De acordo com a roteirista e produtora audiovisual Mônica Cerqueira, a indústria do entretenimento fomenta a chamada apropriação cultural, mas diferente dela, que é prejudicial à representação dos povos, que não buscam ser representados somente para entreter aos outros, banalizando seus costumes e suas lutas, vale lembrar que a sociedade como um todo é plural, e esse intercâmbio cultural, se feito respeitosamente, é necessário.
“É muito importante ressaltar que existe a apropriação e existe intercâmbio de culturas, que são conceitos muito diferentes. Temos que pensar que a cultura é algo dinâmico e cada vez é mais difícil ter uma cultura totalmente genuína e isolada. Então, falar de apropriação cultural num contexto de globalização é realmente complexo e não se pode confundir apropriação, interação e o intercâmbio entre as culturas.”
Onde se percebe a apropriação cultural na indústria do entretenimento?
A linha tênue entre apropriação cultural e apreciação cultural muitas vezes é esquecida por aqueles que integram o mundo das artes. Exatamente por ser tênue, a linha passa despercebida e as situações tidas como de apropriação cultural se tornam tão sutis e passam a ser tão comuns, que muitos param de perceber que de fato foi isso que aconteceu.
Ainda de acordo com Mônica Cerqueira, é importante saber diferenciar os dois conceitos, para que o espectador aprenda a apreciar as obras que respeitem a cultura em questão.
“Apropriação é uma coisa negativa, que faz uso de uma cultura sem compreendê-la e, muitas vezes, até desrespeitando seus significados simbólicos e históricos, o que não acontece com a apreciação cultural. A apropriação se confunde com a apreciação, mas no caso da apreciação existe uma reciprocidade, há uma troca de experiências e um compartilhamento, e isso faz parte da nossa cultura e, no nosso contexto mundial, é inevitável. O que não pode acontecer é esse desrespeito que se dá na apropriação, quando ele visa simplesmente lucro e uma ideia fácil.”
Um exemplo disso é a música ‘Hakuna Matata’ da animação aclamada da Disney, “O Rei Leão” (1994). O termo, que em suaíli significa “sem problemas”, foi registrada como pertencente à produtora estadunidense, sendo que não foram eles que a criaram. Em 2018, o ativista Shelton Mpala, natural do Zimbábue, registrou sua indignação ao acusar a Disney de apropriação cultural de um termo africano usado em um filme que promove ideais norte-americanos e que, posteriormente, teve seus direitos autorais retirados da cultura africana.
De acordo com André Junqueira Caetano, Doutor em Sociologia e professor da PUC Mina , os brancos, por terem forçado sua dominação sobre outras etnias, passaram a acreditar que estivessem no direito de se apropriar de qualquer que fosse o elemento cultural, ao longo dos séculos.
“Isso é uma apropriação cultural em escala nacional e na formação da identidade do povo. Isso [elemento cultural] deixa de ser dos negros e descendentes de outras culturas e passa a ser incorporado pela classe dominante e se transforma em algo com origem ‘desconhecida’. Tiramos o direito de ser uma manifestação dos negros, por exemplo. Isso é uma forma de apagamento de outras culturas, uma total inviabilização. Então é um processo que, na verdade, se revela como uma das formas de racismo estrutural.”
Outro exemplo que chamou atenção do público, dessa vez em 2021, foi a acusação de apropriação cultural ao cantor havaiano Bruno Mars, que tem raízes porto-riquenhas, filipinas e nas comunidades de judeus asquenazes (judeus originários da Europa Central e Europa Oriental). A comunidade negra apontou o uso de termos, gírias e elementos de sua cultura nas músicas do cantor, que afirmou, em entrevista ao programa The Breakfast Club, que cresceu escutando artistas como Michael Jackson, Prince e James Brown, e que espelha sua arte no que eles criaram em suas respectivas carreiras.
Porque a apropriação cultural é um problema?
Você conhece as palavras em inglês whitewashing e blackface? O termo whitewashing (lavagem branca, em tradução livre) se popularizou durante a temporada de premiações no cinema em 2016, mais especificamente, no Oscar do mesmo ano, quando foi denunciada a falta de atores e atrizes negras ou de qualquer etnia não branca, entre os indicados.
Por outro lado, o termo blackface (rosto negro, em tradução livre) se popularizou há mais de 200, em Nova York, comouma prática em que brancos ridicularizavam os negros ao pintarem seus rostos com tinta preta para encenar esteriótipos negativos, por puro entretenimento.
Essa prática foi muito usada em filmes e outras produções cinematográficas, principalmente nos séculos XVIII e XIX. Um dos exemplos mais marcantes foi a personificação do ator britânico Laurence Olivier, branco de olhos azuis, que fez uso do blackface, em 1965, ao interpretar Otelo nos cinemas, personagem negro da famosa peça de teatro escrita por William Shakespeare.
O problema da indústria de entretenimento optar por práticas como o blackface e incentivar o whitewashing é similar ao uso inadequado de elementos de outras culturas, como o uso de turbantes por pessoas brancas, cabelos com dreadlocks, ou vestir com cocares no carnaval, é que, se usadas fora de seu contexto original, tais práticas se tornam desrespeitosas e pejorativas, revelando-se como uma demonstração caricata e preconceituosa.
Apropriação cultural x Apreciação cultural
Quando bem fundamentada, bem creditada e feita de forma respeitosa, a apropriação cultural pode se transformar em uma forma de apreciação. Uma das maiores produtoras de conteúdo da indústria de entretenimento, a Disney, teve em suas mãos dois projetos que servem como exemplos de casos em que existiram a apropriação e a apreciação, nos anos de 1998 e 2021.
Criada por um estadunidense branco, a Disney é considerada um exemplo da dominância da cultura ocidental norte-americana e europeia no cenário de produções audiovisuais. Com filmes como: “Branca de Neve” (1937), “Cinderela” (1950), “A Bela e a Fera” (1991), entre outros, a diversidade em tela nunca foi uma prioridade, até o momento em que o público passou a exigir que as novas produções fossem mais plurais.
Essa insatisfação do público, somada à crescente onda de representatividade de outras culturas na indústria, foi fundamental para que filmes como “A Princesa e o Sapo” (2009), trazendo Tiana, a primeira princesa negra e “Moana” (2016), a primeira princesa de origem polinésia, chegassem às telas.
Mesmo com essa mudança de abordagem institucional, a Disney foi alvo de acusações após o lançamento da animação clássica “Mulan” em 1998. Com a intenção de trazer mais diversidade para seus personagens, o filme, produzido e dirigido pelos estadunidenses Tony Bancroft e Barry Cook, gerou enorme polêmica. A população chinesa, local onde a animação se passa, se revoltou após elementos sagrados de sua cultura como o dragão e o grilo da sorte, terem sido usados como personagens cômicos, desmerecendo suas tradições milenares. Como forma de reparar o erro, a produção do live action de “Mulan” lançada em 2020, foi feita por uma equipe predominantemente asiática, passando maior credibilidade ao produto final.
Recentemente, ainda em 2021, a Disney lançou a animação “Raya e o Último Dragão”, que se inspirou na cultura do sudeste da Ásia para criar o mundo fictício de Kumandra. Assim como foi o caso do live action de “Mulan”, a nova animação passou por uma intensa etapa de produção, para que o resultado fosse respeitoso e coerente com a cultura local. Mesmo sendo uma produção da Disney, comumente associada a padrões estéticos e culturais ocidentais, essa participação de artistas locais na etapa de concepção até a pós-produção do filme, não é somente necessária, mas a atitude certa a se tomar em todos os casos onde outras culturas serão representadas.