“Aqui embaixo tem um abrigo antiaéreo”. Foi o que disse o historiador José Carlos Arêas, diretor do Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais (Sinpro-MG), ao apresentar a sede da entidade para um dos membros da equipe de reportagem. Localizada no tradicional bairro Floresta, Região Leste de Belo Horizonte, a ampla e antiga casa fica escondida atrás de uma moderna fachada, que exibe o nome da entidade. Desde sua fundação, em 1933, e em meio à atual crise do ensino superior, o Sinpro-MG luta pelos direitos dos professores da rede privada do estado e pela qualidade da educação.
Durante o tour pelo Sinpro-MG, o diretor contou que o edifício pertencia ao presidente Juscelino Kubitschek, que vendeu a casa para um imigrante da extinta Iugoslávia, responsável pela construção do abrigo no subsolo da estrutura. Foi em uma sala de reuniões, quase em frente à porta do tal bunker, que a entrevista com José Carlos aconteceu. Sua voz grave e profunda, delineada pelo sotaque carioca, é uma das marcas de sua extensa luta pelas causas sociais no Brasil, que remonta aos tempos de militância estudantil no movimento secundarista e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), durante a ditadura militar.
É na História, sua área de formação, que José Carlos Arêas sustenta suas declarações sobre a educação no Brasil. O sindicalista reitera a necessidade de uma reforma universitária no país, relembrando desastrosas ações como o Acordo MEC-USAID, feito após o golpe militar de 1964 entre o Ministério da Educação (MEC) e o United States Agency for International Development (USAID), e a atuação do ex-ministro Paulo Renato de Souza durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Segundo José Carlos, a aproximação entre a educação e o mercantilismo neoliberal é um processo antigo, que se intensificou no século XXI com a entrada dos grandes conglomerados empresariais na área da educação superior privada.
Um dos exemplos dados pelo sindicalista é o Grupo Ânima, empresa fundada em 2003 por Daniel Faccini Castanho, Maurício Nogueira Escobar e Marcelo Battistella Bueno. Originária da aquisição da mantenedora do Centro Universitário Una na capital mineira, a Ânima contava, em 2023, com uma rede de 18 instituições de ensino superior, espalhadas pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Bahia, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Em Belo Horizonte e região metropolitana, a empresa é proprietária da Faculdade Milton Campos, da UNA, do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH) e da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana (FASEH).
Paula Harraca, CEO da Ânima, publicou um texto em seu Linkedin no qual anuncia os resultados financeiros da empresa no terceiro trimestre de 2024, descritos pela executiva como “sólidos e crescentes”. O índice EBITDA, que caracteriza os lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização, do Grupo é de R$ 264,8 milhões. A “eterna aprendiz”, maneira como a presidente da Ânima se apresenta na rede social, afirmou que 2024 é o “ano da colheita” para a instituição.
Mas tamanha bonança de ganhos, estabilidade financeira e prosperidade destoa do que disseram ex-alunos e docentes de universidades do Grupo Ânima à reportagem. O Sinpro-MG representa 96 ações trabalhistas coletivas e individuais contra a instituição, que carrega um histórico de acusações de violações a direitos trabalhistas e à qualidade do ensino por onde passa.
Era uma vez a FAFI…
“A Fundac não tinha dinheiro, mas tinha todo um espírito acadêmico”. É o que afirma Rosa, nome fictício de uma professora da área de Exatas da Uni-BH. A Fundação de Educação, Artes e Cultura (Fundac) é a fundadora e antiga mantenedora da instituição que, inicialmente, chamava-se Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte (Fafi-BH), nome que carregou por 45 anos. Problemas financeiros e de gestão culminaram em uma complexa transição do comando para o Grupo Ânima, em 2009.
“Aqui a educação é mercadoria”, destaca Rosa. A professora discorre sobre a metodologia imposta na universidade, onde não existem disciplinas, mas sim, “unidades curriculares”. A nomenclatura descreve um processo em que, de acordo com a entrevistada, “juntam duas disciplinas que deveriam ter tudo a ver, mas nem sempre isso acontece”. Tal organização culminou em episódios em que Rosa lecionou a mesma matéria para alunos do primeiro e último período do mesmo curso, de maneira simultânea. Rosa também compartilhou a existência do que classifica como “aulas nacionais”. Ofertadas no formato de ensino remoto, as turmas online dessas matérias alcançam cerca de trezentas pessoas, de diversas regiões do Brasil.
As relações do Grupo Ânima com seus professores também são criticadas pela profissional. “Apesar de termos um prédio e várias salas destinadas ao Grupo Ânima, nós (professores) não temos acesso a nada”. Além disso, segundo a educadora, a mantenedora não destina incentivos à pesquisa acadêmica na Uni-BH, principalmente após a pandemia. Além disso, de acordo com a entrevistada, ao ligar para o telefone do setor de Recursos Humanos, quem atende é um “robô”, que coloca o requerente em uma fila de espera. Após um tempo, a voz robótica alega problemas técnicos e a chamada é encerrada abruptamente.
Rosa classifica o termo “mercantilização” como a palavra-chave para definir a atuação do Grupo Ânima na Uni-BH. A professora discorre sobre a impossibilidade de um aprofundamento do ensino sob a tutela do conglomerado empresarial. Ela afirma que tais limitações incidem na incapacidade dos alunos de desenvolverem novas tecnologias e projetos no âmbito profissional.
Outra faculdade, mesmos descasos
A crise no ensino superior privado em Belo Horizonte ganha contornos preocupantes, especialmente com relatos de profissionais que denunciam práticas de redução de custos às custas de qualidade educacional e direitos trabalhistas. Baby, nome fictício de uma ex-professora da Faculdade UNA, pertencente ao Grupo Ânima, trouxe à tona, em entrevista, uma série de irregularidades e problemas estruturais.
Segundo Baby, a UNA implementou uma metodologia que reduziu a carga horária de aulas presenciais de quatro para três horas diárias. A justificativa seria o “protagonismo do aluno”, que deveria utilizar a quarta hora para “busca ativa” de conhecimento — atividades autônomas como leituras indicadas por professores.
“É o que a gente sempre chamou de ‘para casa’ na educação básica”, critica Baby. Ela denuncia que, embora os alunos pagassem por quatro horas de aula, recebiam três. Essa redução de carga horária impacta também os professores, que têm remunerações e jornadas adaptadas a essa nova lógica.
Com a pandemia, o modelo remoto foi ampliado para além do emergencial. Baby relata que a implementação das chamadas “turmas nacionais” reduziu ainda mais a necessidade de contratação de docentes e de uso de espaços físicos, como bibliotecas e laboratórios. “Mesmo para cursos presenciais, as aulas online tornaram-se padrão. O aluno comprava um curso presencial e recebia apenas seis horas semanais presenciais. Muitas vezes, nem havia estrutura adequada, como computadores disponíveis”, explica a ex-docente.
Condições de trabalho
Os desafios enfrentados pelos professores iam além da sobrecarga de trabalho e da precarização. Baby menciona uma série de violações, incluindo mudanças contratuais que exigiam a cessão de direitos de imagem e cláusulas unilaterais: “Eles enviavam e-mails automáticos pressionando os professores a assinar contratos com cláusulas leoninas. Eu me recusei, mas o ambiente de trabalho tornou-se insustentável”.
A infraestrutura também era motivo de queixas. Baby lembra de aulas ministradas em salas mofadas e sem janelas, causando problemas de saúde, além da constante dependência de equipamentos pessoais dos professores.
Impactos na educação e nos alunos
A redução da carga horária e a condensação de disciplinas refletem na qualidade do ensino. Baby descreve que, em sua área, três matérias práticas foram unificadas em apenas uma, com menos horas e estrutura insuficiente. “Conteúdos importantes ficaram prejudicados. Apesar do esforço dos professores, que amam o que fazem, a pressão da instituição priorizava a redução de custos em detrimento da qualidade educacional”.
Para Baby, o discurso de inovação utilizado pela UNA mascara práticas que precarizam tanto o ensino quanto as condições de trabalho. Ela acredita que a reforma trabalhista e o modelo de gestão baseado em plataformas digitais e turmas amplas facilitaram a implementação dessas medidas.
O protagonismo do aluno e o ensino online não foram introduzidos para melhorar a qualidade, mas para baratear o custo. As mudanças criaram um ambiente onde o professor perdeu autonomia e direitos, enquanto os alunos receberam um ensino aquém do que foi prometido.
– Baby (nome fictício), ex-professora do Centro Universitário UNA
Egressos de uma promessa
Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) indicam que, em 2024, cerca de 70% dos inscritos fizeram a segunda prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Os milhões de brasileiros e brasileiras que tentam conquistar uma vaga em um curso superior carregam muitas expectativas e sonhos, que podem se tornar frustrações. É o caso de Carlos, nome fictício atribuído a um jovem ex-estudante de Jornalismo da Uni-BH, que relatou sua experiência à reportagem.
A proximidade da sua casa em relação ao campus da universidade e a recomendação de familiares sobre a suposta qualidade de ensino foram os fatores que atraíram o estudante a adentrar a instituição. “Eu não conhecia o Grupo Ânima antes de entrar lá”, diz Carlos. Ele ressalta que, à época, mantinha o conceito da Uni-BH como uma ótima faculdade. No entanto, o jovem começou a se sentir incomodado com a metodologia de ensino logo no primeiro período.
“Tínhamos matérias amplas demais, que não eram focadas em uma coisa só”, afirmou o estudante. Em certas disciplinas, Carlos tinha colegas de outros cursos da área da Comunicação e sentia falta de matérias mais específicas e direcionadas ao Jornalismo. De acordo com ele, um dia da semana era reservado para as aulas no modelo de ensino à distância (EAD), às quais não se adaptou.
“A aula era péssima, ninguém nunca gostou dessa matéria. A professora, por exemplo, era lá do Rio Grande do Sul e a sala (online) tinha por volta de 100 alunos. Era gente do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte”. A disciplina descrita por Carlos é nomeada de “Vida & Carreira”, descrita pela instituição como a “área que tem como objetivo auxiliar, apoiar e acompanhar a evolução acadêmica e a trajetória profissional do estudante durante todo o seu percurso formativo”.
Insatisfeito com o ensino da Uni-BH, Carlos procurou novas opções para terminar seu curso. A grade curricular de outra universidade o agradou mais, e, portanto, ele requisitou a transferência. No entanto, o que era o início de uma nova fase em sua vida se transformou em mais uma frustração. “Eles tentaram fazer de tudo para que eu não cancelasse a matrícula. Tive que pagar uma multa de cancelamento de aproximadamente três mil reais”.
O caso relatado por Carlos é similar ao do estudante Alysson Pena, de 26 anos. Ele foi aluno do curso de Farmácia da Uni-BH em 2023 e afirma que escolheu a instituição por indicação de um amigo. “Estava com planos de mudar para Belo Horizonte e resolvi pesquisar sobre a Uni-BH. Vi que a faculdade era bem avaliada e que o Grupo Ânima era muito bem falado”, ressalta.
Alysson escolheu a modalidade “semipresencial” ao ingressar na universidade, ação que classifica como errônea. “Não deu muito certo para mim, as aulas online eram muito bagunçadas, às vezes não funcionava e aí tinha que repor”, constata o estudante. Ao decidir mudar de curso e universidade, ele também encontrou barreiras para cancelar sua matrícula.
O jovem relata que não sabia da existência da multa e teve dificuldades para entrar em contato com a secretaria da instituição para resolver o assunto. Alysson afirma que “deveria ter imaginado” a possibilidade do pagamento de uma penalidade, devido à realização de um financiamento para ganhar uma bolsa na faculdade. Ele também ressalta que ficou desanimado por sua turma ser “muito pequena” e precisar cursar disciplinas com alunos de outros cursos. “Meu primeiro período foi com o pessoal da Odontologia. Isso aí prejudicava os laços entre os alunos e a faculdade também”, destaca.
Eduardo Lima, de 25 anos, é outro ex-aluno da Uni-BH entrevistado pela reportagem. Ele afirma que não teve problemas para se transferir da instituição, mas denuncia descasos em relação à qualidade do ensino e ao tratamento da faculdade com os alunos. Eduardo optou pela Uni-BH por ser a única instituição privada na capital mineira a oferecer o curso de Geologia. Indagado sobre os principais fatores que o desagradaram na instituição, o jovem elencou as constantes mudanças na grade curricular, o aumento das mensalidades e a falta de “voz” dos alunos na faculdade. “A instituição estava olhando muito mais o lado financeiro do que o educacional”, afirma o estudante.
Rumos da educação superior
O jornalista e professor universitário da Universidade de São Paulo (USP) Rodrigo Ratier publicou uma série de reportagens no Uol sobre as ações do Grupo Ânima em São Paulo. Em 2021, a holding mineira anunciou a compra dos ativos pertencentes ao Grupo Laureate, dono da Universidade Anhembi Morumbi.
No dia 8 de agosto de 2023, o Ministério da Educação (MEC) publicou a Portaria Seres/MEC n°288 no Diário Oficial da União. A medida delimita sanções à Anhembi Morumbi, como a suspensão da prerrogativa de criação de novos polos de educação a distância pela instituição, pelo prazo de um ano. Além disso, a formalização de contratos de Financiamento Estudantil (Fies) e oferta de bolsas para o Programa Universidade para Todos (Prouni) também estão proibidos na modalidade remota até segunda ordem.
Outro ponto determinado na Portaria é a suspensão imediata da oferta do currículo “nova matriz E2A” ou híbrida. O Ecossistema Ânima de Aprendizagem (E2A) é descrito pela empresa como “um modelo de ensino focado em competências”. A metodologia substitui as matérias por “unidades curriculares”, processo descrito no depoimento das professoras Rosa e Baby à reportagem.
Mesmo com a Portaria do Ministério da Educação direcionada à Anhembi Morumbi, a Ânima continua aplicando os mesmos métodos em suas outras unidades, inclusive em Belo Horizonte. Daniel Castanho, CEO da empresa, alega que os problemas relacionados ao EAD na instituição paulista seriam responsabilidade da antiga mantenedora, em depoimento publicado na reportagem de Rodrigo Ratier.
A mercantilização do ensino superior, fator apontado pelo sindicalista José Carlos Arêas, é um fenômeno recorrente na sociedade brasileira atual. A ação do MEC demonstra que o poder público deve ter uma voz ativa na fiscalização deste processo. José Carlos também relatou as barreiras encontradas pelos trabalhadores da educação no diálogo com o poder público.
Nós temos dificuldade de entrar. A composição disso aí (MEC) são os grandes conglomerados. Dentro do Ministério da Educação, quem está participando, com seus assessores e funcionários, acaba assimilando e recebendo, às vezes, um agrado, essas coisas todas.
-José Carlos Arêas, historiador
A educação superior brasileira sofre um processo de dominação pelos grandes grupos empresariais. Tal “ataque” só pode ser contido por meio de fortes ações de mobilização e reformas estruturais no sistema educacional brasileiro. Essa precarização do ensino pode acarretar na formação de profissionais sem recursos intelectuais para o desenvolvimento do Brasil. Se isso acontecer, o pequeno abrigo antiaéreo na região Leste da capital mineira será muito pequeno para proteger todos nós.
Posição do Grupo Ânima
A reportagem entrou em contato com o Grupo Ânima, mas não obteve retorno.
Reportagem desenvolvida por João Antônio Cunha, Marcel Navarro, Ulisses Maciel e Silvia Lage para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2024/2 sob a supervisão da profª Nara Lya Cabral Scabin.
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