Motivo de preocupação dos participantes do Big Brother Brasil 21, a cultura do cancelamento é um fenômeno recente, cada vez mais frequente, que ocorre na ambiência de mídias sociais como Instagram, Twitter e Youtube. Ela surgiu com a premissa de permitir que usuários dessas plataformas questionem, debatam, reflitam e repudiem atitudes e pensamentos opressores propagados nesses espaços. Mas, na maioria dos casos, o que acontece é o inverso de um debate civilizado que visa promover reflexão sobre determinado tema.
O cancelamento pode desencadear efeitos negativos na vida do cancelado e extrapolar os limites digitais, estendendo-se para a vida fora da internet. Exclusão social, ofensas, xingamentos, ameaças de agressão e morte, rescisões de contrato, perdas de seguidores e, consequentemente, de dinheiro, além de danos à saúde mental, são algumas das consequências que afetam a vida de quem é cancelado. Em casos mais severos também existe a possibilidade do fim da carreira.
Assim como o cancelamento ganhou proporções estratosféricas nos últimos anos, a preocupação por parte de quem tem vida pública também cresceu na mesma medida. Prova disso é o BBB 21 (Big Brother Brasil) que refletiu tal receio dos participantes logo nos primeiros dias de programa, quando todos se mostraram preocupados de que suas falas, atitudes e posicionamentos dentro da casa justificassem o cancelamento deles.
Celebridades e influencers famosos, como Karol Conká, Fiuk e Viih Tube, foram alguns dos competidores que relataram certa preocupação com o cancelamento, na primeira roda de conversa entre os participantes do reality show. A influencer Camilla de Lucas até chegou a declarar que essa edição serviria para “cancelar o cancelamento”.
Da cultura pop e de pequenos movimentos políticos para a internet toda
Devido à efervescente dinâmica das mídias sociais, em que tudo muda rápido sem que seja possível marcar os limites de onde termina um tipo de comportamento e começa outro, é quase impossível afirmar com certeza o momento exato em que a cultura do cancelamento surgiu e em qual plataforma ela se estabeleceu primeiro.
Mas, de acordo com Maiara Orlandini, jornalista e doutoranda que pesquisa o fenômeno, ele tem raiz na cultura pop. “Mesmo que o cancelamento atinja outros públicos atualmente, a origem dele é diretamente ligada à cultura pop. O cancelamento da Anitta, que envolveu a questão do Pink Money, é um grande destaque. Foi um dos que tomou maior proporção, popularizando a prática”, explica a pesquisadora. Em 2018, a artista foi acusada pela comunidade LGBTQIA+ de apenas querer lucrar sobre as pautas do grupo ao não se posicionar publicamente contra o então candidato à Presidência do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), que sempre fez comentários ofensivos à comunidade.
Maiara também esclarece que, apesar dessa situação soar como um “simples” hate (ódio, em português), o cancelamento sempre acontece como forma de visibilizar uma pauta silenciada, por mais que o debate desse assunto possa ficar em segundo plano em determinado momento.
Conforme a pesquisadora, o comportamento dos internautas também é um dos fatores de maior relevância para o surgimento dessa cultura. A partir dos anos 2000, com a popularização da internet em escala global e o surgimento das mídias sociais, as ações desse público são moldadas ininterruptamente à medida que ferramentas interativas são introduzidas nas redes sociais.
Tais ferramentas compõem uma relação simbiótica, na qual cada uma foi projetada para promover um tipo específico de atitude, mas também pode ter sua função original subvertida pelos internautas, e passar a ser utilizada com outros propósitos. “A ferramenta de criação e divulgação de evento do Facebook, por exemplo, não foi feita para marcar eventos de reivindicação político social, mas ela foi adaptada para servir como um mecanismo de protesto e reivindicação”, explica a comunicóloga.
Esse uso disruptivo somado a movimentos anteriores, que aconteceram em micro esferas dentro das mídias, culminaram no que hoje é denominado cancelamento. Dentre esses acontecimentos antecedentes à cultura do cancelamento, Maiara cita que o “vomitaço” (Protesto virtual que realizado por internautas insatisfeitos com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), na página de Facebook do partido político PMDB, em maio de 2016, junto ao “fã ativismo” e ao “anti-fã ativismo”, criou a composição que originou o comportamento.
Cancelamento nos moldes da plataforma
A pesquisadora Maiara Orlandini defende que o cancelamento não acontece da mesma forma em todas as plataformas. Os diferentes designs das mídias sociais e o perfil dos usuários de cada uma é que definem se determinado cancelamento será mais marcado por debate ou se ele será instantâneo, sem nenhuma discussão efetiva sobre o ocorrido. Nessa lógica, Maiara cita que “no Twitter existe uma troca argumentativa muito maior que no Instagram”, isso se deve às threads (série de posts conectada que favorece a abordagem de uma sequência de assuntos),que estabelecem um canal de comunicação mais direto dentro da plataforma.
Diferentemente do Twitter e Linkedin, a pesquisadora diz perceber que o Instagram é o ambiente onde a propagação do discurso de ódio e da não reflexão sobre o ocorrido é mais recorrente: “O Instagram é uma plataforma muito visual, onde imagens de pessoas são expostas para a opinião alheia. Ninguém é incivilizado no Linkedin”.
Medo e cobrança constante
A influencer belo-horizontina Luly Lage, 30, conta que, nos 17 anos em que produz conteúdo na internet, nunca foi cancelada, mas que talvez tenha mudado inconscientemente o modo como se expressa nas redes. “Eu tenho muito cuidado com o que falo. Já apaguei algum conteúdo, ou mudei alguma coisa em algum post que já estava postado, mas não por medo de ser cancelada, até porque não atingi um número muito grande de seguidores para que isso seja mais provável de acontecer comigo, mas sim pela responsabilidade que tenho quando falo algo na internet”, conta.
Luly também relata que se sente pressionada por parte de alguns seguidores para se posicionar acerca dos acontecimentos polêmicos do cotidiano, principalmente os que envolvem arte, tema abordado por ela em suas mídias sociais. “Se você não fala, você está sendo omisso e pode ser cancelado por isso. Se você fala e seu posicionamento desagrada – sem ser ofensivo e errado – você vai ser cancelado por não pensar o que os outros querem que você pense. E se você se posiciona de maneira ofensiva e errada, você também será cancelado por motivos óbvios.” reflete a blogueira.
Assim como Luly, a influencer carioca Victoria Yamagata também se sente desconfortável com a pressão de opinar sobre todo cancelamento que acontece. Em novembro do ano passado, ela fez um desabafo nos stories do Instagram sobre esse tipo de situação que a incomoda há algum tempo.
Cancelamento e saúde mental
Para Márcia Stengel, psicológa e professora da PUC Minas, o cancelamento muitas vezes extrapola os limites de um debate saudável e se torna uma espécie de “linchamento virtual”, na qual a pessoa que está sendo cancelada recebe mensagens de ódio e até ameaças de morte. Essa exposição massiva, e consequentemente o julgamento dos internautas, pode desencadear transtornos mentais na pessoa que sofre o cancelamento. “O cancelamento pode levar a pessoa a desenvolver transtorno de ansiedade, depressão, e, em casos mais severos, até mesmo ao suicídio”, explica Márcia.
Segundo a psicóloga, as telas de acesso ao mundo virtual se configuram como uma barreira física entre as pessoas, que se sentem mais corajosas, naquela situação, para publicar determinados comentários que elas não ousariam dizer em público para outra pessoa: “Em grupos, somos mais propensos a fazer coisas que não faríamos sozinhos”. Ela ainda cita que muitas pessoas participam do cancelamento por medo de serem canceladas pelo círculo social do qual fazem parte e para, de alguma forma, se encaixar em algum círculo, serem aceitas por alguma opinião que compartilham com os demais.
Lucro para plataformas e engajamento para cancelados
Luly percebe que essa cultura, em alguns casos, pode ter um efeito reverso: ao invés de “apagar” a pessoa alvo do cancelamento, ela pode dar visibilidade a essa pessoa dentro das redes. Isso porque compartilhar perfis e postagens sobre o cancelado pode torná-lo maior dentro da plataforma, pois o algoritmo (ainda) não tem capacidade de identificar o teor do conteúdo compartilhado. “O algoritmo não sabe se você está denunciando ou aprovando a atitude de alguém. Ele vai apenas entender que, se aquela pessoa está sendo muito divulgada ela é relevante para a plataforma, indicando-a na parte de “sugestões para seguir”, o que pode aumentar o alcance dessa pessoa”, observa a influencer.
Maiara Orlandini, doutoranda que pesquisa o cancelamento, confirma a percepção da influencer: “Qualquer coisa que gerar visualização dentro da plataforma será benéfica para a gestão dela. É por isso que as mídias têm botões de “gosto”, “não gosto” e outros. O Facebook tem isso, o Instagram tem isso e o Youtube também”.
De acordo com a pesquisadora, esses mecanismos mensuram todos os dados das mídias, incluindo os do cancelamento, já que essas ferramentas são utilizadas para a viralização de alguma pauta. Consequentemente, esse movimento é capaz de gerar altos lucros para as empresas detentoras das mídias sociais, pois os usuários passam mais tempo navegando e interagindo dentro da rede, o que aumenta o interesse de marcas anunciarem seus produtos e serviços dentro da plataforma.
Embora haja a percepção do cancelamento como gerador de lucro, existe uma recente onda de cautela das mídias para supervisionar o teor dos conteúdos e discussões que viralizam nas redes. Cautela essa que é proveniente de muita pressão pública em prol de um ambiente virtual mais saudável. “Principalmente depois das eleições, com esse boom de fake news, você percebe que essas empresas estão sendo um pouco mais cuidadosas, testando mecanismos para coibir ações não democráticas”, explica Maiara.
Cancelamento pode apagar ou impulsionar
O cancelamento tem suas nuances e nem sempre acontece da mesma forma para todos. Algumas carreiras acabam e outras crescem a partir do ato de repúdio. Isso depende do motivo do cancelamento, da pessoa cancelada, do período de tempo em que ele ocorre, do nível de julgamento e de outros fatores. O influencer Carlinhos Maia é um exemplo de figura pública recorrentemente cancelada que não teve a carreira destruída por isso. Mesmo com os cancelamentos, ele acumula mais de 21 milhões de seguidores no Instagram e aparece com frequência em programas de TV.
Outro caso é o do cantor Biel, que em 2016 foi cancelado, antes mesmo de o cancelamento ser uma prática comum, por assediar sexualmente a jornalista Giulia Pereira, durante entrevista para o portal IG. A jornalista moveu um processo contra o cantor, que foi condenado a pagar mais de R$4 milpara uma instituição de caridade. Após a repercussão, Biel afastou-se do cenário musical e foi morar um tempo no exterior, para evitar mais danos à imagem e à carreira. No ano passado, ele foi convidado para integrar o time de participantes de “A Fazenda”, reality show da TV Record, e foi vice-campeão da edição. Atualmente, o cantor é seguido por mais de sete milhões de pessoas no Instagram.
Casos de cancelamento que não culminam no fim da carreira, e em determinados momentos podem alavancar a carreira do cancelado, como ocorreu com Carlinhos Maia e Biel, são mais comuns entre pessoas com grande número de seguidores nas mídias sociais. Segundo o professor Caio César Oliveira, que coordena o curso de Publicidade e Propaganda da PUC Minas e pesquisa os impactos das mídias sociais na sociedade: Influencers, ou marcas, bem posicionados e com público amplo não sofrem tanto os efeitos do cancelamento, “porque eles sabem como funcionam as dinâmicas das plataformas e vão usar isso a seu favor para reverter a situação, por mais ruim que ela seja”.
Caio César ainda aponta que o perfil dos seguidores de determinada marca ou influencer também é determinante para que o cancelamento não surta efeitos. “Tudo depende de como essa pessoa, ou marca, está posicionada. Ela pode cometer um ato imoral, mas se para o público dela aquele ato não é grave, o influencer ou a marca não perderá o apoio da audiência. E pode até se reerguer após os efeitos do cancelamento”, explica.
Em circunstâncias de famosos que sofrem os efeitos do cancelamento, o professor elenca algumas estratégias simples usadas para reconquistar apoio do público e espaço na mídia. Dentre elas estão: fazer uma mea-culpa, fazer autocrítica e continuar presente nas mídias sociais estabelecendo diálogo com os apoiadores.
Diferentemente do influencer Carlinhos Maia, que é cancelado com frequência mas não sofre com os efeitos do ato, para a rapper Karol Conká as consequências do cancelamento refletem o contrário, colocando em risco uma carreira estabilizada. A cantora, que integrava o time da atual edição do BBB e saiu da casa com recorde de rejeição, está sendo massivamente cancelada por internautas devido ao seu comportamento no reality.
Após ter humilhado o ex-participante Lucas Penteado, feito comentários xenofóbicos e se envolvido em brigas com alguns colegas de confinamento, a rapper foi pouco a pouco perdendo o respeito do público, o que pode levá-la a perder contratos milionários. Desde o começo das confusões no reality, ocorridas já na primeira semana, o perfil do Instagram da cantora registrou perda de aproximadamente 500 mil seguidores. A revista Isto É publicou matéria que especula os prejuízos financeiros do cancelamento na carreira de Karol Conká. A estimativa é que ela possa perder cerca de R$ 5 milhões este ano.
O Cancelamento viola algum direito?
Embora a cultura do cancelamento possa ultrapassar os limites de um debate civilizado, Rodolpho Barreto, advogado e doutor em direito civil, garante que o ato não viola direitos previstos na Constituição brasileira. O que ele garante que existe é uma “violação da dignidade humana”. Segundo Barreto, pode incorrer em violação da liberdade de expressão, “na medida em que essa liberdade de expressão é cerceada nas redes sociais, diante de um julgamento prévio, que se faz sobre aquela conduta ser ou não aceitável”.
Na visão do advogado, a cultura do cancelamento funciona como uma espécie de justiça com as próprias mãos. “As pessoas assumem sim o papel da Justiça no ambiente virtual. Elas agem como justiceiras a partir da percepção que elas têm, sem deixar espaço para a outra pessoa se defender. O mais adequado seria as pessoas denunciarem nos canais da rede a violação das regras dentro daquele espaço”, defende.
Apesar de a cultura do cancelamento não violar nenhum direito, o professor da PUC Minas Caio César Oliveira, que leciona sobre cibercultura e comunicação digital, não classifica o ato como benéfico para o convívio em sociedade, uma vez que as postagens de todas as pessoas estão sujeitas a interpretações, que, em alguns casos, podem ser equivocadas, e o debate fica em segundo plano na prática do cancelamento. “Estamos só atacando”, analisa o professor.
Caio César ainda aponta que as pessoas compõem bolhas nas mídias sociais, nas quais todas pensam as mesmas coisas, de forma semelhante, o que estimula a intolerância com a diferença. “Estamos indo por um caminho onde a diferença não é tolerada. Precisamos debater ao invés de cancelar”, pondera.
O professor também indica que mudar a forma de agir dentro dessa cultura é uma tarefa árdua, mas não impossível. Para isso seria necessário haver educação quanto às formas de usar as mídias sociais.
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