O projeto de lei número 142/17 já tramitava na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte há quatro anos quando foi votado e aprovado, em segundo turno, no dia 15 de dezembro de 2020, com grande impacto para quem trabalha com tração animal.
Os vereadores da capital mineira aprovaram o texto que previa, em um prazo de 10 anos, a substituição dos cavalos por veículos de tração motora, voltados ao transporte de cargas na cidade. Já no dia 23 de janeiro de 2021, o então projeto de lei foi sancionado pelo prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD).
A medida trouxe impacto direto na vida de, pelo menos, 10 mil famílias de carroceiros e carroceiras que sustentam seus familiares a partir do trabalho nas carroças. As discussões, a consequente votação na Câmara e a posterior sanção do prefeito geraram manifestações desses profissionais autônomos e, de outro lado, de grupos defensores dos direitos animais.
Carta aberta em defesa da tração animal
Além de manifestação que tomou as ruas do centro da cidade em janeiro, a Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos de Belo Horizonte e Região Metropolitana publicou uma carta aberta, assinada por outras 22 entidades da sociedade civil, que solicitava à Câmara de Vereadores vetasse o projeto.
Carroceiros em manifestação em Belo Horizonte. Reprodução: Caritas MG
Um dos coautores da carta, Frei Gilvander Moreira, assessor da Comissão Pastoral da Terra e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos, afirma que a aprovação prejudica os carroceiros e não protege, na prática, os animais.
Se há algo que o projeto de lei 142 covardemente aprovado não faz é garantir o respeito aos direitos dos cavalos e éguas, e ainda viola, de forma cruel, os direitos humanos básicos. Viola o direito à livre expressão da diversidade cultural e viola o direito ao trabalho, já que o trabalho com os cavalos e éguas é a única fonte de renda para 10 mil famílias em Belo Horizonte”.
Frei Gilvander Moreira
No manifesto, os carroceiros, que têm como lema “A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”, se posicionam de forma contrária à aprovação do projeto, alegando, dentre outros pontos, que os animais fazem parte das famílias desses trabalhadores, por isso são bem tratados.
Além disso, os carroceiros também reivindicam por meio do documento, a “elaboração participativa e implementação de programas sociais voltados à comunidade carroceira, abrangendo projetos de alfabetização e promoção do associativismo; estabelecimento de um espaço permanente de diálogo entre o poder público e as organizações de carroceiros/as, tendo em vista a garantia e a defesa dos direitos humanos e animais”.
Quem apoia a aprovação da lei?
Organizações civis voltadas aos direitos dos animais defendem e consideram a aprovação do projeto e a sanção do prefeito como uma vitória na luta pelos direitos dos cavalos em Belo Horizonte. Dentre essas organizações, o Movimento Mineiro pelos Direitos Animais (MMDA) alega que esses animais vivem em condições precárias e de exploração, e que, por esse motivo, a sanção da lei significa um passo importante para a garantia dos direitos dos cavalos.
A exploração em carroças e a falta de condição financeira para manter o bem-estar de um animal de grande porte, considerando as elevadas quantias envolvidas, é um dos principais problemas. Por mais grave que seja o momento, não podemos fechar nossos olhos e nos calar diante desta realidade frequente, de cavalos agonizando nas nove regionais de Belo Horizonte, vítimas da exploração nas carroças e seu posterior abandono quando não aguentam mais o trabalho escravo.
Movimento Mineiro pelos Direitos Animais
Processo
De acordo com a Associação dos Carroceiros de Belo Horizonte, a comunidade já participava de conversas com a Prefeitura da capital, desde 2017, para regulamentar o trabalho e implementar medidas de cuidado com os animais. Inclusive, o projeto de lei é do ano de 2017 e tramitava na Câmara de Vereadores da capital mineira, desde então.
Ao longo desse processo, o projeto passou por diversas alterações, dentre elas a retirada do trecho que garantia à Prefeitura de Belo Horizonte a obrigação de subsidiar a aquisição de motocicletas e demais custos necessários à implementação das mudanças pelos trabalhadores. Com a retirada do trecho, todos os custos ficam a cargo dos próprios carroceiros e carroceiras.
Outra questão apontada por Frei Gilvander Moreira, no site em que divulga conteúdo voltado para diversas causas sociais, é que a lei foi aprovada sem que houvesse um estudo ou pesquisa que mapeasse o modo e a qualidade de vida desses trabalhadores. Ainda segundo Frei Gilvander, o número de 10 mil famílias de carroceiros é uma estimativa, visto que não há nenhum censo demográfico sobre essa comunidade tradicional.
Os órgãos públicos não são capazes de apresentar o número oficial de trabalhadores e trabalhadoras, o número de animais envolvidos e nem o número de animais apreendidos pelo poder público, vítimas de maus-tratos advindos do trabalho carroceiro.
Frei Gilvander Moreira.
Tração animal: o que muda na prática?
A dificuldade aqui é que, agora que o projeto passou, têm muitos clientes me ligando perguntando se acabou, se eu estou rodando clandestino. Eu digo: não, temos 10 anos para fazer a troca ainda.
Cláudio de Jesus Araujo, carroceiro
Cláudio de Jesus Araujo, 50, que é carroceiro há mais de 20 anos, conta como a aprovação do projeto já trouxe impactos em seu trabalho, mesmo com o prazo de 10 anos para ajustes. Sobre a aprovação da lei, ele afirma ainda não acreditar na possibilidade de ter de transformar tanto sua dinâmica de trabalho.
“Para mim, a ficha ainda não caiu, eu não me vejo não mexendo com a minha carroça. Se eu ganhar um prêmio na Mega Sena, eu não vendo minha carroça, nem minha charrete. Eu posso ter o carro do ano na garagem, que da minha carroça eu não me desfaço”.
Cláudio de Jesus Araujo, carroceiro
Além disso, o experiente carroceiro ainda cita que os maus-tratos, relatados por organizações de defesa dos direitos animais, são exceções, e que ações que combatam atitudes que promovam sofrimento aos animais são alternativas. “Eles [poder público] deviam chegar nos carroceiros, que maltratam, e conversar com eles, ter um diálogo, para cuidar do seu animal, e não chegar e tirar, pois até para os animais é ruim”.
Ainda sobre os animais, Cláudio conta um pouco de como cuida de seus cavalos diariamente. “Meus cavalos são bem tratados, acabei de tratar deles ali agora, todo dia é capim moído, é ração, outra hora é o feno, então meus cavalos são bem tratados”. Os cuidados com os cavalos são naturais de alguém que possui enorme apreço por sua profissão. “Eu tenho prazer, eu gosto, é prazeroso trabalhar com a minha carroça, entendeu?”.
Reconhecimento
No dia 25 de fevereiro de 2021, a Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais (CPCT-MG) aprovou a emissão da certidão de autodefinição da Comunidade Carroceira de BH como comunidade tradicional. A emissão do documento fornece aos carroceiros um mecanismo que fortalece a busca pelos direitos dessa comunidade, visto que, a certidão garante, por exemplo, a possibilidade, mediante solicitação, de instauração de processo administrativo de regularização fundiária e titulação coletiva, junto à Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa).
Além disso, o reconhecimento como comunidade tradicional vai ao encontro da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Essa convenção garante, aos povos tradicionais, o direito à consulta prévia, livre e esclarecida em relação a qualquer medida, de governos ou iniciativa privada, que afetem o modo de vida desses povos. Esse ponto, é ressaltado por Frei Gilvander Moreira, que afirma que somente com o diálogo um projeto de lei seria viável.
“O poder público, Executivo, Legislativo, Judiciário, precisa ouvir os carroceiros e carroceiras, para que um projeto de lei realmente justo, e que respeite os direitos dos carroceiros e carroceiras seja elaborado e aprovado”.
Frei Gilvander Moreira
A ausência desse diálogo na aprovação da lei 11.285 foi um ponto que incomodou bastante Cláudio Araújo, que entende que reuniões entre carroceiros e o poder público seriam fundamentais, devido ao tamanho da população carroceira. “Nem conversar com a gente, nunca conversaram, nada. Eu acho que deveria ter pegado ao menos 10% dos carroceiros, pela quantidade que tem, e ter feito umas palestras explicando como é que é”, ressalta o carroceiro.
Reportagem produzida por Arthur de Viveiros, Luis Henrique Ferreira e Rafael Coutinho, do 8° período de Jornalismo do campus Coração Eucarístico, para a disciplina Produção em Jornalismo Digital.