimento de necessidade de afastar os sentimentos ruins, em troca dos bons momentos que os produtores de conteúdo e nós mesmo, compartilhamos.

“As redes sociais são projetadas de uma forma aditiva, que ao nos atrair de volta, pode se tornar tóxica. Elas promovem a positividade tóxica, pois mostra somente as melhores partes de nossas vidas. Naturalmente, não queremos falar sobre o que é negativo, não queremos falar sobre o que está nos entristecendo, queremos colocar o que há de bom em nossas vidas e assim, todo mundo começa a acreditar que tudo está indo bem e isso só faz você se sentir pior sobre si mesmo e te faz pensar que talvez haja algo errado com você, ou sua vida.”

Positividade Tóxica vs Otimismo Genuíno 

A associação de felicidade com positividade é um dos fatores que nos impede de viver plenamente. Claro que pensamentos infelizes quase nunca são bem-vindos e conseguir viver cada dia apenas olhando o lado bom das coisas deveria ser quase uma idealização pessoal. No entanto, de acordo com a psicanalista e professora do Curso de Psicologia da Newton Paiva, Margaret Pires Couto, esse tipo de estratégia não é a ideal para conseguir atingir a felicidade.

“Em excesso, a positividade pode nos trazer uma série de transtornos. O primeiro é, por exemplo, o rebaixamento da capacidade de julgamento da realidade. Passamos a acreditar em algo quase delirante que, por força de nosso pensamento positivo, podemos alterar a realidade.”

A imposição de pensamentos sempre positivos em nós mesmos e em outras pessoas é, muitas vezes, confundida com uma virtude, porque se passa a impressão de ser um otimismo genuíno, sentimento que realmente pode fazer a diferença para nossa saúde mental, só que de forma segura. 

Nossas emoções não são lineares e são afetadas diariamente, dependendo do nosso humor ou dos problemas que tivemos naquele dia. Desenvolver empatia com os próprios sentimentos e validá-los é o caminho para o otimismo genuíno. 

Ainda de acordo com a professora Margaret, a felicidade é algo que podemos cobiçar, mas nunca constantemente, pois é com essa mentalidade que passamos a viver uma realidade diferente, que afetará a saúde mental.

“O problema não é buscar a felicidade, essa sempre será provisória e construída.  O problema está em querer alcançar esse suposto estado o “tempo todo”. A busca por esse estado ideal, paradoxalmente, pode nos conduzir ao pior, nos conduzir a situações de risco. Podemos nos perguntar: a qual custo o sujeito busca ser feliz?”, conclui.

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